A Garganta da Serpente
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Gostava de ter alguém...

(Sónia Bettencourt)

"É-nos possível viver sozinhos, desde que seja à espera de alguém"
Gilbert Cesbron

Às vezes saio sem saber para onde vou. Gosto de deambular sozinha pelas ruas e travessas da cidade, ver pessoas a passar a pé e de carro, entrar nas lojas onde na realidade não há nada que queira comprar, e imaginar que necessito daqueles artigos que estão expostos nas montras e nas prateleiras; frequentar um café ainda que por alguns minutos e ouvir parte de conversas: ao telefone, ao balcão, na mesa ao lado e nas pessoas que passam na rua junto à porta; comprar um bilhete de metro e sair numa estação por impulso, por uma urgência que me toma em desfazer as horas ou simplesmente procurar-te mesmo sem te saber o rosto.

Quem és? De onde vens e para onde vais? Ocorre-me vezes sem conta e submeto-me a uma investigação clandestina, muito íntima e divirto-me a interpretar uma vida ao cruzar contigo por acaso, num sítio qualquer.

Persigo-te durante alguns minutos, observo o modo discreto como falas ao telemóvel, os gestos diplomáticos, a pasta e o sobretudo que seguras pelo braço, o maço de tabaco vazio que deitas no caixote do lixo, os sapatos brilhantes que atravessam a passadeira. Interrogo-me se vais ao encontro de alguém, se estás atrasado ou se, regressas de uma habitual viagem solitária. E logo me perco nas avenidas dos meus enredos tentando enquadrar-te numa história, com imagens claras e perfeitas, fantasiando que me vais encontrar, que somos amantes ou simplesmente bons amigos, e frequentamos a casa um do outro, onde cada um de nós vive, sozinho, por entre garrafas de vinho e obras de arte. Podíamos dormir juntos durante a tarde, entre duas reuniões de negócios, num escritório com vista para a cidade. Enquanto me despias as roupas caras e soltavas-me o cabelo, que usava sempre cuidadosamente atado por um fio elástico, falaríamos de marketing e da última festa em que te interessaste por tudo e não te apaixonaste por nada. Ah, serias casado? Comprometido, talvez. Ou então, num outro contexto totalmente diferente, trocávamos ideias sobre viver em Lisboa ou Nova Iorque, o amor à primeira vista e a tua nova namorada que quer ser actriz. Eu acompanhava-te ao teatro, estaria em cena a peça de Becket, Á Espera de Godot, e ao final seríamos os primeiros a dar início à chuva de aplausos. Mas, para te colocar ainda numa outra história, melhor ficará se fores o meu namorado, e ires ter com uma mulher desconhecida que, apaixonada, marcou encontro contigo através de e-mail, com o argumento que te vê todas as noites na televisão como pivot de telejornal. Sem tu saberes seria eu essa mulher - a tua própria namorada. Mais tarde arriscar-me-ia a explicar-te a minha atitude: a televisão tornou-se uma psicose. Ver o telejornal, por exemplo, não apenas esgota como pode ser letal.

Os diálogos formam-se-me nos lábios e quase me dirijo a ti com um sorriso sem saber muito bem em que quadro estamos ambos representados. Só me apetece dizer-te: "estou aqui" ou "cheguei". Então apercebo-me de que sou-te desconhecida, anónima, indiferente; que a história te é completamente incógnita, que aliás não é a tua, mas a minha. A história só existe em mim servindo fundamentalmente para me ausentar de mim, perder-me e deixar de ser eu para ser outra qualquer. E abato-me, no meio da rua, sozinha, entre a multidão. A lucidez é detestável.

Dirijo-me ao café mais próximo, lotado de gente, e sento-me à mesa, por sinal, a única disponível, ainda com um punhado de frases agora a desfazerem-se lentamente na garganta. Tu, de súbito, entras no café e sem outro lugar para te sentares e beber a meia de leite, perguntas-me referindo-te à cadeira: "está ocupada?"

Esmago o cigarro no cinzeiro de vidro, fecho o bloco de notas e respondo irritada como se fôssemos dois actores e estivéssemos a contracenar: "não era essa a tua deixa!".

Sem demora regresso ao metropolitano, transtornada pela história, sempre a ficcionar, a persistir na procura, porque de facto não és nem meu amante nem meu amigo e a verdade é que eu nunca te vi. Agora quero sair desta confusão, deste mundo desinquieto que é o de viver sozinha e faço o trajecto inverso, ansiosa por chegar ao mesmo lugar de onde parti, com uma só vontade: a de ter alguém à minha espera.

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