(RJ, 14h35m, um dia qualquer de 2004)
Decidi começar hoje, no final da tarde, meu projeto-saúde. O verão
está chegando e o Mário Prata já ousou escrever uma crônica
sobre a legião de "meias-gordinhas(sic)", que navegam na rede.
Eu sei que não é 1º de janeiro, nem mesmo segunda-feira -
dias destinados às promessas que, de antemão, sabemos jamais serão
cumpridas. Feitas somente para aliviar nossa consciência. Tudo bem. Hoje
é terça-feira, meio de semana. Não se começa nada
numa terça, principalmente num feriadão. Mas, em se tratando de
mim, essa transgressão cronológica é mais que natural.
Meu relógio biológico-mental nunca funcionou direito. Sempre cheguei
antes ou depois na vida das pessoas e até nos fatos da minha vida. Já
consegui perder a minha própria festa de adversário, oferecida
por amigos. Meu atraso foi de apenas dois dias.
Quem esteve disse que bombou, terminou lá pelas cinco da manhã.
Não faltou sequer aquele bêbado de ninguém, dormindo a sono
solto no sofá, nem as previsíveis meias-calças extraviadas
no banheiro.
Sei disso tudo contado por terceiros. Perdi essa. Juro -dedinhos cruzados em
X sobre os lábios, como faz minha filha - que é a verdade, toda
a verdade, nada mais que a verdade.
Digressões feitas, o assunto em pauta é o meu projeto-saúde.
Batizei-o assim para não escrachar de vez, porque o que quero mesmo é
emagrecer esse n (recuso-me a dizer quantos! Não insistam!) quilos que
não me largam. Pior: ainda chamam outros "quilinhos" para aumentar
meu desespero. Fechar a boca, primeiro conselho dado a uma neogordinha, impossível.
Creio que sou a única anoréxica a se preocupar em perder peso.
Optei por caminhar.
A grana está curta para bancar uma academia e, de mais a mais, para quê
me expor à tentação de sentimentos execráveis, como
a inveja? Ou vocês acham que euzinha passaria incólume - toda pensamentos
puros -, só bondade cristã e admiração sincera -
ao dividir esteiras, bicicletas e outros instrumentos medievais de tortura,típicos
das academias, com mocinhas que poderiam ser minhas filhas e corpos de tirar
o fôlego até de quem não é chegado à fruta?
Sacrifício, sim. Pagar para sofrer, pecar e ainda me sentir humilhada
é burrice demais até para mim.
(RJ, 16h20m, um dia qualquer de 2004)
Minha preparação, de fato, começa pelos pés. Até
para fazer o que se odeia é imprescindível elegância e estilo.
Primeiro item: o tênis. Cadê aquele tênis, que eu sei que
tenho, está novinho, nunca usei?, Pergunto p'ra Nina, minha cocker, que
observa a tudo com olhar de incredulidade e desdém, como se pensasse:
- Tanto barulho por nada! -, puro delírio provocado pela ansiedade, claro.
Nina não citaria Shakespeare.
Começo a remexer as caixas. Sapato é obra-de-arte, não
pode ficar exposto ao tempo, à poeira e outros fatores naturais de deterioração.
Acho finalmente o par de tênis, embaixo das sandálias de salto
fino, dos scarpins, dos três pares de botas (dois nunca usados) e daquela
mule vermelha, salto 8, forrada com uma espécie de lurex.
Magnífica! Essa sim, uma preciosidade, objeto de fetiche! Reluz como
pequenos diamantes no escuro, mas não é do tipo cheguei! Perfeita
com um pretinho básico. Ou então com uma calça cace justinha,
blusa preta de corte masculino, ligeiramente transparente, apenas o suficiente
para deixar entrever o sutiã de renda preta. Adereços? Um par
de brinquinhos de strass e, claro, um batom vermelho-vinho. Visual capaz de
levantar o moral de qualquer mulher com mais de 35 (anos, não quilos).
Guardo essa mule como um amuleto. Toda vez que a autoestima se aloja no calcanhar
calço-as, deito no sofá de pernas para cima e fico só admirando
tanta beleza.
Mato a saudade de cada um dos meus amados sapatos. Desfilo na frente do espelho
(só olhando para os pés! Porque para outra parte do corpo, nem
pensar!). Delícia das delícias. Admito: tenho mais em comum com
a Imelda Marcos que os olhos oblíquos. Mas falávamos do que mesmo?
Ah, do projeto-saúde.
