Os olhos, agora secos e vidrados, fitavam a débil claridade que vinha
da alta e minúscula janela incidir sobre as pedras enegrecidas e úmidas
da parede diante de si; mas como chorara, ah, como havia chorado! Não
o magoava a morte que o esperava no patíbulo, mas aquela que lhe haviam
dado a viver, como negro fel a ser sorvido vagarosamente até que o último
órgão estivesse envenenado do pútrido líquido necrosado,
culminando por fim na extinção do próprio fenômeno
da vontade.
Fora, dobravam os sinos anunciando a execução próxima,
e não ouviu a onda de excitação provocada na turba que
esperava ávida pelo espetáculo; evocava agora a doce e terna imagem
da amada, a dançar, leve como a etérea aparição
de um anjo no bosque pintalgado do sol filtrado pelas copas frondosas das árvores,
a flor alva nos cabelos, o vestido simples farfalhando ao sabor do vento, adornando
o corpo níveo e esbelto, os lisos cabelos negros lançando-se ao
ar como sobrenatural cascata negra, a valsar com os pés infantis e nus
sobre a relva salpicada das folhas douradas que se precipitavam do alto, como
se o próprio céu celebrasse aquele momento, prestando tributo
ao divino magnetismo do sorriso que lançava ela à vida - à
vida, sabia agora, e não a ele.
Conhecera-a assim, dançando, colhendo flores nesse mesmo bosque, local
em que buscava a solidão, e nesta a inspiração para as
suas cismas, com as quais se ocupava durante quase toda a noite, debruçado
sobre os papéis onde garatujava sob a luz das velas, recolhido em seu
modesto aposento.
Fruto do amor clandestino de um padre, obteve quando criança, tanto quanto
a mãe, os favores do clérigo, que o iniciara nos rudimentos da
misteriosa ciência das letras. A juventude lhe fizera fervilhar no cérebro
os escritos que ainda conservava guardados, trazidos pelo religioso para auxiliar
na instrução do filho; ébrio de idealismo, prenhe de ideias,
o mundo se lhe descortinara como um infinito campo de terras férteis,
onde plantaria, veria germinar e colheria dos frutos das suas sementes. De pena
em punho, dava vida aos movimentos do próprio espírito, era livre,
era criador, não apenas criatura. A inteligência que se tornava
sempre mais aguda, permitira-lhe ver além do que aos outros era dado
ver. Não demorou a tornar-se alvo da estupidez alheia, que o cobria de
zombarias inicialmente, para depois lançar-lhe sob suspeita de heresia
e bruxaria. Os mais supersticiosos evitavam-lhe a presença, afastando-se
com olhares temerosos e benzendo-se; os submissos e covardes haviam rompido
toda forma de relação que haviam com ele já travado e as
que pudessem ainda manter, temendo represálias da Santa Igreja. Mesmo
alguns comerciantes haviam passado a evitá-lo, preferindo sacrificar
seus ganhos a incorrer em cumplicidade com o suposto "pagão".
Apartado que estava do atrito com os outros homens, imerso em suas visões
e ambições de justiça, igualdade e conhecimento, continuava
a proclamar junto aos poucos com quem podia relacionar-se, os princípios
que deveriam conduzir os povos a uma forma mais aperfeiçoada de vida
coletiva, indiferente, no calor da paixão que o inflamava, à diversidade
de olhares hostis que o cercavam e fitavam traiçoeiramente, provenientes
da plateia oculta ou não que o espreitava.
* * *
Dentre todos esses olhares sub-reptícios, estava o de um homem contando
aproximados trinta e dois anos, olhos arregalados como que procurando projetar
desesperadamente o verde de suas retinas naquilo em que pousassem; a pele de
uma palidez quase mórbida realçava-lhe os cabelos negros, raspados
à altura do crânio. O corpo, volumoso e bem formado, escondia-se
porém sob as vestes de monge.
