Maravilha! Precipitara-se em festejos esvoaçantes sobre o apetitoso acepipe
vermelho a que vários outros colegas acorriam, machos e fêmeas, sem
preocupar-se com a divisão da guloseima; havia para todos quanto por lá
resolvessem satisfazer os imperativos do estômago ou simplesmente petiscar.
O aroma, verdadeiramente divino, afigurava-se-lhes algo entorpecente. Sim, chegava
mesmo a excitar-lhes as paixões, e muitos pares se formaram ali mesmo a
dividir romanticamente o banquete. Alguns estavam espalhando que o alimento era
afrodisíaco!
Em situações semelhantes, há um secreto e algo sádico
desejo de fitar o objeto da saciedade por alguns minutos privando-se de prová-lo,
para assim estimular ainda mais as paixões, de modo que quando se mergulha
ao regalo... é redundante continuar. É o que fez então
nosso pequenino. Regozijou-se na delícia daquele acepipe divino, até
fartar-se.
Novos e ilimitados horizontes se lhe ofereciam entretanto, e a aragem que lhe
trazia novos aromas o atraiu para além daquelas paragens; voou, não
longe, e avistara enormes limites que aparavam a luz do sol quente do meio-dia.
Em sua visão tanto difusa quanto confusa, também não fazia
grandes noções de perigo; era, é certo, rápida o
bastante para evadir-se das ameaças com relativa facilidade. Mas, somando-se
os atributos da confusão com as tentações do paladar, complica-se
o enredo. Um objeto enorme e animado remexia algo muitíssimo apetitoso
dentro de um não menos descomunal disco de abas ligeiramente pronunciadas;
e como estômago cheio nem sempre significa satisfação, precipitou-se
ao alvo num rasante pesado e algo vacilante, onde permanecera apenas alguns
segundos, ocupados logo em provar aquilo que o atraíra assim de um outro
regalo tão bem sucedido.
Disse que ali permanecera somente por alguns segundos; é que imediatamente
algo descomunalmente grande passara-lhe zunindo, e por pouco não o arroja
dentro de um líquido amarelo... que lhe pareceu doce. Sim! era doce.
Soube-lhe o sabor assim que pousou insistente na borda daquilo que continha
enorme quantidade daquele néctar. Desceu até o fundo do estranho
material, através do qual se podia enxergar o que se passava fora dele;
não viu entretanto quando aquilo que quase lhe acertara minutos atrás
o aprisionara ali dentro mesmo, e o desespero então o tomou por inteiro.
Por mais que esvoaçasse, por mais rápido que o fizesse, com maior
violência aquelas paredes transparentes o continham.
O pior foi quando uma torrente infindável de água desceu por
entre o que lhe obstruíra a passagem por onde entrara, e por fim sentiu
que era-lhe impossível fugir das águas; estas o alcançaram,
o tomaram, o fizeram girar alucinantemente enquanto sufocava, e nada mais podia
distinguir sua visão, senão um turbilhão de objetos ora
reluzentes, ora transparentes, depois opacos, água, água e mais
água. Finalmente, após um minuto de agonia tudo se lhe cessara.
- Malditas moscas essas que vêm infestando essa cozinha! De onde têm
vindo essas pragas?
A mulher, ocultando a graça que achava na irritação do
marido com as moscas, comentou enquanto lavava a louça que deviam vir
de fora, que era de onde estava vindo constantemente uma aragem fétida
de origem ignorada. O pai, com isso, lembrou-se da queixa triste da pequena
e única filha que contava então seis anos, sobre o sumiço
do presente que ganhara dele quando completara cinco; após alguns segundos
de reflexão, saiu decidido para o quintal, a ver se farejava a origem
daquele cheiro que havia alguns dias perturbava a família toda e empestava
todos os cômodos nas horas mais quentes do dia.
Depois de olhar para o telhado e permanecer algum tempo hesitante, encorajou-se;
adentrou ao barracão onde guardava as ferramentas e de lá saiu
com uma escada de madeira, pela qual subiu até o telhado e pôde
assim, tomado de asco, encontrar a origem da fedentina: o gato da filhinha já
em auto grau de putrefação, repleto de vermes e moscas vorazes.
O espetáculo quase o fez devolver o alimento que tinha acabado de tomar,
e o fez descer tão depressa da escada que quase despencou-lhe de cima.
Não pode proceder à limpeza ele mesmo; recorreu então ao
serviço da prefeitura. Tanto o manjar divino das moscas como motivo da
náusea do pai de família, foi dali retirado e levado à
viatura onde teve seu destino definido no Centro de Zoonoses.
De uma coisa a outra, há a mesma diferença que entre os olhos
de uma mosca e os olhos de um homem da classe média-baixa suburbana.
Como se vê, uma questão de ponto de vista. As moscas deleitam-se
com a podridão. Os cidadãos, com os restos que os privilegiados
lhes destinaram. E assim permanece girando este globo, na mais perversa harmonia.
(4 de Fevereiro de 2005)