A Garganta da Serpente
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Meu caro Belini

(Simone Pitchon)

Eis que a porta se abre.

- Belini, meu caro Belini, quanta honra em te ver! Pegue uma cadeira, venha sente-se comigo ao lado dessa lareira, que o frio não está do nosso lado.

Belini se senta.

- Lembra-se Belini do ano de 1851, onde rapazes éramos e estávamos como cadetes? Eu apaixonado por ela... ela que tinha aqueles longos cabelos escuros, e que somente me amou uma vez e eu nunca mais a vi.

O Sr. P toma seu chá com Belini.

- Belini, o frio nos toma, o inverno já veio, cá estou eu, velho, só, na minha cadeira de outrora, sem amigos, sem família, sem ela. Belini, meu caro! Como fazer agora? Relembro, relembro muito do passado velho amigo, “lembrar é viver de novo”. Só tenho a sensação de estar vivo relembrando de tempos passados. Tenho bens, vários bens, esta casa, sou dono da casa de costura que era dela (esse é o único e melhor gosto do presente), mas estou oco por dentro, meu caro.

O mordomo trouxe dois cigarros para o Sr. P.

- Que faço com tudo isso Belini? Que faço com tudo que me sobrou? Doarei aos pobres, emprestarei aos emergentes, venderei ao governo? A casa de costuras Belini, a tão amada e querida casa de costuras... Sabes, que um dia, levei a minha querida mãe àquela casa e de repente surgiu em uma máquina a mais adorável das criaturas. Olhou-me, apenas olhou-me e seu olhar bastou para dilacerar todo o meu coração. Ah! Belini meu caro, seu grande olhar me fez homem. Você se lembra do baile Belini? Aquele baile de rapazes vis e moças inocentes como a candura da aurora? Pois lá estava ela, com seu vestido feito por suas próprias mãos, unânime, meu amigo, unânime. Pedi a ela uma valsa, uma linda música tocava Mozart... nem sei mas, ela com toda pureza dançou comigo, e, no final, de seu rosto caiu uma lágrima, ofereci-lhe meu lenço, ela o aceitou e saiu correndo da festa.

O Sr. P veste seu agasalho e oferece a Belini uma taça de vinho.

- Depois de dois dias, recebo em minha casa um embrulho. Era uma caixinha contendo meu lenço e um bilhete que dizia: “desculpe-me por sair com seu lenço, aqui o devolvo, adeus”. Na caixinha estava seu endereço. Corri até o local, bati na porta. Era um casebre escuro e sem conforto. Ela apareceu e eu entrei. Dentro da casa havia uma cama como para servir de assento, assentei-me e ela me trouxe chá (chá como este que te servi, desde então só tomo deste), eu perguntei o seu nome, ela calou-me com sua mão e beijou-me como se beija um marido que há anos não se vê. Fiquei extasiado, Belini , meu caro. Sentia o seu calor e não me lembrava do rigoroso frio; era de tarde e caía uma fina neve diante de nossos olhares pela janela. Dormia ela sobre mim, mas na verdade não conseguíamos fechar os olhos. Depois desse dia glorioso, meu amigo, nunca mais a vi. Fui visitar-lhe noutro dia e ela havia se mudado para América. Sofri como um escravo ao ser chicoteado, como um homem ao perder a guerra, como uma mãe que perde o filho, o único filho. O resto você já sabe meu velho companheiro. Casei-me é certo mas, nunca a esqueci. A morte de minha esposa, de meus entes queridos me afetou, sem dúvida, mas não como a partida dela. A guerra me feriu, sabes do meu problema, meu caro, não tenho uma perna, mas não doeu mais do que não ver aquele rosto para sempre.

Fumaram outro cigarro.

Ah! Belini, hoje com você ao meu lado me senti vivo, lembrei profundamente daqueles dias tão belos. Sinto-me novo.

Belini mostra um retrato de uma mulher ao Sr. P.

- Esses olhos não me são estranhos Belini. É ela! É ela. Cristo é ela, a minha aurora.

Belini deixou o retrato com a dor da perda e saiu para nunca mais voltar. Do outro lado da foto estava escrito: “Virgínia 1826 a 1885”.

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