A Garganta da Serpente
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Altamiro

(Sônia Cardoso)

Miro senta-se longe dos meninos que jogam no campinho e os observa, mas sem vê-los na verdade, Jackson seu amigo um dos poucos que ele considera realmente amigo, grita-lhe - Vem, vem jogá.

Miro sorri e com um gesto diz ao amigo que depois.

- Manda a bola aí Jack, larga mão desse piá esquisito.

Esquisito...é até a mãe o acha esquisito disse pra avó Flô ainda na noite passada flauta é? imagine esse piá é todo cheio de coisa onde já se viu ele

já não tem uma?

- Coitado do menino, tava falando de uma flauta de verdade como a do flautista famoso, é sonho de criança, quem não sonha nesta época?

- Ele já nem é tão criança mãe você fica mimando, colocando minhoca na cabeça do moleque, não quero, a vida é dura, inda mais pra gente pobre como nós, o ano que vem vou arranjar uma colocação pra ele.

- Credo criatura, ele é muito novo tem que estudar ainda.

- Novo que nada mãe vai fazer onze anos, pedi pro seu Conrado arranjar uma vaga pra ele no mercado a dona Ingrid me disse que ele pode ser sacoleiro lá só por seis horas desde que continue na escola.

- Coitadinho é um menino tão magrinho, e como vai ter tempo de fazer as lições, estudar?

- Ele tem boa cabeça a dona Lindaura já me disse, embora seja muito sonhador, e é verdade pensa que não noto, a maioria do tempo que fica sentado aí com os cadernos aberto tá sonhando.Vai fazer as lições de noite antes de dormir e pronto.

- Tá bom o filho é teu, mas vamos dar um jeito de comprar a flauta?

- Ô mãe, cê tá ficando caduca mesmo, a dona Ingrid deu calções e camisas pra eu dar pra ele e comprei um uniforme novo e tênis caro que é o que ele vai precisar o ano que vem, a senhora vai dar porcaria que eu sei, e essa flauta mesmo que seja barata e sei que não é não posso comprar e a senhora não vá usar de jeito nenhum a merreca da sua pensão pra isso, onde já se viu...

Miro pensa que a mãe tem razão, ele não é normal como os piás da rua, que gostam de bola, pipa, carrinho.

E vó Flor tem um tiquinho de culpa coitadinha, no segundo ano quando a tia fez a chamada perguntou é Miro mesmo?... Pensei que fosse apelido, ou seu pai é fã do Altamiro Carrilho e resolveu homenageá-lo colocando a metade do nome dele em você?

Todo mundo riu e Miro envergonhado nada respondeu, mas teve a impressão que todos sabiam que ele não tinha pai, e que a mãe quando ele lhe perguntou pelo pai lhe dissera que o pai dele era um traste, que não quisera saber dele mas que ela e a avó Flô iam sempre cuidar dele.

Na saída da escola enquanto andava pela mão da vó em direção a casa perguntou:

- Vó você conhece o Altamiro Carrilho?

- Conheço... da televisão vimos ele lembra, um dia desses tocando flauta na Hebe.

Miro pensou muitas vezes naquela conversa e diversas vezes improvisou um bambu para imitar uma flauta, pena que não tinha som, então no dia de seu aniversário em abril sua avó lhe deu logo cedo um embrulho redondo toda feliz e a mãe um embrulho quadrado.

- Ao abrir Miro achou que estava sonhando abraçou vó Flô quase chorando.

- Uma flauta vó, você me deu, agora vou aprender a tocar como o Altamiro.

- E o meu presente não vai abrir é?

- Um disco, mãe?... quem que canta?

- Ideia de sua vó, é do Altamiro Carrilho, não canta é só tocado.

Naquele dia ele e a vó até perderam o horário para a aula, ficaram horas sentados na cozinha ouvindo o velho som estéreo da vó.

- Ah não faz mal que o menino perca um dia de aula, era aniversário dele.

- Pelo amor de Deus mãe, não começa a deixar o menino sem ir pra aula.

Só naquele dia ele não foi à aula mas muitas e muitas vezes o disco foi tocado naquela pequena casa de três cômodos e um dia o Alaor que andava, como dizia a vó, arrastando a "asa para sua mãe" perguntou- Sabe tocar essa flauta Miro?

- Eu sei, toco tico-tico no fubá.

- Então me ensina por favor, tô tentando há um tempão mas não consigo mas não consigo aprender.

- Amanhã venho aqui te ensinar.

- Não engane o menino seu Alaor, sabe tocar mesmo?

- Sei sim, não sou professor de música nem nada mas toco o tico-tico e ensino o moleque.

