A tarde chegou de mansinho. O sol já se punha no horizonte. Somente
eu continuava naquela caminhada. À medida que a tarde avançava
e a noite enegrecia o céu, ficava mais inquieta. Andava sem rumo agarrada
àquele breviário. Minha vida era me apegar a ele. Aquilo se tornara
uma defesa. Sair para a rua buscando, sem saber para onde. Depois voltava para
casa decepcionada.
Encostada numa escada, entre trapos malcheirosos, estirei-me. Dormi a sono solto.
A Candelária badalou seis horas e percebi pessoas subirem as escadas,
sem se importarem com meus trapos. Lá no fundo o espírito se confrangeu
diante da indiferença.
Levantei aquelas vestes e caminhei rápida. Sair dali era preciso. O dia
claro de primavera deu-me forças. O sol lavava meu rosto e encontrei
a doce fragrância de flores, vendidas logo na esquina da igreja. Era mais
um desconhecido que seguia pela cidade, na tentativa de sobreviver. A vista
se turvou e as lágrimas desceram insistentes.
"Será que adianta continuar?", dizia a mim mesma. Tinha perdido
a conta dos dias de insistência em encontrar emprego. Tantas esperanças
acalentadas e desfeitas, novas tentativas que sempre davam em nada, tudo isso
me aniquilava o ânimo.
Certa vez apresentara-me como doméstica, mas cheguei tarde e, além
do mais, não tinha outra vestimenta que não aquela e já
cheirava mal. A senhora da residência me olhou com desdém e expulsou-me
de sua casa. Apresentei-me outra vez numa lanchonete e o dono passava em revista
suas possíveis funcionárias, apalpando os corpos de cada uma.
Diante de mim passou reto, limitando-se a franzir o cenho e fechar o nariz com
o polegar e o indicador. O homenzinho, olhar agudo, esticou o dedo em riste,
num movimento que me fez sair dali num estado miserável.
Era meia-noite. Tornei a voltar ao meu esconderijo noturno e joguei o corpo
ossudo por sobre alguns jornais e os velhos trapos voltaram a recobrir meu corpo.
Só acordei às nove horas naquele dia. O rumor dos carros e de
vozes embalaram meu espírito. Senti certa alegria com o coro matinal.
Se ao menos eu pudesse ter um pouco de comida, naquele dia especial. A sensação
de alegria subjugava meu ser. Incapaz de refrear meus sentimentos, cantarolei
uma canção, que saiu do fundo de minha alma. Minha voz tinha um
timbre agradável e percebi que alguns transeuntes jogaram algumas moedas
junto aos meus pés. A alegria invadiu meu ser e deixei os dentes amarelos
sobressaírem na boca murcha. Ali estava a minha comida do dia. Recolhi
as moedas e comprei um sanduíche de presunto e queijo. Manjar dos deuses
para meu estômago vazio.
Caminhei enfeitiçada pela possibilidade de cantar e conseguir sustento.
A sede tomou conta de meu ser. Aproximei-me do chafariz, bebi da água
que jorrava farta. Um leve enjoo, mas segui adiante.
Continuei a rodar, flanando sem me preocupar com coisa alguma. O dia estava
claro e a manhã alegre me incitava passear aqui e ali com minha despreocupação,
entre outros felizes mortais. Segui por uma rua lateral à avenida, onde
nada tinha a fazer, e deixava as coisas correrem leves. O céu estava
claro, de um azul anil sem nuvens, e nenhuma sombra enegrecia minha alma naquele
dia. Estendi meu corpo cansado sobre uma calçada e tirei um cochilo.
Um sono sem sonhos.
***
Caminhava sem rumo certo, deixando o tempo rodar, quando percebi uma senhora
carregando um pacote com imensa dificuldade. Vendo-a arquejar de fadiga, aproximei-me
para auxiliar. Ela assustou-se e seguiu apressada. De repente a vi parar e voltar-se
para mim. Observou-me longamente. Retornou com vagar, retirou o cabelo que me
recobria parte do rosto e falou: "Marcela!". Olhei-a sem entender.
Ela tocou meu breviário e novamente aqueles olhos doces pousaram em meu
rosto.
Senti os braços dela envolverem meus ombros ossudos e me encaminharem
para um carro. Era um belo carro que cheirava ainda melhor. Afinal aquilo começou
a assustar-me. Tentei me defender e ela acariciou meu rosto, para que eu me
acalmasse. "Não se recorda de mim?" perguntou com os olhos
marejados. Observei aquele rosto e algo indefinível passou pela minha
mente. "Não". Sentia que pouco a pouco aquilo me destruía
o bom humor, enfeando aquela bela e pura manhã. Ao chegarmos perto da
ladeira, que levava a uma imensa mansão, rebelei-me. Não me deixaria
conduzir por uma estranha, através daquelas grades.
Depois de alguns minutos, deparei-me com uma esplêndida construção
e segui amparada por aquela senhora, que sequer parecia sentir o cheiro que
eu exalava.
Tomei banho numa banheira de mármore, vesti roupas que jamais pude imaginar
existir e desci as escadas, sentindo os odores que se desprendiam de algum lugar
encantado. Meu estômago ensaiou alegria, que contive com medo de represálias.
Fui recebida pela senhora e outros membros da família. Mostraram-me fotos
de alguém que lembrava uma pessoa enterrada em minha mente. Fiz um esforço
para recordar, mas cansada desisti. Depois do banquete, que me pesou no estômago
sensível, levaram-me a uma cama perfumada e macia. Num canto da minha
cabeça eu dizia "Estou sonhando e vou acordar em breve, melhor aproveitar
o que puder".
***
Descendo as escadas, um flash passou pela minha mente e recordei algo que doeu
profundamente. Tive ímpetos de sair dali novamente às ruas. Levantei
os olhos e encontrei os dela. Suzana era o nome dela. Ela dizia ser minha mãe.
Observei suas mãos e a imagem de uma garotinha sendo acariciada nos cabelos
muito louros riscou minha memória.
Era preciso acabar com aquilo. Saí rapidamente para o gramado. Corri
alucinada pelo caminho entre as árvores e me deparei com uma casa encarapitada
sobre uma delas. A lembrança explodiu em minha mente e comecei a chorar
convulsivamente. Retornei em busca de compreensão.
Detive-me diante dela, que esperava pacientemente a minha volta. Os quadros
pareciam correr diante de mim como um filme entrecortado. A faculdade de Belas
Artes. Os amigos. As drogas. A intransigência contra todos naquela casa
e finalmente a fuga.
Ela abriu os braços e eu me refugiei neles desesperadamente. Finalmente
voltava para casa.