A Garganta da Serpente
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Terra dos Narcisos

(Sérgio Luís do Carmo)

A cidade em que vivia desde tenra idade, embora lhe fosse conhecida, nunca guardara com ele algum traço que fosse de identidade cultural ou pessoal; vivera e caminhara pelas suas vias durante vinte e seis anos sem que em instante algum tudo lhe não parecesse hostil, impessoal e desolador. Se ainda vivia ali, era porque não lhe deixava outra escolha as circunstâncias; se andava pelas ruas largas, escuras e desertas, repletas de ameaças e ódio, era unicamente por mera necessidade que o fazia.

Assim procedia no tempo a que se refere esta narração; fora obrigado mais uma vez a trilhar aqueles ingratos caminhos, em busca de um comércio aberto onde pudesse comprar um maço de cigarros. Transporte coletivo caro, serviço ineficiente. Sempre era levado a empreender essas caminhadas por causa do tempo que se perdia esperando por uma condução, tempo esse que tornava inviável qualquer projeto, ainda com mais efeito visto que o dia em questão era um domingo.

E se tudo respirava a uma total inércia, havia em contrapartida uma profusão de sons abomináveis que se misturavam na atmosfera estagnada, vindo dos carros conduzidos por criaturas de extrema incapacidade perceptiva, que poluíam o espaço circulando com o som em máximo volume. Ufa! Tal coisa por si só se bastaria. Boa coisa ao menos era o dia, que se exibia ostentoso em magnitude, oferecendo uma brisa fresca apesar do sol quente; o céu, de um azul purificador, prestava um auxílio valioso aos sentidos.

Os comércios locais, parecia-lhe, estavam de boicote com as suas necessidades; mas que diabos, queria apenas um maço de cigarros! Entretanto fora obrigado a alongar cada vez mais sua jornada ruas adentro, e eis que uma placa que pendia do poste à entrada de uma delas chama-lhe a atenção. "Rua dos Narcisos". Interessante denominação! Deteve por alguns instantes a sua marcha, a contemplar a sugestão que vinha do nome. Nada mais a propósito. Um veículo quase o atropelou ao atravessar a rua, enfiando por ela em máxima velocidade, sem sinalizar com a seta. Não bastando tal proeza, o monstrorista ainda colou a mão na buzina e gritou-lhe impropérios. Rua dos Narcisos!

Refazendo-se do susto, retomou a marcha, desceu a rua até sair dela e tomar outra que lhe era perpendicular. Ali foi tomado de surpresa pela balbúrdia formada por ampla aglomeração impedindo não só o trânsito de veículos como até de pedestres. Gritavam, bebiam, dançavam sob um som estridente e repugnante a um par de ouvidos que não fosse portador de alterações provenientes de graves anomalias genéticas. Ao passar pela pequena multidão, foi alvo de chacotas ditas à distância, impregnadas da mais torpe estupidez de que é capaz uma mente originalmente imbecil; mas imaginou que estivesse sonhando quando viu, numa outra paca, esta de cunho informativo ao trânsito, a seguinte inscrição: "Bairro dos Narcisos - Pronto socorro à esquerda". Bairro dos Narcisos!

Ciente de que não haveria socorro para aquilo num pronto-socorro, seguiu ainda assim pela via que a placa indicava, e que com efeito desembocava numa casa de saúde; sentindo-se já nauseado com o que vira, e que sempre era constrangido a presenciar, pensou mesmo em ali adentrar a ver se lhe ministravam algum tranquilizante faixa-preta. Mas a portaria estava quase oculta pela completa desordem que ali se instalara: carros atravessados em todas as direções, uns querendo entrar, outros sair, tudo a um só tempo, pois que nenhum deles jamais dignar-se-ia aguardar para que outro pudesse entrar ou sair; ao contrário, trocavam buzinadas e berros, enquanto os transeuntes espremiam-se entre os veículos, todos digladiando-se por espaço, sempre buscando passar por sobre os outros para garantir a satisfação dos próprios caprichos. Notou então estar não na Rua dos Narcisos, ou no Bairro dos Narcisos, Mas na Cidade dos Narcisos, no País dos Narcisos, onde todos contemplavam satisfeitos a si mesmos com seus pequenos e mesquinhos desejos fúteis, preocupados unicamente com a sua satisfação, demarcando seus territórios como cães, tomando como seu o que pertence a outrem, rosnando aos intrusos que ameaçavam invadi-lo.

Mas isto não lhes parecia um inferno como parecia ao nosso amigo, cada vez mais nauseado com o que via. E tais coisas, não as via pela primeira vez; não. Mas era sempre assim. Aquele bolo que lhe subia pelo esôfago. E analisando bem aquela turba, poder-se-ia mesmo concluir que sentiam-se satisfeitos com seu caos, que o próprio caos era a única maneira pela qual seriam capazes de viver em comum, seu pacto social.

Mas a ele, que amava a virtude, que amava o valor, que amava a ética, o mérito e o gênio das grandes obras, a ele que amava, (antes que me acuses, advirto-te de que isto não é um folhetim romântico do século XIX, e nem a virtude é menos virtude por a considerares ultrapassada) não poderia haver nada mais destrutivo; viver num mundo onde tudo quanto representasse o oposto do que é sublimemente criador está objetivado, enquanto tudo o que constrói restringe-se ao campo da ideia de raros indivíduos, submersos entre os detritos da bestialidade soberana.

Receber-lhe o cuspe imundo e torpe, por negar-se a involuir para tornar-se como ela, ser alvo do seu ódio por ser infinitamente mais do que lhes permite a rudimentar capacidade de ser; um ódio ressentido, permeado pelo fracasso em simplesmente existir. Um cuspe impregnado da inveja em sua forma mais mesquinha, de despeito e frustração. E eis que a multidão de confusos Narcisos sempre se trairá diante das naturezas sublimes; com riqueza alguma lhes poderá contribuir, nem nada lhes poderá tirar.

(4 de dezembro de 2005)

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