A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Humanos e um Chimpanzé

(Suyan Faria)

O chimpanzé está acordado quando são abertos os portões do zoológico e têm início as visitações. "Tudo outra vez, como diariamente há mais de quinze anos", pensa, ainda bocejando.

Não demora muito e aproxima-se da jaula sua primeira visitante. Uma menininha com bochechas rechonchudas e olhos arregalados. Os bolsos abarrotados de doces. A mãe, não menos redonda em toda a sua extensão física, mal consegue segurá-la pela mão, ocupada que também está com os lanches recém comprados.

O macaco faz sinal à menina para que lhe dê uma bala. Ela olha para ele, depois para as balas; encara-o seriamente e, por fim, grita: "é tudo meu!". A mãe vê graça na cena, faz também algumas caretas para o primata. Logo se afastam, vão conhecer o javali. O macaco, olhos semi cerrados, ar inegável de tédio, nem se mexe: só fica desejando que as duas continuem alimentando bem a Sra. Gula - até seus corpos explodirem como bombas de gordura.

O movimento no zoo está tranquilo. Poucos transeuntes. Mas quando pensa em voltar a dormir, desanimado e ocioso, surge-lhe à frente uma bela jovem que fala sozinha, masca chicletes freneticamente e usa uma minissaia curtíssima. O macaco não resiste e tenta agarrá-la pelas pernas. Ela livra-se dele, mas delicadamente para não machucá-lo, dando-lhe uma bronca como se fosse sua irmã mais velha: "até você, macaco? Assim não dá!".

Ele percebe que foi inconveniente. Faz cara de arrependido para tentar redimir-se. Então a moça sorri para ele, beija-lhe a mão enrugada, e de repente parece ter um estalo, "é isso!, você me inspirou para a redação, seu danadinho!, pode ficar com o meu pastel, que eu não posso perder tempo enquanto as ideias para o texto fervilham na minha cabeça". E lhe dá mais um apressado beijo, saindo em disparada. O chimpanzé, excitadíssimo, pede-lhe outros, mas ela já nem o vê.

Logo passa ali por perto um sujeito simpático, literalmente vestindo cartazes de propaganda, onde se lê: "A sua panéla uzáda váli um discontu di 5% na compra da nóva, i dá direitu a iscolher um super brindi: uma capa di bujão di gáis, ô um belíssimu dizimtupidôr di pia. Tudo issu, só nas Lójas Elíti".

Ele tira do rosto a máscara de palhaço e pendura-a no pescoço junto ao mega-fone, para que o bicho não se assuste, enquanto lhe entrega uma penca de bananas. Tarde demais: o pavor já aconteceu, não pela alegoria ou pelo homem ser quase completamente desdentado, mas porque o macaco não tinha certeza, até então, de que a crise estivesse tão acentuada; de que alguém precise se sujeitar àquilo; de que existe no Brasil, ainda, analfabetismo; de que, convenhamos, alguns lojistas desconhecem completamente noções de estética! Mas, para não constranger o bom homem, com algum esforço consegue tranquilizar-se, e até evita com maestria o infarto fulminante que, a princípio, parecera inevitável.

A visita não se demora: precisa continuar anunciando a promoção, levar dinheiro para casa. Talvez assim seus sete filhos tenham mais chance de serem alfabetizados e crescerem sem abandonar seus dentes pelo caminho.

Fim de tarde. Os funcionários se encaminham para fechar os portões daquele pequeno mundo animal. Antes, porém, consegue entrar o último visitante daquele velho morador. Barba, roupas e sapatos brancos. A princípio, o cansado animal pensa tratar-se daquele cientista que outro dia havia afirmado, na tv, serem 99,4% coincidentes os códigos genéticos dos homens e dos chimpanzés. Mas logo vê que se confundiu, porque o tal fulano, que é estrangeiro, provavelmente não iria àquele zoo, naquele horário, e ainda mais com trajes convencendo ter chegado de um tiroteio.

De fato, o engano. É um pai-de-santo, há meses mendigando pelas ruas da metrópole. É certo que não tem interesse na visita em si, mas sim em pedir ao macaco eventual sobra de alimentos. Este lhe dá as bananas restantes das que o banguela lhe trouxera logo cedo.

Enquanto o miserável corre para alcançar o portão aberto, feliz pelo lanche que tem nas mãos, o chimpanzé é levado para banhar-se. Se descuidarem dele por um minuto que seja, tentará se afogar na banheira. Afogamento letal.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br