A cidade em que vivia desde tenra idade, embora lhe fosse conhecida, nunca guardara
com ele algum traço que fosse de identidade cultural ou pessoal; vivera
e caminhara pelas suas vias durante vinte e seis anos sem que em instante algum
tudo lhe não parecesse hostil, impessoal e desolador. Se ainda vivia
ali, era porque não lhe deixava outra escolha as circunstâncias;
se andava pelas ruas largas, escuras e desertas, repletas de ameaças
e ódio, era unicamente por mera necessidade que o fazia.
Assim procedia no tempo a que se refere esta narração; fora obrigado
mais uma vez a trilhar aqueles ingratos caminhos, em busca de um comércio
aberto onde pudesse comprar um maço de cigarros. Transporte coletivo
caro, serviço ineficiente. Sempre era levado a empreender essas caminhadas
por causa do tempo que se perdia esperando por uma condução, tempo
esse que tornava inviável qualquer projeto, ainda com mais efeito visto
que o dia em questão era um domingo.
E se tudo respirava a uma total inércia, havia em contrapartida uma
profusão de sons abomináveis que se misturavam na atmosfera estagnada,
vindo dos carros conduzidos por criaturas de extrema incapacidade perceptiva,
que poluíam o espaço circulando com o som em máximo volume.
Ufa! Tal coisa por si só se bastaria. Boa coisa ao menos era o dia, que
se exibia ostentoso em magnitude, oferecendo uma brisa fresca apesar do sol
quente; o céu, de um azul purificador, prestava um auxílio valioso
aos sentidos.
Os comércios locais, parecia-lhe, estavam de boicote com as suas necessidades;
mas que diabos, queria apenas um maço de cigarros! Entretanto fora obrigado
a alongar cada vez mais sua jornada ruas adentro, e eis que uma placa que pendia
do poste à entrada de uma delas chama-lhe a atenção. "Rua
dos Narcisos". Interessante denominação! Deteve por alguns
instantes a sua marcha, a contemplar a sugestão que vinha do nome. Nada
mais a propósito. Um veículo quase o atropelou ao atravessar a
rua, enfiando por ela em máxima velocidade, sem sinalizar com a seta.
Não bastando tal proeza, o monstrorista ainda colou a mão
na buzina e gritou-lhe impropérios. Rua dos Narcisos!
Refazendo-se do susto, retomou a marcha, desceu a rua até sair dela
e tomar outra que lhe era perpendicular. Ali foi tomado de surpresa pela balbúrdia
formada por ampla aglomeração impedindo não só o
trânsito de veículos como até de pedestres. Gritavam, bebiam,
dançavam sob um som estridente e repugnante a um par de ouvidos que não
fosse portador de alterações provenientes de graves anomalias
genéticas. Ao passar pela pequena multidão, foi alvo de chacotas
ditas à distância, impregnadas da mais torpe estupidez de que é
capaz uma mente originalmente imbecil; mas imaginou que estivesse sonhando quando
viu, numa outra paca, esta de cunho informativo ao trânsito, a seguinte
inscrição: "Bairro dos Narcisos - Pronto socorro à
esquerda". Bairro dos Narcisos!
Ciente de que não haveria socorro para aquilo num pronto-socorro, seguiu
ainda assim pela via que a placa indicava, e que com efeito desembocava numa
casa de saúde; sentindo-se já nauseado com o que vira, e que sempre
era constrangido a presenciar, pensou mesmo em ali adentrar a ver se lhe ministravam
algum tranquilizante faixa-preta. Mas a portaria estava quase oculta pela
completa desordem que ali se instalara: carros atravessados em todas as direções,
uns querendo entrar, outros sair, tudo a um só tempo, pois que nenhum
deles jamais dignar-se-ia aguardar para que outro pudesse entrar ou sair; ao
contrário, trocavam buzinadas e berros, enquanto os transeuntes espremiam-se
entre os veículos, todos digladiando-se por espaço, sempre buscando
passar por sobre os outros para garantir a satisfação dos próprios
caprichos. Notou então estar não na Rua dos Narcisos, ou no Bairro
dos Narcisos, Mas na Cidade dos Narcisos, no País dos Narcisos, onde
todos contemplavam satisfeitos a si mesmos com seus pequenos e mesquinhos desejos
fúteis, preocupados unicamente com a sua satisfação, demarcando
seus territórios como cães, tomando como seu o que pertence a
outrem, rosnando aos intrusos que ameaçavam invadi-lo.
Mas isto não lhes parecia um inferno como parecia ao nosso amigo, cada
vez mais nauseado com o que via. E tais coisas, não as via pela primeira
vez; não. Mas era sempre assim. Aquele bolo que lhe subia pelo esôfago.
E analisando bem aquela turba, poder-se-ia mesmo concluir que sentiam-se satisfeitos
com seu caos, que o próprio caos era a única maneira pela qual
seriam capazes de viver em comum, seu pacto social.
Mas a ele, que amava a virtude, que amava o valor, que amava a ética,
o mérito e o gênio das grandes obras, a ele que amava, (antes que
me acuses, advirto-te de que isto não é um folhetim romântico
do século XIX, e nem a virtude é menos virtude por a considerares
ultrapassada) não poderia haver nada mais destrutivo; viver num mundo
onde tudo quanto representasse o oposto do que é sublimemente criador
está objetivado, enquanto tudo o que constrói restringe-se ao
campo da ideia de raros indivíduos, submersos entre os detritos
da bestialidade soberana.
Receber-lhe o cuspe imundo e torpe, por negar-se a involuir para tornar-se
como ela, ser alvo do seu ódio por ser infinitamente mais do que lhes
permite a rudimentar capacidade de ser; um ódio ressentido, permeado
pelo fracasso em simplesmente existir. Um cuspe impregnado da inveja em sua
forma mais mesquinha, de despeito e frustração. E eis que a multidão
de confusos Narcisos sempre se trairá diante das naturezas sublimes;
com riqueza alguma lhes poderá contribuir, nem nada lhes poderá
tirar.
(4 de dezembro de 2005)