Ontem meu pai deu uma surra em minha mãe, com o cinto.
Eu e minha irmã Kelly, corremos para o quarto chorando, quer dizer a Kelly
chorou muito, gritando mamãe, mamãe.
Mas eu fiz como a mãe me mandou, agradei a Kelly e disse pra ela que se
não ficasse quieta o pai ia bater em nós também como já
aconteceu outras vezes.
Ela ficou soluçando, o nariz escorrendo, abracei ela e limpei seu narizinho.
O pai veio até a cozinha bufando, jogou todas as xícaras no chão,
procurando o dinheiro que a mamãe recebeu da dona Iglaci pela faxina.
- Ele achou o dinheiro mãe?
- Não filho, está aqui, corra lá na birosca do Toninho e
compre um pacote de macarrão e meio quilo de linguiça pra gente
comê.
- Fui correndo pelo beco pra ser mais rápido, já estava escuro,
mas mesmo assim vi as rabiolas das pipas que a piazada deixa presa nos fios de
luz por ali. Lembrei então de uma coisa que eu e a mãe vimos na
tv... O pai volta para casa pelo beco, tive então a grande ideia,
pra nos livrar do inferno.
- Você não vai cuidá da tua irmã?
- Ela tá dormindo, eu deixei a janela aberta, se ela acordá escuto
o chamado dela. Pegue mais um caco vá moendo aí.
- Ih! Tua irmã acordou.
- É mesmo, tá raspe rápido o vidro pra dentro da lata.
- Leve você, não posso ir na tua casa, vó não quer
por que teu pai é ruim.
É melhor mesmo que ele não venha, enquanto a Kelly toma a papinha
dela preparo a cola e passo bem em todo o fio, mesmo enrolando a mão, cortei
em alguns lugares, mas ficou um cerol muito bem feito.
Quando a mãe chega vem de cara fechada, não tanto pelo cansaço
da limpeza nas casas das madames, ela me disse que até gosta de limpar
aquelas casas bonitas. Mas ela sabe que hoje o pai aparece na certa...
Fiquei acordado, muito tempo no escuro escutando a mãe e a Kelly dormir,
depois pensei que ele não ia vir hoje pra casa, às vezes é
assim fica dias sem aparecer e mamãe já disse pra dona Candoca "Deus
queira que não venha mais". Não tinha adiantado nada a bronca
que levei da mãe quando ela percebeu que eu tinha ido até o beco
enquanto ela banhava a Kelly.
Levei a rabiola e estendi bem entre os fundos do barraco da dona Amélia
e os degraus do nosso.
Agora cedo a mãe me beijou e antes de sair, disse que a comida tava pronta
no fogão. Pra mim cuidar bem da Kelly, esquentar a comida com cuidado pra
não me queimar.
Levantei e pensei triste, que tinha que ir até o beco e tirar o cerol...
Escutei barulho, falação e mamãe voltou muito branca, dona
Amélia trouxe água de açúcar para ela, diversas pessoas
olhavam pela porta.
- Filho leve a Kelly, pra casa da dona Coró, seu pai sofreu um acidente
eu vou com dona Amélia, até o I.M.L.
Vi o Lilico contando pro cabo Melo...
- Pois é talvez tenha sido o cerol que o próprio filho e o amiguinho
usaram na pipa, morreu quase degolado.