A Garganta da Serpente
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E no Natal

(Sônia Cardoso)

Elvira se espreme entre as muitas pessoas que tentam chegar o mais breve possível em casa, o homem atarracado e azeitonado a observa apreensivo, ela fica atenta a manobra do ônibus pois sabe que no terminal apinhado, se escorregar pode ser pisoteada pelos passageiros.

Se tivesse visto o homem ficaria admirada, pois quando consegue equilibrar-se dentro do ônibus ele já está observando seus esforços para segurar as sacolas que carrega com dificuldade e percebe que ela carrega duas grandes sacolas de tecido.

Quer salvar o planeta ih! Acho que é tarde...ai que Ele não me ouça ou além de me mandar ficar com ela nestes dias é capaz de me mandar ficar por aqui sabe lá quanto tempo.

Elvira torce pra chegar ao próximo terminal a tempo de pegar o ligeirão pois do contrário terá que esperar outro ônibus ou andar uma distância grande e passar a ponte dos Padilhas que está há seis meses aguardando conserto e fazendo os transeuntes passar por baixo dela.

O homem percebe a apreensão dela e o palavrão murmurado ao ver que o ligeirão acaba de deixar o terminal fica desalentado, quase tanto quanto ela, por não ter previsto a situação.

Elvira hesita um momento, sabe que se for aguardar outro ônibus naquele burburinho de gente, que como ela quer chegar em casa a tempo de preparar uma ceia mais elaborada, vai se atrasar.

Então decide que mesmo com todo o peso das sacolas e a dificuldade da caminhada irá a pé, anda rapidamente até a catraca e deixa o terminal.

O homem a segue quase correndo, ela e diversas pessoas andam por uma trilha circundada se mato alto, a chuva forte que caiu logo após o almoço deixa o caminho liso qualquer escorregada ali é tombo na certa.

Elvira olha para cima e murmura: -me ajuda Baltazar.

O homem junta as duas mãos a frente da boca e também murmura: -Não há de ver que a criatura me chama mesmo. Ele tem razão, ando muito distraído, mas eles só chamam Pedro, Maria, Paulina, Fátima, nesta região Antônio que o é rei do pedaço...e essa pobrezinha resolveu chamar logo eu?

Andando próximo de Elvira ele segura sua sacola mais pesada de modo que sem perceber ela tem o peso bem aliviado e embora suando e bufando ela sobe a ladeira íngreme, quando chega quase ao final vê o ônibus, seus pés patinam e ela acha que não vencerá os últimos passos mas então Baltazar em desespero de causa vai atrás dela e empurra sua bunda com força, ela com o braço estendido dá sinal e torna a segurar a sacola.

Ufa! por milagre não deixei cair a sacola.

Ufa! milagre mesmo, que peso é esse que você carrega aí criatura? E você aí levanta e dá lugar pra ela.

Elvira nem acredita quando o rapaz sentado a sua frente levanta para descer afastando as sacolas com dificuldade ela senta e ajeita a sacola grande a seus pés e as outras mantém no colo.

Graças a Deus, pensa, em dez minutos estarei em casa e depois do banho vou fazer uma janta caprichada pra mãe e pra minha princesa, trabalhei como um burro de carga esse mês mas a ceia de natal está garantida.

O homem sentado ao chão entre as pessoas fuça a bolsa sem qualquer pejo.

Humm! frango, credo eles comem isso? ah mas tem passas também e uvas, e...nozes bolachas doces, nada de figo, damasco... mas tem vinho humm.

Um trovão enche o céu de luzes e barulho assustando Elvira e também o homem.

- Eia não precisa ratear eu sei que o vinho é dela, não ia abrir só estava olhando.

Elvira agarra todas as sacolas e sempre com o homem nos calcanhares dividindo o peso das sacolas anda mais duas quadras, abre um portão de metal, solta as sacolas e admira a pequena casa pensando que ali está todo o dinheiro que ela conseguiu reunir em dez anos de economia e que ainda vai pagar mais dez anos, mas as prestações são pequenas e por dentro tá uma belezinha recém pintada, azulejos na cozinha e banheiro, durante o ano vai pintar por fora.

