À memória de todos os jovens
que perderam a vida no mar
Há dois dias e duas noites que estive a olhar o mar. Sim, a olhar o
mar através da janela da sala da minha casa. Não era uma casa
muito grande, nem uma sala muito grande, mas tinha janelas largas, daquelas
que deslizavam em vez de abrir ao meio. Através dela via uma praia onde
o mar parecia querer abraçar-me. Às vezes estava manso e quieto,
outras vezes sentia-se irado e batia violentamente contra as rochas.
Outro dia foi mesmo assim, a sua revolta era tão grande que as marés
galgavam a orla costeira por completo. E o vento assobiava na janela como se
fosse uma voz de alguém que já se fora. Para sempre. O irmão
falecido: o olhar dele cheio de medo de morrer quando as forças lhe faltaram.
Imaginava.
Mas uma semana depois, quando as casas se afundavam numa luz frágil,
já o mar estava relaxado e adormecido como que a descansar da fúria
dos dias anteriores. As gaivotas protegiam-no, ou não fossem os anjos
das suas águas salgadas.
Naqueles dias de calmaria imaginava que um barco iria passar junto à
janela e que alguém me levantaria a mão a acenar para me levar
numa viagem, para longe; uma viagem que eu não queria fazer. Seria um
daqueles barcos pequenos, pintados de branco com o rebordo de cor garrida e
identificado por um nome de peixe ou de mulher.
Há dois dias e duas noites que estive a olhar o mar. Sim, a olhar o mar
através da janela da sala da minha casa. Ainda nenhum barco passou e
os que supostamente iriam passar jamais se lembrariam de olhar para a minha
janela. Estariam ocupados a seguir o peixe pelo seu rumo certo. E naquele exacto
momento eu estaria fora de rumo. Pelo menos era este o meu desejo.
Ao tentar perceber o medo tão profundo de estar longe dali, o alvoroço
no peito de me encontrar em todo o lado e em lado nenhum que não fosse
aquela casa e aquela janela, decidi ficar dois dias e duas noites a olhar o
mar. Sem tirar os olhos uma única vez.
No primeiro dia senti um orvalho gelado nas palmas das mãos. Fechei a
janela sem nunca desistir do meu propósito. O meu corpo não vacilava,
ou não tivesse eu vinte anos, contudo o meu espírito sentia-se
fraco e perdido naquele vai e vem da ondulação.
Um grito na garganta nasceu-me no segundo dia. Queria ter a certeza que estava
ali. Apetecia-me gritar de alegria ou de medo, não sei bem, como se tivesse
acabado de ver o mar pela primeira vez. Abri a janela e no exacto momento em
que o grito se preparava para soltar, uma náusea tomou conta de mim tal
verdadeira viagem de barco em alto mar.
Lembrei-me da infância, viva e fresca: A Luisa, a mais nova do grupo,
que brincava com bicicletas usadas que o pai consertava na sua garagem de mecânico;
o Bruno e o irmão Bernardo, que todos pensavam ser gémeos verdadeiros,
mas não eram; A Ritinha de olhos verde-azeitona que tinha bonecas sem
conta, o Jorge, o herói de histórias de aventura que só
ele conhecia e só ele protagonizava a qualquer hora e a qualquer momento
e, por fim, o Miguel traquinas e irrequieto, que me perseguia por todo o lado,
a imitar o zorro com uma espada em punho.
No Verão eram as brincadeiras na rua à macaquinha do chinês
e os jogos do apanha e do esconde... Tudo passado naquela rua,
defronte do mar. E quando os dias começavam a ficar pequenos e frios,
juntávamo-nos umas vezes na garagem da Luisa, outras no sótão
da Ritinha ou ali, naquela sala, a jogar às cartas e a brincar à
janela, que ao contrário de todas as outras janelas não abria
nem para os lados, nem para cima, simplesmente deslizava.
Se não fosse o vento a sacudir ao de leve a memória infantil,
teria desmaiado, com certeza.
Olhei à volta a sala, a minha casa e sabia que tinha que partir. Estava
cansado como se já tivesse feito mil viagens. Mas, a verdade, era que
nem tinha feito a primeira, aquela que parecia ser a mais longa de todas e que
doía como nenhuma outra. Sempre vivi sem pressa e sem ruído com
os meus dias flexíveis fechados em livros de estudo e em brincadeiras
com os vizinhos, amigos e companheiros de escola. Cheio de princípios
e frases colhidas da Literatura e da Filosofia.
Depois a vida naquela casa, os pais e eu, passou a ser apenas um eco das coisas
acontecidas; uma lembrança a recompor um tempo findo- por entre os cheiros
do quarto de cama, do vestuário, dos lençóis; o desarrumo
da secretária e do guarda-roupa; as prateleiras a abarrotar de Cds de
música, livros escolares e jogos de computador; o poster do Eminem...
Os pesados cortinados de riscas coloridas cerrados sem deixar escapar uma lâmina
de luz.
- Miguel!
Mas ninguém respondia. Nenhuma voz humana. Nenhuma presença de
gente.
Ele continuava ali no retrato do canto. Sorridente e cheio de vida. Como na
noite em que decidira brincar junto ao mar. De repente, do riso fizera-se o
pranto, e o jogo entre amigos tornou aquela noite a mais longa das nossas vidas.
- Vem para aqui falar com a gente! - chamaram-me o Jorge, o Bruno, o Bernardo
e a Luisa numa tentativa de me distrair e relaxar o vácuo que tinha no
cérebro. A Ritinha de olhos verde-azeitona, não estava presente,
pois já não morava naquela cidade, tão pouco naquele bairro.
Mas mesmo assim não deixou de prestar os seus pêsames e condolências.
Deixei a janela e fui para junto deles. Sentei-me no sofá da sala, mas
os meus olhos estavam pregados àquela vidraça onde o vento assobiava
com uma força estranha.
Lembrei-me que àquela hora havia um resto de noite e uma neblina junto
ao rés-do-mar. A cidade, ainda mal acordada, começava a lavar-se,
a vestir-se e a aquecer o café da manhã com os olhos pregados
no relógio. E eu ali, no sofá da sala com o dia suspenso, sem
vontade de querer e de saber aonde me levava o rasgar das horas.
Entretanto adormeci. Mas por pouco tempo. Umas vozes distantes a flutuar pela
sala fizeram-me abrir os olhos fatigados.
- O mar castiga!- exclamou a minha mãe a olhar através da janela
com uma voz que parecia ter vindo do outro lado do abismo.
- Vamos sair daqui, Nuno.- informava o meu pai.- Temos que ir viver para outro
lado.
Para aonde?, pensei eu. Para onde não há mar e as crianças
não brincam, e as árvores são de cimento, e os homens são
mortos em vez de morrerem?
Fez-se um diálogo de surdos. A voz dos meus pais vinha do outro lado
do tempo numa língua diferente carregada de dor.
O medo de partir colocou-me à janela da sala durante muitos dias. Os
momentos de alegria cada vez mais no fundo do tempo, espiando-me. Já
não era só os meus dias que estavam suspensos, era todo o meu
futuro.
O automóvel buzinou impaciente pela segunda vez. Vesti o casaco e peguei
nas duas malas de viagem caminhando com cerimónia até à
porta de saída.
Antes de sair pousei as malas e voltei atrás. Abri a janela deslizando-a
devagarinho. Quase chorei de alegria quando um ruído distante de um barco
a passar me fez levantar a mão e acenar num gesto lento.
Prémio Conto (Categoria Sénior) no Certame da Macaronésia de Jovens Artistas, Lanzarote, Canárias, 2005