Atentando os ouvidos, acompanhara por cerca de três quartos de hora o
que a voz entusiástica de jovem proferia de forma ingênua e descuidada;
lembrava-se de o garoto haver mencionado por pelo menos três vezes sobre
um manuscrito no qual estivera empenhado havia um ano e sete meses.
Erguera-se do banco de madeira, pousando a caneca vazia donde havia pouco estivera
sorvendo um vinho barato; sem ser percebido, deixara aquilo que a gente do povoado
tinha por uma taverna, dirigindo-se em seguida a uma pequena casa de pedra com
pilares de madeira e telhado de capim trançado localizada a poucos minutos
dali, em cuja porta batera três vezes antes de ser recebido com evidentes
mostras de grande reverência por uma senhora de meia-idade, que apressava-se
em chamar pela filha. Esta estava entretida em trocar a palha do chão,
mas logo abandonara a tarefa para tomar da mão do monge e ali depositar
o ósculo acompanhado do olhar oblíquo de estranha contrição.
* * *
Toda a Natureza parecia conspirar a favor do estado de espírito de Lino
naquela fresca tarde primaveril. Iria encontrar Helena! Todos os seus pensamentos
permeavam-se da leitosa atmosfera alternada em cores cintilantes de ditosas
visões, repletas da verdura de relvados aveludados e folhas douradas
que caíam como estrelas fulgurantes a luzir perpassadas pela suave luz
solar; e quando a encontrou a esperá-lo, de olhar perdido a bater repetida
e delicadamente com uma margarida contra os lábios entreabertos, teve
a nítida certeza de que seus devaneios não lhe haviam mentido.
Transfigurado pela ternura, tomara-a em seus braços, beijando-lhe suavemente
a boca delicada e polpuda. Eis o paraíso de sua juventude! Tomá-la
para si, correr com ela pelos bosques em jogos pueris, contar-lhe todos os segredos
e aspirações, todos os medos e ódios, em íntima
cumplicidade... amava, e era amado! Ela parecia exultar, correspondia graciosamente
a todos os lampejos do frescor juvenil de Lino, interessava-se pelas suas longas
explanações, e após conceder-lhe novamente o delicioso
contato da sua boca, declarou que não haveria segredos entre eles, que
se amavam; queria ter para si os manuscritos sobre os quais tanto seu amado
se debruçara, queria conhecer-lhe os mais intrínsecos movimentos
d'alma! Neste ponto os olhos de Lino embaciaram-se, e enlevado pelos fluídos
do amor cúmplice, dissera:
- São teus, minha bela, por quanto tempo quiseres!
Na tarde seguinte os depositara nas mãos da menina, como se com este
gesto estivesse a entregar-lhe o próprio coração.
Ah, Helena!
* * *
E, das mãos de Helena, passaram para as mãos do padre Felício, cujos enormes e reluzentes olhos verdes a cobiçavam desde que ela completara doze anos; Helena, a cuja mãe, que perdera o marido artesão pela Santa Inquisição, o clérigo pagava pelos favores amorosos da única filha.
* * *
Lino, julgado e condenado à forca como herege, foi apartado de sua mãe
e de sua amada, do bosque de suas fantasias e de sua terra, das ilusões
e de sua juventude, dos ideais nobres e de sua própria vida. Antes de
extinguirem-lhe a existência, lhe haviam extinguido a crença na
existência da beleza, da dignidade e da honra; na razão em conceber
a própria vida como uma marcha progressiva a culminar na edificação
do indivíduo em sua forma mais plena; a crença num sentido, na
simples concepção de que era sempre válida a pena de se
viver; de que pudesse ser de alguma forma gratificante debater-se embalde entre
milhares de outras infelizes criaturas em um gigantesco e desgovernado turbilhão,
sem outro rumo que não a própria escuridão. E sobretudo,
haviam-lhe destruído a crença na existência do Amor.
Quando então sentiu o laço esmagar-lhe o pescoço, pensou
que não se tratava de uma pena capital o que se lhe aplicava naquele
derradeiro momento; era sim, o benefício último de um ato final
de misericórdia.
(11 de janeiro de 2007)