- Meu Deus vó será que aprendo?

- Não conte muito que seja verdade, mecânico, tocando flauta?

Mas no dia seguinte o Alaor veio mesmo, Miro estava até com as mãos suadas de expectativa tinha olhado as horas muitas vezes sabendo que o homem só saia da

oficina as cinco da tarde.

Para surpresa de Alaor e felicidade da vó, Miro aprendeu rapidamente a tocar o tico-tico no fubá.

- Meu Deus como aprendeu rápido, é uma pena dona Flô que o moleque não possa fazer umas aulas com um professor de verdade.

- É, uma pena mesmo, como o senhor aprendeu a tocar?

- Com um camarada meu, moramos na mesma pensão um tempo ele era soldado do bombeiro e tocava lá num grupo que a corporação mantém até hoje, no natal passado ainda vi uma apresentação deles.

Nos anos seguintes Miro apaixonou-se mais ainda pela flautinha arranjou uma caixa de sapatos para ela que era mantida na cômoda que dividia com a vó, como uma relíquia, e para surpresa de todos aprendeu sozinho a tocar diversas músicas.

Sempre sonhando que um dia ia aprender com um professor, ultimamente Miro anda muito triste ouviu na televisão que o bom é aprender instrumentos de sopro o quanto antes e sabe agora também que a flauta que o Altamiro toca é uma transversal.

Até os vizinhos vem avisar:

- Dona Flô o Altamiro vai aparecer no domingo, avise o Miro.

Miro pensa que não se importa que o achem esquisito porque ele não gosta de bola, de carrinho... mas se pelo menos em dois dias, que é natal ele pudesse ganhar uma flauta, ou um jeito qualquer de aprender a tocar...Mas ele sabe, bons velhinhos não existem, a mãe não quer que ele acredite, pra não ficar molenga, pobres tem que ser durões ou se danam.

No dia seguinte sentado com as costas grudadas à grade do portão do pequeno pátio de sua casa, Miro continua a sonhar, como diz a mãe, suspira pensando se pelo menos eu tivesse um pai, ou acreditasse em papai Noel...

Distraído Miro não ouve o carro que estaciona em frente a sua casa, assusta-se quando um estranho coloca um dedo em suas costas.

- Oi, você é o Miro?

- Atrapalhado o menino faz um gesto afirmativo.

- Onde esta sua mãe?

- Trabalhando, só minha vó está comigo.

- E você tá esperando o papai Noel?

- Não existe papai Noel.

O homem fica em pé e encara Miro, penalizado.

- Eu sou seu pai Miro, chame sua avó, quero que ela deixe você ir almoçar comigo.

- Miro, tá falando com quem?

Miro vira e quase não enxerga o rosto da avó sem saber porque, seus olhos estão enevoados vó preocupada aproxima-se do portão e coloca o braço nos ombros do neto.

- O senhor é...o que estava dizendo pro menino?

- Que sou o pai dele e pedi que lhe chamasse para irmos os três almoçar.

- Não sei se devo, a mãe dele está no serviço.

- Me diga o telefone dela, ligo agora pra ela e peço.

- Não, ela vai se assustar, vamos aí no seu João a comida ali é muito boa e assim vamos a pé, não quero entrar no seu carro com o menino.

- Vamos então, talvez seja melhor mesmo não quero irritar sua filha e conto com sua ajuda para poder ficar sempre por perto do menino.

Miro quase não consegue comer tem um bolo na garganta, e pensa que está sonhando, que não é possível que assim de repente tenha um homem que lhe diz: - Eu sou seu pai, Miro.

Tem vontade de pedir ao homem que repita isso, mas retrai-se ao perceber que o homem o observa.- O que você faz filho, estuda?

- Estudo, toco flauta.

- É mesmo, que maravilha hoje à noite quando voltar para conversar com sua mãe, quero te ouvir.

- Porque você não quis me conhecer antes pai?...Onde você morava?

- Morava nos Estados Unidos, fiquei trabalhando lá nove anos, mas nunca esqueci que tinha um filho e agora se você quiser vamos recuperar o tempo perdido, filho.

- Miro espera a mãe entrar, ansioso.

- Então?

- Adora o filho, quase chorou quando eu disse que agora que o menino tá criado é fácil falar, quer vir sempre aqui e pôr o menino pra aprender a tocar a dita da flauta.

Miro pega o velho vinil guardado como joia em sua gaveta e lê A flauta impecável de Altamiro Carrilho, pensa que a mãe tá errada, papai Noel talvez não exista mas Deus existe e é muito bom para os meninos.

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