Todas as tardes quando eu passava por aquela janela, ela estava lá. Linda,
risonha, com seus cabelos dourados emoldurando a mais bela escultura em forma
de menina. Melissa, esse era seu nome. Melissa nunca saia de casa, via o mundo
passar por aquela janela e o mundo passava e a via na janela. Não era
possível não notar seu sorriso, seu olhar cristalino mirando o
céu. Melissa era daqueles anjos raros que pousam na terra para espantar
o negrume da tristeza dos corações. E para isso bastava sorrir.
Seu sorriso iluminava.
Quando me mudei para ali, não conhecia ninguém. Minha casa ficava
perto da dela, há apenas duas praças. Na praça em que ela
morava havia um belo jardim, talvez cultivado pela menina, pensava eu sempre
que passava por lá. Eu era um homem sozinho, de meia idade, que muito
vivi e sofri pelos caminhos tortos que a vida me preparou. No meu rosto já
não havia a meigura, nem a doce figura dos sonhos que sonhei quando ainda
jovem. Em mim havia um homem, rude às vezes, e mais nada. O meu mundo
sem sol se enchia de cor quando voltando, ou vindo para casa, via aquele rosto
de luz.
Apaixonei-me. Estar ao seu lado era tudo que podia querer. Uma vida simples
era tudo que podia oferecer. Mas a menina era pobre, não iria se importar.
Com o coração cheio de sonhos e novas esperanças, esperei
e preparei o dia em que iria me achegar até sua casa. Certamente ela
deveria ter um pai severo, uma mãe correta e quem sabe um irmão
para espantar os pretendentes. Era preciso preparo, roupa nova, fala elegante
e um bom presente para encantar a moça. Afinal, na certa, já houve
outros pretendentes. E se tiveram outros esses não a conseguiram levar,
pois que ainda estava ali esperando por mim.
Aprontei-me e aprumei o peito. Vesti a melhor roupa, comprada a prestação
na loja da cidade, e fui ansioso a casa daquela menina. Bati, uma mulher com
olhar severo veio atender. Sua mãe, imaginei. Não era. Era uma
tia, que cuidava da menina. Perguntei se o pai estava. E não estava,
havia morrido há anos. A menina era órfã. Estremeci de
susto, mas continuei. Aquilo não podia ser um obstáculo. O que
mais uma órfã precisaria que um bom marido que lhe cuidasse?
Convidado a entrar, fui esperar na sala vizinha ao quarto.
- Vou chamar a menina. - Disse a tia de voz amarga, pigarreando sem parar.
Meu coração disparara. Finalmente conheceria meu grande amor.
Quanto tempo esperei, quanto confabulei imaginando este momento. Mas o momento
era único, impossível de imaginar. Busquei reparar bem todos os
detalhes, guardar todos os sentimentos. Um dia, quando já velhos e, eu
e ela, nos reuníssemos na sala com os netos, contaria todos os detalhes
daquele momento que precederia a felicidade de toda nossa vida.
Um ruído estranho fez-se ouvir vindo pelo corredor, na certa do quarto
da menina. É a velha, imaginei. Pus-me de pé. Não queria
perder nenhum detalhe de sua entrada. O som crescia e meu coração
disparava, já quase saltando, não cabia no peito.
Primeiro vai entrar a velha, eu pensava. Mas não... O que é aquilo?
Uma cadeira?
Sm, era uma cadeira. A menina, arrastada pela tia, vinha nela. Era linda como
a da janela. Só um detalhe, lhe faltava as duas pernas.
De susto estremeci e quase cai. Meu sonho desmoronou, aportou na noite triste
da realidade. E a grade pergunta surgiu: Namoraria a menina sem pernas emoldurada
pela janela?
Constrangedoras foram as palavras ditas naquela hora. Realmente havia tido outros,
muitos outros pretendentes. Mas como eu, todos se foram, encabulamos, assustados
e sem entender que a menina ainda assim era feliz. Tolos somos nós os
idealizadores do amor. Ela vivia e amava, sem idealizar nada. Olhava o céu,
via as nuvens, as estrelas, e aprendia com elas. Do mais alto sorvia o amor
que precisava para viver. E dali, de sua janela, irradiava luz para as flores
do jardim. E elas correspondiam, cresciam, floresciam, enchiam de perfume o
quarto da menina órfã, sem pernas, que eu não soube amar,
e jamais esqueci.
Hoje, não tenho netos. Pergunto-me se não estariam ali, naquela
janela, esperando por mim. Pergunto-me se ali, na praça daquela cidade,
eu não deixara para sempre, emoldurada pela janela, o rosto da minha
felicidade. Idealizei e não vivi. E continuei idealizando a vida toda,
acumulando desilusões. Tudo isso porque não soube ver que aquela
menina, sem pernas, sabia voar.