A Garganta da Serpente
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Odete é para casar

(Sidiney Breguêdo)

O Aberlado já havia morrido há algum tempo e foi por isso que Odete entrou na pilha da amiga. Naquele dia sentiu uma vontade irresistível de entrar em um daqueles sites da internet, onde as pessoas se conhecem e conversam online. Primeiro esperou os filhos, tinha dois, saírem para seus afazeres, estava ansiosa, as mãos suavam e suas pernas tremiam como se fosse ter um encontro, coisa que já não acontecia há muito tempo. Colocou uma música suave no ambiente, vestiu uma roupa de seda, adequada para ficar por horas ao computado, caso encontrasse algum pretendente a altura. Foi tudo assim, muito rápido, como era uma mulher séria, não poderia dar espaço para que os filhos percebessem seu lado leviano. Mas o deus grandioso sabia como vinha se sacrificando sem um homem. Precisava de um, mesmo que virtual. Ligou o computador. As letrinhas começaram a subir, dançando na tela preta. Agora sabia que entraria em outro universo. Lembrou da amiga dizendo: "sua boba, outro dia conversei com um advogado bem-educado, acabamos nos encontrando, é um crime deixar um homem daqueles passar." Esfregou as mãos. Sentiu a pressão de colocar no computador os números de sua senha pessoal. Um gesto sem significado tornou-se um ritual desengonçado, mas maravilhoso que fez seu coração acelerar. Enquanto esteve casada, nunca traiu o marido. Era, de fato, uma dona de casa, na acepção da palavra. Lembrava os leões de pedra às portas do império napoleônico. Acionou com dois cliks o botão do internet explore e aguardou carregar os pluguins, como de costume. Sua sorte é que aprendeu usar a internet muito cedo, mas em quase tudo ainda era muito inocente. Caminhava pelo mundo virtual deixando rastros, suas senhas ficavam pelo caminho, assim era também com o seu CPF e tudo o mais. Desta vez seria mais cuidadosa, já que como dizia sua amiga: "não vá deixar a calcinha no reservado da sala de bate-papo." As duas riam até, depois de algumas cervejas. A amiga já não sabia o que era o mundo físico, embora tivesse marido, aquele não existia. Apenas trabalhava e trabalhava, enquanto a mulher servia apenas para servi-lhe. Com o tempo foi se rendendo ao mundo virtual e depois não parou mais. O marido, coitado, debruçado sobre o trabalho não notava a mulher sempre abraçada àquele notebook. Odete, na sua infinita inocência, estava a escolher o nome com o qual entraria na sala de bate-papo. Pensou bastante, mas acabou por colocar seu nome mesmo, apenas acrescido do termo cam, ou seja, Odetecan. Não ficou muito bonito, mas isso não importaria. De fato, seus argumentos é que traria até ela um deus grego que estivesse por ali. Odetecam entra na sala, anunciaram, e ela toda dona de si sentiu o gosto saboroso de sair de casa. Era como estar em outro país recebendo as honras de primeira dama de outro Estado, mas viúva, claro. O primeiro que veio conversar com ela não era muito respeitador e logo a irritou. Ficou perseguindo-a com seus impropérios e a fez perceber que o mundo virtual é tão podre quanto o nosso estragado mundo físico. Sacudiu a veste de seda e saiu daquela sala. Entrou em outra. Lembrou do filho. Seu filho Rodrigo sempre dizia para o irmão e ela escutava. "eu entro só pra zoar!" no que o irmão dizia: "Você é estúpido, poderia aproveitar para conhecer as pessoas, para fazer amizades." De fato, eram muito diferentes, enquanto Rodrigo se dizia um cafajeste e cruzava a cidade com um grupo de motoqueiros baderneiros cometendo todo tipo de atrocidades, o irmão era sério e respeitador. Pedro, o filho mais novo, estudava o tempo todo. Dizia que o conhecimento era sua vaidade. De fato, dentro de sua simplicidade, os cabelos meio que jogados iam caracolando-se. Não apartava dos óculos nem mesmo para dormir. Era a mãe que os tirava, somente quando adormecia. Na nova sala deu mais sorte, foi recepcionada por um homem bastante educado. Saudou-a com um macio 'boa noite', isso já a encheu de coragem. Como quisesse cortejá-la com cuidado, sem expô-la aos impropérios dos outros a convidou para um reservado. Odete foi às nuvens, já que ele acentuou que queria protegê-la. Foi assim que Odete enrubescida percebeu a seriedade daquele homem. Correu sangue por sua face branca, embora o homem não dissesse nada que a desabonasse. Conversaram por horas, sempre muito educados sobre os mais diversos assuntos. Nesse tempo Odete riu como nunca havia rido de um homem. Aduziu que aquele seria seu homem, foi uma decisão imatura, sabia, mas não tinha dúvida de que empatia sem lógica havia determinado aquele encontro. Todavia, o respeito daquele homem a deixava desconfortável, não sabia quando ele iria abordá-la com palavras fortes. Foi por isso que, depois de horas, naquele chove não molha, Odete perguntou se a webcam de Paulo estava funcionando. Ele respondeu que sim, no que ela respirou aliviada. Sabia que ele iria ligá-la a qualquer tempo e propor o inusitado. Seu lado de leão faminto iria aflorar e atacá-la. Abriu os botões da blusa de forma que aquele calor pudesse ser reduzido. Do outro lado o internauta enaltecia o gozo e brilho da língua portuguesa. Falava de coisas preciosas, lembrou como grafava determinadas palavras, ostentando a felicidade de participar de tais mudanças. Odete por outro lado, não estava gostando daquele papo, lembrou da amiga que sempre contava histórias picantes de suas viagens na internet. Aquela estava boçal, mas estava feliz, já que do outro lado, tinha um homem sério. De fato deu sorte, e como não recebesse convite para ligar a webcam limpou a garganta e sugeriu. "Sua câmera está funcionando?", recebeu a resposta; "sim!" Odete, foi ao delírio, agora a conversa seria outra. Arrumou-se na cadeira, passou a mão pelos seios tesos e pediu: "liga ela para eu te ver." Sentiu a voz da amiga no ouvido, já sabia o que diria, quando a vesse iria perguntar se marcou encontro. Marcou ou não? Diria, sem esperar que Odete contasse. A câmera começou a ser acionada e ela foi ao delírio, fechou os olhos, iria finalmente ver aquele homem gostoso. De olhos fechados, sentiu subir por sua alma o gosto gelado de sangue frio que equaciona estes momentos. De repente escutou aquela voz: "Mãe?!" Odete não foi feliz no seu primeiro encontro, era seu filho Pedro.

  • Publicado em: 20/04/2017
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