A Garganta da Serpente
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Hipnose: a água

(Simone Santana)

Vê seu reflexo na água e já não sabe mais quem é. A água é mansa e clara. A água não diz nada. A água diz tudo. A água não cobra. A água chama. O chamado da água é suave como a brisa vespertina, suave como o mato morno castigado pelo sol da tarde. O chamado da água não tem mistério, não exige perfeição, não exige emoção, não exige educação, não exige falsidade. A água é dura e fria. Dura e fria como a menina.

Já beijara em silêncio seu amado, tocara seus cabelos em sonhos e sentira o cheiro de suas mãos calejadas em sua face. Já lavara os pés do pai e os enxugara com seus cabelos. Já sarara com seus beijos as feridas da mãe. Já colhera adálias e as depositara na sala de estar. Já capinara a horta. As cenouras, beterrabas, couves, mostardas. Os pés de feijão estavam a salvo. Agora apenas a água.

A água balança seu corpo pesado, sensualmente. Sensualmente está a menina ali na beira do lago. Vazia, sensualmente vazia, demoníacamente vazia. Vazia como o infinito.

Mergulha o rosto em seu reflexo, para sentir sua maciez. A água agora é escura, compacta, densa. A menina quer voltar, mas já não pode. A água a puxa docemente, envolvendo-a com seus braços fortes. Aperta-a com força, a comprime toda. A menina sente gozo neste abraço. Seu primeiro e verdadeiro abraço. Duro, ciumento, egoísta. A água não quer que ela vá embora. Quer que seja parte dela. A água quer guardá-la, acariciá-la, até que ela já não exista mais, até que ela se integre em seu barro, em seu lodo, em seu corpo. Até que ela se transforme em água também.

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