A Garganta da Serpente
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Lembranças sem rosto

(Sávio Damato)

O único que sempre estará aqui serei eu mesmo,
Eu e os restos dos que me deixaram um dia.
E estarei assim, em restos,
Naqueles que também deixei .

A história que aqui vou contar, você não precisa acreditar. Tudo o que vou dizer é verdade, mas bem poderia ser mentira, ou mera lorota de escritor para iludir um pobre leitor inocente. Não confiem em mim só porque estou aqui, e escrevo. Confiança se conquista. O fato é que você, leitor, nunca saberá, não com certeza, se o que digo é verdade, portanto, julgue como quiser e puder.

Hoje acordei cansado, desanimado da vida, sentindo que não me resta muito tempo neste mundo infeliz. Por isso, parei de pena em punho, em um dos bancos da praça que durmo, e me pus a escrever. A roleta da memória gira e aponta, num pulo, o ponto do passado que devo relatar. Eu escrevo, mas é a pena que me guia. Mergulho-a no tinteiro, já quase seco das emoções e deixo que o sentimento repinte as telas apagadas do meu passado. Às vezes lembrar é doloroso, mas lembro pela ultima vez, em narrativa a essa caderneta, em que escrevo, que é, em verdade, a minha única testemunha, pois é a única que me acompanha desde a origem destes fatos.

Leitor amigo, nós dois temos algo em comum, você nunca saberá se eu existo ou existi de fato, e eu jamais saberei se você existe ou existirá, se alguém se interessou algum dia em ler estas anotações. Prefiro acreditar que você está aí, a me ler, caso contrário não teria forças para continuar escrevendo. Um Solilóquio é ainda mais solitário se a plateia está vazia.

Minha lembrança mais remota é a de um homem de chapéu, que batia a porta e deixava minha casa. Logo em seguida, minha mãe chegou à porta, olhou longos minutos para o homem que partia, e me chamou para dentro. Não lembro do rosto daquele homem. Não sei se era um mero cobrador ou o meu Pai. Minha mãe dizia que meu Pai havia morrido, portanto não me lembrava dele. Eu e minha mãe, em verdade, nunca chegamos a conversar sobre minha primeira lembrança, também, não tivemos tempo, ela morreu quando eu iria completar nove anos.

Minha casa, naquele tempo, era simples, três cômodos, de madeira, e rural. Morei nela até os doze. Minha irmã, prostituída aos nove, eu abandonei na má vida que levava, quando vim para a cidade. Quando vim, não trouxe nada, nem comida, nem roupas, nem esperança. Só tinha a estrada e os pés a me levar numa andança sem fim, para onde queriam... Fugi da má vida de minha irmã, que acabaria sendo a minha vida também, se ficasse por lá.

Tempos depois, eu havia crescido. Minha vida havia sido de dores e sofrimentos. Trabalhei feito burro, mas mal podia comer.

Um dia, eu tinha bebido demais e seguia cambaleando pela praça Sete de Setembro. Caí, o chão era frio e áspero, mas era o consolo que o bêbado precisava. Dormi, não sei por quanto tempo.

Quando acordei era dia. Ao meu lado sentado no banco da praça havia um homem que chorava. Aprumei-me, e na esperança de ganhar algum trocado coloquei-me ao seu lado no banco.

-Minha filha morreu. Foi morta por um cafetão! - disse o homem.

Um frio supersticioso atravessou-me a espinha. Preferi calar e escutar. Achei que assim seria mais solidário, o silêncio as vezes diz muito. Acredito que ele também assim pensou, pois por longos minutos não disse nada. Até que se levantou dispondo-se a partir.

-Eu tenho um filho, desaparecido, talvez também já morrido!

O homem se foi. Seu olhar penetrante ficou a me cortar o tecido sutil da alma. Seus olhos me diziam que ele encontraria, fosse onde fosse, "o filho perdido, talvez já morrido". Deitei no banco e ali me deixei ficar até que um guarda me expulsou. O rosto do homem desapareceu aos poucos da minha memória, mas a estranha sensação ficou para sempre.

Lembrei da minha irmã, da má vida que levava. Talvez ela já estivesse morta, morta por um cafetão. Lembrei dela e do homem que vira na primeira infância. Ele e o homem do banco guardavam uma semelhança, ambos não tinham rosto para mim.

Jamais vi o túmulo de meu Pai, nem sabia onde ficava ou mesmo se existia. Na galeria das lembranças que eu tinha, dois quadros eram seletos e se destacavam apenas pelo olhar. No primeiro, era o olhar de minha mãe, que parecia se despedir do passado, e no segundo estava o olhar daquele homem desconhecido que chorava a filha e buscava o filho perdido. Os olhares pareciam se encontrar, interpenetrar e completar o quadro vivo de minha memória, apesar de estarem separados pela imensidão do tempo e das situações que os envolviam.

Um dia, meu museu interno, fechado e empoeirado, já estava quase esquecido quando um novo quadro exigiu o lugar no acervo da memória.

Era um sábado, o dia corria, como tantos outros, e eu perambulava como em outros. Chovia, fazia frio. A caridade alheia já não se lembrava que o outro existia. Encharcado, deixei-me levar por meus pés, na certa eles sabiam para onde iam. Parei de frente a um grande hospital, sentia o corpo arder, apesar do frio que me fazia tremer. Dei alguns passos em sua direção e acordei, não sei quanto depois, numa sessão que parecia reservada a indigentes como eu. Na sequência, vi um homem que estava sentado à minha frente e me olhava. Não via os seus olhos pois os meus pareciam estar embaçados, mas sentia-os, seu calor me queimava.

-Enfim te encontrei! - disse o homem ao estático que era eu naquele momento.

O silêncio mais uma vez veio ao meu encontro. Aquele momento requisitava espaço junto às minhas recordações. Aquele homem poderia ser algum conhecido, um cobrador ou meu pai, que eu não conhecia a sepultura e nem sabia se de fato existia. Não olhei para ele, a felicidade, talvez baseada na ilusão, era demais e eu não podia ser feliz, já havia me acostumado com a desgraça, já éramos íntimos em demasia para nos separar. Levantei e fui embora.

O silêncio daquele momento pareceu se estender à eternidade e me incomodava como uma nota dissonante sob uma fermata eterna. Nunca mais vi nem tive notícias daquele homem. Vai ver ele era de fato meu pai, ou um louco qualquer que achou que me conhecia. Quem vai saber? Agora é apenas mais um quadro na galeria de seletos de minha memória triste. O homem da minha primeira infância, o da praça e do hospital, três quadros que formam um. Três lembranças de um só homem ou de uma só ilusão. Quem vai saber? O fato é que não tive coragem de descobrir.

Na vida a dúvida sempre foi minha maior companheira, a mais fiel. Sempre tive medo de acreditar. A dúvida que não busca resposta é farpa atravessada para sempre na alma da gente. E é com essa farpa que presenteio você!

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