Carcomida
Velha e fazia careta, assustava as crianças gritava pelas ruas com ares
de deboche.
"toda doença é uma derrota, uma derrota do corpo e da mente!"
"toda doença é uma derrota, uma derrota do corpo e da mente!"
"toda doença é uma derrota, uma derrota do corpo e da mente!"
Muito suja, esfarrapada, quase não enxergava, fedida, andava carregando
trapos e latas e para cada dia da semana tinha uma frase sempre rindo e desdenhando.
"sexo, amor e tesão não tem ligação"
"sexo, amor e tesão não tem ligação"
"sexo, amor e tesão não tem ligação"
Ela dormia dentro de um buraco no fim da rua, quase ninguém chegava perto.
Uns achavam que ela era uma bruxa, outros diziam que já tinha sido rica
e uma grande estudiosa, eu sempre tive a minha opinião, é uma
veia feia que só fala besteiras.
Algumas vezes ela batia nas portas, esperava o pessoal atender e gritava:
"limpa a casa, a casa é dentro e fora do portão"
"limpa a casa, a casa é dentro e fora do portão"
"limpa a casa, a casa é dentro e fora do portão"
Quando era na minha casa ela dizia:
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó"
Eu desde pequeno detestava aquela velha, e a minha vontade de matá-la
ano após ano foi aumentando. Muitas vezes eu confessava o meu desejo,
mas ninguém acreditava. Uma vez ela começou a gritar no meio da
rua:
"Terra de Campeões, mar de heróis e o resto ninguém
quer conhecer"
"Terra de Campeões, mar de heróis e o resto ninguém
quer conhecer"
"Terra de Campeões, mar de heróis e o resto ninguém
quer conhecer"
Uma razão clara eu não tinha por odiar aquela veia, era como se
fosse uma força maior do que eu. As minhas raivas eram depositadas todas
em função de repudiar a existência dela, e todos os comentários
negativos que eu expressava eram na direção dela.
Na praça da igreja ela gritava:
"Abre a janela deixe o vento e o sol entrar a luz é forte e bate
no rosto força os olhos a serem fechados"
"Abre a janela deixe o vento e o sol entrar a luz é forte e bate
no rosto força os olhos a serem fechados"
"Abre a janela deixe o vento e o sol entrar a luz é forte e bate
no rosto força os olhos a serem fechados"
Em frente a padaria o discurso era outro:
"Aquece meu corpo o vento refresca, o som do rio e do guaipeca latindo
não me deixam esquecer onde eu estou".
"Aquece meu corpo o vento refresca, o som do rio e do guaipeca latindo
não me deixam esquecer onde eu estou".
"Aquece meu corpo o vento refresca, o som do rio e do guaipeca latindo
não me deixam esquecer onde eu estou".
Atrás da prefeitura:
"quero aprender francês só sei dizer abatjour, quero mais
danças polonesas quem sabe? Tenha curiosidade de ler os manuscritos de
um monge".
"quero aprender francês só sei dizer abatjour, quero mais
danças polonesas quem sabe? Tenha curiosidade de ler os manuscritos de
um monge" .
"quero aprender francês só sei dizer abatjour, quero mais
danças polonesas quem sabe? Tenha curiosidade de ler os manuscritos de
um monge".
Quando a farmácia abria ela já estava lá esperando os donos
e gritava:
"roça, roça, roça".
"roça, roça, roça".
"roça, roça, roça".
No horário do recreio ela parava em frente à escola esperava que
as crianças se juntassem para dizer:
"aqui em frente passa uma estrada onde ela acaba eu não sei e dificilmente
vou saber, falta-me tempo e a escada já me espera".
"aqui em frente passa uma estrada onde ela acaba eu não sei e dificilmente
vou saber, falta-me tempo e a escada já me espera".
"aqui em frente passa uma estrada onde ela acaba eu não sei e dificilmente
vou saber, falta-me tempo e a escada já me espera".
A cara enrugada, o rosto marcado, unhas sujas, eu ficava observando ela da janela
da minha casa:
"Coxilha".
"Coxilha".
"Coxilha".
A carcomida morava em um buraco, acho que era um bueiro desativado, e toda noite
um senhor ia visitá-la, o nego gazuga, um vagabundo, que perambulava
pelas cidades vizinhas e quando chegava na minha vila ele não deixava
de fazer uma visita à carcomida.
Gazuga.
Errado, todo errado, sempre vestido como pedaços de ternos e calças
remendadas, ele tinha uma postura firme, um olhar crente. Gazuga aparentava
ser um senhor de posses, alguém viajado e educado, nem as provocações
das crianças e os olhares atravessados das vizinhas e donos de estabelecimentos
comercias o tiravam do pedestal que ele se punha em sua caminhada em direção
a toca da carcomida.
Na maleta ele carregava vários papéis escritos de próprio
punho, eram dizeres estranhos que ele distribuía a qualquer um e quando
acabava ele mesmo discursava, todos sabiam que ele estava por perto quando ouviam
o seu chamado:
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
Logo começava o discurso:
"de um a nove
o último é o céu
pedras em risca
tente outra vez
a dança é até o número cinco, direita
e esquerda em um
e dois, feito saci no
três, quatro e cinco
jogo no nove que
bicho é esse, estou
quase lá, paro tudo
não quero chegar
tão rápido no céu".
Todo suado, o negro de uma pele morena, fazia um esforço, se emocionava,
o nego gazuga só esperava a noite cair e ia ao encontro de Carcomida.
No dia em que a primavera chegou fui espiar os dois no buraco, eu carregava
um galão de gasolina e fósforo. Me escondi atrás de uns
arbustos e ouvi ele dizendo a ela:
"um no meio outro no canto aquele pendurado no teto e dois indo pra lá
e para cá, o que não quer dizer nada".
Ela ria, ria alto, era estridente o riso dela:
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuga, Gazuga, Gazuuuuuuuuuga".
E mais risos, o cheiro era forte, ninguém ia sentir falta deles, eu odiava
eles, tinha náuseas, comecei a despejar a gasolina:
"mar de heróis"
"mar de heróis"
"mar de heróis"
"Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuuuuuga".
"Gazuuuuuuuuuga".
As gargalhadas eram altas e eu ateei fogo:
"mar de heróis".
"mar de heróis".
"mar de heróis".
Presenciei tudo, a vingança das crianças, o encerramento dos discursos,
o fim dos maus cheiros, eu estava trazendo o sossego das vizinhas, a calma para
os recreios. Minha atitude me trouxe orgulho, ali estavam meus medos virando
cinzas, sendo carbonizado, de fagulha em fagulha engrandecendo minha alma, as
chamas eram sucesso. Voltei para casa e me entreguei a um sono tranquilo.
As evidências do meu crime eram claras, a culpa não foi negada,
o cárcere agora é o meu lar, e de todas as vergonhas que eu passo
a pior é reconhecer que sem liberdade o tempo vira pó.
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó"
"o tempo vira pó".