Se Deus quiser e você trate de me ajudar São Baltazar.

Ai! Eu te ajudo sim, mas não sou São coisa nenhuma sou rei, aquele que levou mirra para o Senhor, e você é a primeira criatura a me chamar assim fora do dia seis de janeiro me obrigando a descer aqui depois de mais de 2000 anos.

- Mãe que sorte que você já chegou, estava ansiosa pra te ver, tia Ika veio nos ver e trouxe roupas que ganhou para vovô, trouxe um caderno de dez matérias para mim e diversos adesivos e para você um casaco de lã, mandou te dizer que é usado, ganhou da patroa dela mas está quase novo.

- Que bom filha. E você mãe, passou bem o dia?

- Tive dor pelo corpo, mas tomei o remédio e melhorei, consegui ate limpar a cozinha pra ajudar a Jaqueline.

- Que bom, mãe.

Elvira relanceia o olhar pela casinha limpíssima.

O homem também observa a sala simples mais bem ajeitada, a cozinha anexa é só um pequeno corredor com border em cima da pia ladeada por fogão e geladeira enorme e velha, um armário antigo mas muito bem pintado de branco ajuda a delimitar os dois cômodos sem qualquer cerimonia ele vai entrando por um pequeno corredor e abre a primeira porta que encontra.

Banheiro, invenção pratica dos homens, pena que para cada boa ideia tenham tido outas três infernais... que Ele não me ouça.

E aqui, quarto, coitadas só duas camas.

Volta a sala e não vê Elvira.

- Mamãe foi tomar banho hoje vamos jantar mais tarde, quer que eu prepare um pão pra você vó?

- Não, espero um pouco, o que ela trouxe tanto aí?

- Comidas, presentes...é natal vó.

- Bobinha eu sei.

Baltazar continua sua exploração pela sala e repentinamente dá um salto que chacolha os enfeites da árvore assustando avó e neta.

Feche a porta Jaque o vento derruba a árvore.

A adolescente obedece olhando ressabiada em direção de Baltazar que permanece com as duas mãos postas a frente da boca.

A comoção deve-se ao fato de que enquanto fuçava a árvore ele descobriu entre os reis magos uma representação em gesso de sua figura com cabelos azeviche, barba muito negra, o turbante branco e lilás e o manto curto que seu povo usava naquela época e nas mãos a urna de mirra que ele ofereceu ao menino no estabulo na noite em que ele, Gaspar e Melquior seguiram a estrela.

Com o coração enternecido observa a mulher que saiu do banho e penteia os cabelos falando com a mãe e a filha.

- Agora vou preparar uma galinha safada para nós igualzinha a que vimos na revista, arroz e salada, mas não vamos esperar meia-noite viu mãe eu também não aguento até lá.

Pronto o jantar as três trocam presentes a menina comprou panos de prato para a mãe, com economias tiradas do dinheiro de seus lanches e para a avó uma singela caixinha com dois lenços e a avó oferece uma blusa para a filha e para a neta um tênis a mãe dá blusa e shorts para a filha e um livro indicado pela professora.

Depois rezam, Baltazar as pressas se põe entre elas e ao final funga quando escuta Elvira agradecer a ''São Baltazar"por tudo de bom que nos oferecestes nesse ano.

Ai! não sou São criatura, ah mas tá bom, agora gosto muito de você e de sua família também, tá?

A meia noite as três dormem, mãe e filha no beliche e a avó na caminha de solteiro.

Ouvindo o alarido das comemorações a meia noite, persigna-se e silenciosamente deseja felicidades para a mãe e a filha.

Na sala uma nuvenzinha suspensa abriga um homem mouro que brinca com um objetozinho, que causa grande surpresa a Elvira na manhã seguinte ao encontrar a figura de gesso largada próximo ao sofá na sala.

  • Publicado em: 18/05/2017
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