"É-nos possível viver sozinhos, desde que
seja à espera de alguém"
Gilbert Cesbron
Às vezes saio sem saber para onde vou. Gosto de deambular sozinha pelas
ruas e travessas da cidade, ver pessoas a passar a pé e de carro, entrar
nas lojas onde na realidade não há nada que queira comprar, e
imaginar que necessito daqueles artigos que estão expostos nas montras
e nas prateleiras; frequentar um café ainda que por alguns minutos e
ouvir parte de conversas: ao telefone, ao balcão, na mesa ao lado e nas
pessoas que passam na rua junto à porta; comprar um bilhete de metro
e sair numa estação por impulso, por uma urgência que me
toma em desfazer as horas ou simplesmente procurar-te mesmo sem te saber o rosto.
Quem és? De onde vens e para onde vais? Ocorre-me vezes sem conta e submeto-me
a uma investigação clandestina, muito íntima e divirto-me
a interpretar uma vida ao cruzar contigo por acaso, num sítio qualquer.
Persigo-te durante alguns minutos, observo o modo discreto como falas ao telemóvel,
os gestos diplomáticos, a pasta e o sobretudo que seguras pelo braço,
o maço de tabaco vazio que deitas no caixote do lixo, os sapatos brilhantes
que atravessam a passadeira. Interrogo-me se vais ao encontro de alguém,
se estás atrasado ou se, regressas de uma habitual viagem solitária.
E logo me perco nas avenidas dos meus enredos tentando enquadrar-te numa história,
com imagens claras e perfeitas, fantasiando que me vais encontrar, que somos
amantes ou simplesmente bons amigos, e frequentamos a casa um do outro, onde
cada um de nós vive, sozinho, por entre garrafas de vinho e obras de
arte. Podíamos dormir juntos durante a tarde, entre duas reuniões
de negócios, num escritório com vista para a cidade. Enquanto
me despias as roupas caras e soltavas-me o cabelo, que usava sempre cuidadosamente
atado por um fio elástico, falaríamos de marketing e da última
festa em que te interessaste por tudo e não te apaixonaste por nada.
Ah, serias casado? Comprometido, talvez. Ou então, num outro contexto
totalmente diferente, trocávamos ideias sobre viver em Lisboa ou Nova
Iorque, o amor à primeira vista e a tua nova namorada que quer ser actriz.
Eu acompanhava-te ao teatro, estaria em cena a peça de Becket, Á
Espera de Godot, e ao final seríamos os primeiros a dar início
à chuva de aplausos. Mas, para te colocar ainda numa outra história,
melhor ficará se fores o meu namorado, e ires ter com uma mulher desconhecida
que, apaixonada, marcou encontro contigo através de e-mail, com o argumento
que te vê todas as noites na televisão como pivot de telejornal.
Sem tu saberes seria eu essa mulher - a tua própria namorada. Mais tarde
arriscar-me-ia a explicar-te a minha atitude: a televisão tornou-se uma
psicose. Ver o telejornal, por exemplo, não apenas esgota como pode ser
letal.
Os diálogos formam-se-me nos lábios e quase me dirijo a ti com
um sorriso sem saber muito bem em que quadro estamos ambos representados. Só
me apetece dizer-te: "estou aqui" ou "cheguei". Então
apercebo-me de que sou-te desconhecida, anónima, indiferente; que a história
te é completamente incógnita, que aliás não é
a tua, mas a minha. A história só existe em mim servindo fundamentalmente
para me ausentar de mim, perder-me e deixar de ser eu para ser outra qualquer.
E abato-me, no meio da rua, sozinha, entre a multidão. A lucidez é
detestável.
Dirijo-me ao café mais próximo, lotado de gente, e sento-me à
mesa, por sinal, a única disponível, ainda com um punhado de frases
agora a desfazerem-se lentamente na garganta. Tu, de súbito, entras no
café e sem outro lugar para te sentares e beber a meia de leite, perguntas-me
referindo-te à cadeira: "está ocupada?"
Esmago o cigarro no cinzeiro de vidro, fecho o bloco de notas e respondo irritada
como se fôssemos dois actores e estivéssemos a contracenar: "não
era essa a tua deixa!".
Sem demora regresso ao metropolitano, transtornada pela história, sempre
a ficcionar, a persistir na procura, porque de facto não és nem
meu amante nem meu amigo e a verdade é que eu nunca te vi. Agora quero
sair desta confusão, deste mundo desinquieto que é o de viver
sozinha e faço o trajecto inverso, ansiosa por chegar ao mesmo lugar
de onde parti, com uma só vontade: a de ter alguém à minha
espera.