(RJ, 18h40m, um dia qualquer de 2004)
Já perdi o entardecer. Mas é o primeiro dia do horário
de verão. Anoitece tarde. Vai dar tempo. Procurar o tal par de tênis
- do tipo delicado, branco, clean -, não nego, foi um prazer. Difícil,
agora, vai ser achar aquelas fusôs de lycra. Quer dizer, achar, achei.
O que não consigo é vesti-las. Nenhuma cabe. Tenho uma crise de
indignação, revolta e autopiedade.
Jogo-as p'ra cima; xingo-as; detrato-as; acuso-as e as culpo - culpo-as sim!
Elas encolheram sem minha expressa autorização, insubordinação
inadmissível num guarda-roupa feminino. Sou intransigente quanto à
disciplina do vestuário. Afinal, encontro uma que entra. Forçada,
muitíssimo a contragosto, mas entra. Obediente, a menina.
Segundo passo, concluído. Calça e tênis separados. Meias
não são problema, tenho dúzias delas. Nova etapa, outro
dilema: que camisa usar para encobrir o desastre dos quadris e coxas, espremidos
na lycra da fusô azul-marinho? Nem pensar naquelas t-shirts coladinhas
(todas de férias compulsórias na gaveta do closet até segunda
ordem). Afastadas da função por tempo indeterminado. Muito mico
para uma neogordinha só.
Talvez aquela malha de tricot de linha sirva. Não... Vai esquentar muito.
Aquela bata indiana, soltinha? Também não serve, nada a ver. Vou
parecer uma doidona grávida, que voltou de Woodstock a pé. Ah...
têm aquelas camisetonas, recuerdos de viagens.
OK, mas onde elas estão? Nas gavetas, já todas reviradas, nada.
Penduradas, metade dos cabides espalhados pelo chão, também não
estão. Onde enfiei essas pragas?!
- Será que eu dei?-, pergunto para minha mãe, que assiste compenetrada
a novela.
- Não! Procura, você acha! - grita ela, com um incentivo próprio
de mãe.
" 'Tá, 'tô procurando", resmungo. Nina sacode a cabeça
num gesto claro de solidariedade - só não sei a quem. Nas prateleiras
não estão. Talvez nas gavetas dos meninos. Encontradas.
Investigo cada uma e vou descartando as manchadas, furadas pelas traças
e pelo tempo, as bregas demais, a que comprei em Porto Seguro há mais
de 10 anos. Sobrou uma, meia-boca, mas dá. Tem a logo do Projeto Tamar.
Paguei os olhos da cara, em Búzios. A causa era-é nobre, tudo
para ajudar as tartaruguinhas.
(RJ, 29h20m, um dia qualquer de 2004)
Bem, roupa escolhida. Hora de arrumar tudo e me trocar. Arrumar tudo: umas cinco
gavetas, mais de uma dúzia de cabides com roupas pelo chão, caixas
de sapato espalhadas por todos os lados... Umas duas horas de trabalho árduo,
no mínimo.
Odeio arrumar armário, dobrar tudo direitinho, pendurar calças
no mesmo cabide, não misturar roupa de trabalho com roupa de sair nem
com as de ficar em casa. E ainda tem gente que ganha a vida fazendo isso. Dizem.
Mais doidas, só as babás.
(RJ, 21h40m, um dia qualquer de 2004)
Sei não... Ficou tarde para sair sozinha... Esse pedaço aqui anda
que é um perigo só... É feriado, as crianças estão
viajando, ninguém para gritar "manhêêêê!...
Sabe, pensando bem, melhor tomar um banho, pedir uma pizza e duas latinhas de
cerveja e ver o filme que está anunciando na Band. Como é mesmo
o nome do filme? Deixa p'ra lá, esqueci. Gosto do ator, Dennis qualquer-coisa,
não lembro agora. Também não importa mesmo.
Estou cansada, esse negócio de arrumar armário é um horror,
deixa a gente moída! Quero relaxar, deitada, janela aberta, tomando minha
cerveja e comendo minha pizza Marguerita - queria era a de champignon, minha
predileta, mas não tinha.
- E o tal projeto-saúde? - pergunta minha mãe, sem esconder um
sorrisinho de sarcasmo, enquanto enfia a cabeça pela fresta da porta,
impedindo a entrada da Nina. Sequer espera a resposta.
Digo, sem olhar:
- Ah... 'Tá falando das caminhadas?Tudo em cima. Mas agora 'tô
cansada... - desconverso, com uma pontinha de culpa.
Com meus botões, repito a frase imortalizada por Vivian Leigh, como Scarlet
O'Hara, em "E o tempo levou..." :
- Amanhã. Amanhã eu penso nisso.