A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Um coração cheio de surpresas

(Sergio Godoy)

Não é por nada, não! Mas não estou entendendo, a única coisa que fiz - e se isso é castigo de Deus, acho meio injusto - foi deixar ele me tocar um pouco. De início achei meio estranho, senti uma voz dentro de mim que dizia: corra! mas fui sentindo um certo frio no estômago e até gostando daqueles dedos. A loja já estava fechada e nós dois ficamos até mais tarde preparando os pacotes com os presentes. Primeiro ele começou a falar que havia uma filha com a minha idade, que ela era estudante em um país com um nome estranho, não consegui entender, não. Tinha tanta caixa pra embrulhar que comecei a resmungar, queria ir pra casa, mas não dava pra recusar. Fiquei pensando no dinheirinho extra de natal. Minha mãe quer comprar um casaco pra minha vó que ainda mora lá em Minas e eu quero comprar um computador. Fiquei sabendo que o padre lá da igreja Santa Marta vai começar um cursinho pra quem quer aprender trabalhar com computador. Me deu a maior vontade, assim posso quem sabe arrumar um emprego de escritório. Imagina, sempre gostei de passar por aqueles prédios altos da Avenida Paulista e ficar olhando aquelas janelas grandes e pensando naquele povo todo trabalhando lá encima, dentro dos escritórios com chão todo coberto de carpete. Quantos domingos que não fui desde do Paraíso até a Consolação caminhando mais de três vezes, de ponta à ponta. Meu passeio preferido. Quando comecei a trabalhar aqui na loja, eu corria na folga do almoço, pegava o ônibus na Ipiranga só pra ver um pedacinho da avenida e voltava na pressa, mastigando meu lanche, mas feliz, muito feliz. Eu tenho uma amiga, a Patrícia, que acha que sou louca; ela prefere ficar lá mesmo pelo bairro, toda vestida com roupa nova, cutícula feita, o cabelo todo arrumadinho e o pescoço perfumado. Fica horas no portão conversando com as outras garotas, querendo mesmo chamar a atenção. Quando eu falei pra ela que tenho paixão pela cidade e quero trabalhar em um daqueles escritórios, ela riu da minha cara. Acho que ela não é tão amiga assim. Foi difícil terminar meu curso, mas consegui. Sei lá, quem sabe sou um pouco inteligente. Por isso que quero comprar esse computador e falar com o padre. Tenho que conseguir, tenho que conseguir! Já falei pra minha mãe, olha mãe, quero mesmo ajudar, a senhora sabe disso, não sabe? E também gosto muito da vovó, tadinha, sozinha e tão longe, mas não posso dar todo o meu salário não! Desse jeito não sobra nada e tenho que pensar um pouquinho em mim. Nossa!, foi uma confusão, mãezinha ficou gritando como se tivesse entrado um monstro dentro do corpo dela, bateu na mesa, levantou o braço pra mim e falou tanto que saí pra fora quase chorando. Juro, juro mesmo, só voltei porque não tinha pra onde ir. Depois tudo ficou bem. Na televisão tava passando Big Brother Brasil. Ficamos assistindo juntas e até esquecemos a gritaria toda. Ah! pra mim o melhor era aquele bonitão de Brasília; falava tanta coisa engraçada. Os olhos verdinhos...Ri tanto quando minha mãe foi pegar uma xícara de café e ficou repetindo: Big Brother Brasil. Até ela aprendeu inglês, veja só! Eu sei um pouquinho. Eu tinha uma professora, novinha, mas já era casada e tinha filhos, que ensinava muito bem. Acho que primeiro vem o computador, depois vou trabalhar até de Domingo só pra pagar um curso de inglês. ah, que maravilha, vou eu por aí falando uma outra língua e pisando no carpete de um escritório imenso, cheio de gente importante. Mas não sei quem foi que me falou que as mulheres nesses escritórios são péssimas, piores que os homens, que adoram mandar e sempre estão vestidas com aquelas roupas caras e que nem falam bom-dia. A Judite, que é vendedora na farmácia lá da Avenida São Luiz me disse que uma vez foi levar uma encomenda para um advogado e que a moça na recepção não deixou ela entrar, disse que não, que era proibido, que ela mesma entregaria o saquinho com o remédio. Eu serei bem diferente. Aprendi que a simpatia é a melhor forma de conquistar as pessoas, e usar de simpatia não arranca nenhum pedaço, não é mesmo? Foi por ser simpática que achei que o senhor Rezende não ia me fazer nada de sério. Tá bem, não foi a minha primeira vez, mas nunca fiquei por aí saindo com os rapazes. Ele colocou a mão na minha cintura e apertou. Fiquei gelada, parada como uma estatueta até que os dedos subiram e ele apertou aqui, bem no meu seio esquerdo, dizendo que o coração é cheio de surpresas quando chega o natal. Pensei em surpresas. Sempre gostei de surpresas, acho que é porque nunca tive muitas em toda minha vida. Mas a surpresa que ele me deu foi quando mordeu meu pescoço, e aí a voz começou a gritar: corra! Acho que comecei a gostar, porque minhas pernas ficaram tremendo e ele puxou minha mão pra dentro da calça que já estava aberta com o cinto pendurado batendo contra o molho de chaves que parecia mesmo sininhos de natal. Ele me deitou aqui, sobre esse monte de papel colorido, colocou os dedos por baixo de meu vestido e me acariciou bastante. Não pensei em mais nada, foi tão estranho e gostoso ao mesmo tempo. E ele ficou encima de mim, tão forte como uma tempestade cheia de raios. Com meus olhos fechados eu ouvia ele respirando forte em meus ouvidos e falando umas coisas que não conseguia saber o que era. E tudo foi passando, fiquei deitada sobre os papéis amassados até ele se levantar e vestir a calça. Um pouco zonza me coloquei de pé e foi aí que aconteceu: ele tava se apoiando no canto do balcão, a cara toda molhada de suor, os olhos esbugalhados e procurava alguma coisa dentro do bolso quando simplesmente caiu. É, caiu! Como um pedaço de fruta envelhecida. Pô! Só ouvi o barulho daquele corpo pesado chocando a árvore de natal. Fiquei paralisada. Não sabia o que fazer. E ele não se mexeu mais. As bolas de natal quebradas, o resto dos enfeites espalhados. Foi aí que pensei em telefonar. A polícia chegou e veio também uma ambulância. Primeiro eles me fizeram um monte de perguntas e depois me trancaram aqui, dentro desse carro. Não sei mais o que falar...meu coração está batendo tão forte que... fico pensando na minha mãe, no padre da igreja Santa Marta, na Patrícia... Meu Deus!

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br