A Garganta da Serpente
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Sentidos de mosca

(Sérgio Luís do Carmo)

Maravilha! Precipitara-se em festejos esvoaçantes sobre o apetitoso acepipe vermelho a que vários outros colegas acorriam, machos e fêmeas, sem preocupar-se com a divisão da guloseima; havia para todos quanto por lá resolvessem satisfazer os imperativos do estômago ou simplesmente petiscar. O aroma, verdadeiramente divino, afigurava-se-lhes algo entorpecente. Sim, chegava mesmo a excitar-lhes as paixões, e muitos pares se formaram ali mesmo a dividir romanticamente o banquete. Alguns estavam espalhando que o alimento era afrodisíaco!

Em situações semelhantes, há um secreto e algo sádico desejo de fitar o objeto da saciedade por alguns minutos privando-se de prová-lo, para assim estimular ainda mais as paixões, de modo que quando se mergulha ao regalo... é redundante continuar. É o que fez então nosso pequenino. Regozijou-se na delícia daquele acepipe divino, até fartar-se.

Novos e ilimitados horizontes se lhe ofereciam entretanto, e a aragem que lhe trazia novos aromas o atraiu para além daquelas paragens; voou, não longe, e avistara enormes limites que aparavam a luz do sol quente do meio-dia. Em sua visão tanto difusa quanto confusa, também não fazia grandes noções de perigo; era, é certo, rápida o bastante para evadir-se das ameaças com relativa facilidade. Mas, somando-se os atributos da confusão com as tentações do paladar, complica-se o enredo. Um objeto enorme e animado remexia algo muitíssimo apetitoso dentro de um não menos descomunal disco de abas ligeiramente pronunciadas; e como estômago cheio nem sempre significa satisfação, precipitou-se ao alvo num rasante pesado e algo vacilante, onde permanecera apenas alguns segundos, ocupados logo em provar aquilo que o atraíra assim de um outro regalo tão bem sucedido.

Disse que ali permanecera somente por alguns segundos; é que imediatamente algo descomunalmente grande passara-lhe zunindo, e por pouco não o arroja dentro de um líquido amarelo... que lhe pareceu doce. Sim! era doce.

Soube-lhe o sabor assim que pousou insistente na borda daquilo que continha enorme quantidade daquele néctar. Desceu até o fundo do estranho material, através do qual se podia enxergar o que se passava fora dele; não viu entretanto quando aquilo que quase lhe acertara minutos atrás o aprisionara ali dentro mesmo, e o desespero então o tomou por inteiro. Por mais que esvoaçasse, por mais rápido que o fizesse, com maior violência aquelas paredes transparentes o continham.

O pior foi quando uma torrente infindável de água desceu por entre o que lhe obstruíra a passagem por onde entrara, e por fim sentiu que era-lhe impossível fugir das águas; estas o alcançaram, o tomaram, o fizeram girar alucinantemente enquanto sufocava, e nada mais podia distinguir sua visão, senão um turbilhão de objetos ora reluzentes, ora transparentes, depois opacos, água, água e mais água. Finalmente, após um minuto de agonia tudo se lhe cessara.

- Malditas moscas essas que vêm infestando essa cozinha! De onde têm vindo essas pragas?

A mulher, ocultando a graça que achava na irritação do marido com as moscas, comentou enquanto lavava a louça que deviam vir de fora, que era de onde estava vindo constantemente uma aragem fétida de origem ignorada. O pai, com isso, lembrou-se da queixa triste da pequena e única filha que contava então seis anos, sobre o sumiço do presente que ganhara dele quando completara cinco; após alguns segundos de reflexão, saiu decidido para o quintal, a ver se farejava a origem daquele cheiro que havia alguns dias perturbava a família toda e empestava todos os cômodos nas horas mais quentes do dia.

Depois de olhar para o telhado e permanecer algum tempo hesitante, encorajou-se; adentrou ao barracão onde guardava as ferramentas e de lá saiu com uma escada de madeira, pela qual subiu até o telhado e pôde assim, tomado de asco, encontrar a origem da fedentina: o gato da filhinha já em auto grau de putrefação, repleto de vermes e moscas vorazes.

O espetáculo quase o fez devolver o alimento que tinha acabado de tomar, e o fez descer tão depressa da escada que quase despencou-lhe de cima. Não pode proceder à limpeza ele mesmo; recorreu então ao serviço da prefeitura. Tanto o manjar divino das moscas como motivo da náusea do pai de família, foi dali retirado e levado à viatura onde teve seu destino definido no Centro de Zoonoses.

De uma coisa a outra, há a mesma diferença que entre os olhos de uma mosca e os olhos de um homem da classe média-baixa suburbana. Como se vê, uma questão de ponto de vista. As moscas deleitam-se com a podridão. Os cidadãos, com os restos que os privilegiados lhes destinaram. E assim permanece girando este globo, na mais perversa harmonia.

(4 de Fevereiro de 2005)

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