A Garganta da Serpente
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Vento

(Sheila Fonseca)

Chegou em casa, entrou sem acender as luzes pisando leve como se fosse acordar alguém, mas morava só, era mania de épocas em que morava com a mãe de sono leve, que dormia no quarto da frente em posição estratégica para acompanhar o crescimento dos filhos, as andanças, as entradas sorrateiras noite à dentro e a derradeira saída para vida.

Acendeu a luz do abajur, gostava de luz indireta, do jogo de sombras que atiçava a imaginação; cabeça rodando de agitação e efeito da bebida fitou o apartamento e sorriu satisfeita, pois sentia prazer na liberdade de morar sozinha. Estava excitada, no frenesi de sempre ao chegar de uma noitada; as risadas e conversas emboladas ainda ecoavam em sua mente. Deitou no sofá se enroscando no veludo do seu gato que dormia em sono solto e ao sentir seu toque só mexia os bigodes e continuava em sua preguiça, pois os felinos são assim: entendem as noitadas porque também são notívagos, boêmios companheiros de farras.

O vento soprava suavemente em sua janela aberta, podia ouvir ao longe o sino mensageiro de uma vizinha. Que mensagens ele traria?

Ouvia o assobio fino dos morcegos que não a assustavam mais, os barulhos confusos, porém agradáveis da cidade ao fundo e aqueles sons a deixavam ainda mais longe, a mente mais solta, foi assim que ela lembrou de Carlos. Ele também estava na festa, sempre charmoso, vestindo logo a sua blusa preferida e talvez também da outra que o acompanhava na festa. O que teria visto naquela mulher? Não era o tipo dele, era gorda. Talvez fosse um pouco de exagero e maldade, não era gorda totalmente, mas à cima do peso nos seus rigorosos padrões, poucas formas - coisa que lembrava bem, ele sempre fizera questão - talvez fosse um pouco mais velha que ele, os cabelos eram curtos num corte moderno, parecia sim uma mulher moderna, passava uma certa fluência pela segurança e velocidade com que parecia falar ao longe, mas era um pouco masculinizada e definitivamente sem atrativos físicos dos quais ela podia - e costumava disfarçadamente - se gabar caso quisesse, pois sim, era bela, uma mulher alta, esguia, bom porte, bem feminina na maneira de ser, eram tipos diametralmente opostos. Esse Carlos, sempre surpreendendo... Achou gozado ao se lembrar de um elogio grosseiro que um ex-namorado fizera comparando-a à uma "égua quarto-de-milha" ao elogiar seu porte; achou uma grosseria de homem, detestou, mas depois consolou-se, era um elogio e afinal, era merecedora dele. Mas pensando bem, o que mais incomodava na tal mulher era a alegria dela ao lado do homem que amava e que a escolhera, pois também estava feliz, estavam em sintonia o que não deixava de ser algo bonito de se ver. De qualquer maneira ela sentiu-se vingada ao perceber o visível incomodo e por vezes o brilho triste nos olhos de Carlos ao vê-la tão bela, refeita, solta, se divertindo e divertindo, cobiçando e sendo alvo de cobiça, vivendo enfim.

O músico era interessante a conversa fluía gostosa, flertaram muito, trocaram telefones, mas ela não ligaria nunca. Ela gostava disso, de provocar, de ser vista e sair como chegou, como o sopro de vento que invadia a janela e agitava suas cortinas eternizando assim só momentos bons. Era assim, achava que a superficialidade trazia mais contentamento e menos tristeza, sentia a fugacidade das coisas, vivia a vida num sopro de vento.

De repente sentiu seus pensamentos serem tomados por uma agonia, o bater dos puxadores de madeira da cortina batiam compassados, crescentes. Ventania é coisa dissimulada, pensou: Chega tateando sorrateira, crescendo devagar, enrolando agente, quando menos se espera nos pega de surpresa e nunca vem sozinha, traz tempestades avassaladoras. Como a vida.

Esse era um vento estranho, pois apesar de inverno tinha um sopro quente e não parecia ter direção definida, mudava à todo momento, era um vento que não conhecia que rodopiava como os seus sentimentos depois daquela festa e do encontro inesperado com o Carlos, um antigo amor que fazia vir à tona um turbilhão de sentimentos que nem lembrava que existia e não sabia lidar. O que fazia sua mente rodar não era mais a agitação ou o efeito da bebida, mas o rodamoinho de lembranças boas e ruins, sensações de calores e calafrios, sabores doces e amargos que a faziam girar como o vento parecia agora soprar dentro dela. Ela vai até a janela abre as cortinas revoltas e se depara com um espetáculo único:

Um rodamoinho em frente a sua janela emanando descargas elétricas que irradiavam uma luz de fosforescência suave. Ela não teve medo, fechou os olhos e se deixou envolver pela ventania fascinante que agora inexplicavelmente adentrou o vão de sua janela e lá dentro da ventania, do olho do rodamoinho ouviu suave seu nome:

- Nina.

Concentrou-se para ouvir melhor e agora teve certeza, sim era seu nome baixinho ao fundo outra vez como num sussurro. Sua respiração ofegava no ritmo da ventania e mais uma vez mais alto:

- Nina.

Seu nome era Karina, somente os mais próximos a chamavam assim e o chamado se repetia cada vez mais alto até romper num grito:

- Nina!

Ela abriu os olhos tomada pela sensação inebriante da ventania e para sua surpresa se deparou com Carlos como um espectro translúcido, parado, cristalizado, lindo como no momento em que se conheceram; ele se deslocava com o vento mas numa velocidade mais baixa, como se em câmera lenta e não estava sozinho, lá estava Hélio um namorado de adolescência que a deixara para ficar com uma de suas mais queridas amigas. Ao fundo avistou Evandro um moreno índio que conheceu num carnaval e atou um romance que terminou na quarta-feira de cinzas e lá também estavam Roberto, Vitor, Felipe, Renato, Jorge, estavam todos sem exceção, eram seus ex-amores num desfile mórbido de cadáveres familiares. Eles giravam para baixo lentamente na direção do olho do rodamoinho que não podia se avistar de longe, mas parecia ser quente, aconchegante, sentia uma estranha sensação de segurança e descia junto sem fazer força.

A voz que chamava vinha da cima, era uma voz feminina familiar, mas que não podia atinar ao certo de quem era. Olhou para cima e avistou uma luz branca um tanto incômoda, fria, que fazia lembrar uma luz de UTI de hospital, gélida, impessoal. E a voz insistia:

- Nina! Vem Nina, anda!

- Sobe Nina!

Tinha medo da sensação de insegurança que aquela luz inspirava. Olhou para baixo em dúvida, era difícil a decisão e tinha de ser tomada.

- Nina anda, aqui é o futuro e o futuro é sempre melhor por mais que nos cause medo por ser desconhecido!

- Vai ser excitante, cheio de novidades eu prometo!

E aquela voz foi ficando mais distinta em sua mente, parecia a sua voz, sim definitivamente era igual a sua.

A decisão foi difícil, mas acreditava ter tomado a certa, resolvera subir até onde a voz chamava e estendeu os braços em direção a luz fria, cerrou os olhos novamente e a subida pareceu suave. Respirou fundo e ao abrir os olhos estava em sua sala, era madrugada, luz indireta, janela aberta, o gato a fitava com ares de cumplicidade. Ele sabia, tinha certeza. Pegou-o no colo roçando no veludo negro de seu pelo e tornou a sentar-se no sofá satisfeita, sentia-se mais leve. Estava pronta para a próxima ventania.

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