A Garganta da Serpente
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Inês olhos de Mangá

(Silvio Silva)

A primeira coisa que fiz ao chegar nesta cidade foi procurar a Inês. Eu tinha guardado na memória, sem querer, o nome da sua rua, mas cometi o erro de ir vestido com um terno muito curto que minha mãe reformara para mim há tempos e que me deixava parecido com um noivo de festa junina. Assustados com a minha aparência e prevenidos contra qualquer estranho, os vizinhos não quiseram me prestar informações. Bati palmas no portão da única moradia que me lembrava a Inês e veio me atender um crioulo de cabelos brancos, forte e sorridente, que bem podia ser o pai do qual a minha amiga tinha me falado uma vez.

A casa devia ser a mais antiga da rua e talvez tenha sido a sede da chácara que porventura existiu ali antes de dividirem a área para formar o bairro atual. Parecia bastante sólida, mas estava em ruínas e contrastava com o prédio moderno de tijolo a vista da escola pública a cem metros dela, e também com a simplicidade absoluta das outras construções em volta, quase todas inacabadas. O quintal era grande, de terra batida, e nele funcionava uma espécie de depósito para ferro-velho, cuja entrada devia ser pela rua de trás, pois tanto a balança como a caçamba de entulhos estavam daquele lado; o vitrô da suposta sala era protegido por um lençol furado, amarelo; e as duas janelas que davam para a rua eram de um tipo de veneziana antigo, verde-limão, de folhas duplas com abertura para fora, e estavam despedaçadas, remendadas com ripas de caixote.

O homem que me atendeu disse, entretanto, que alugara aquela casa há seis meses e que jamais ouvira falar de nenhuma Inês na vizinhança. Ele foi cordial comigo, embora tenha permanecido afastado do portão uns dez metros, o que me obrigava a falar bem alto, quase gritando. Enquanto conversávamos, uma menina de sete ou oito anos, completamente careca, saiu por uma porta lateral, passou rente ao sujeito a quem eu inquiria e sumiu do meu campo visual se escondendo atrás de uma montanha de garrafas pet. A sua barriga estava tão inchada que fazia com que o vestidinho arcaico fosse mais curto na frente. Ela estava usando, talvez por farra, uns tamancos de adulto e se equilibrava neles com dificuldade, como se fossem pernas de pau. Seus olhos eram tão fundos que davam a impressão de estar vazados. Era impossível olhar para ela sem pensar na grande carga de culpa que a Inês carregava consigo por ter sido fraca no momento em que alguém querido mais precisara dela. Eu não sabia detalhes dessa história, mas ao ver a menina me lembrei imediatamente das lágrimas da minha amiga e de como nos apressávamos em trocar de assunto, lá na clínica de reabilitação, como se aquela dívida do passado causasse nela um choque elétrico e em mim o medo paralisante de vê-la sofrer sem saber por onde começar a consolá-la.

Depois, sem que eu me desse conta, as posições se inverteram no diálogo entre mim e o velho sorridente. Agora era o homem quem me inquiria, de bom humor, a respeito de coisas da minha cidade natal, onde ele estivera algumas vezes de passagem, na juventude. De repente, saiu pela mesma porta de onde tinha surgido a menina doente uma adolescente monumental, dois números maior do que o short de lycra e o bustiê que tentavam conter as suas formas. Percebi que o velho passou automaticamente a me investigar de outra maneira, para verificar a minha reação diante da criatura seminua que ficou zanzando a meio metro de nós, bisbilhotando a minha aparência, até sair pelo portão sem retribuir o meu bom dia e sem dar qualquer resposta a indagação que lhe fiz, pois me ocorreu perguntar também a ela se conhecia alguma Inês naquela rua. Somente à distância, enquanto eu a observava discretamente e o velho me testava com o olhar inteligente, pude notar que ela andava quase dançando e que do emaranhado dos seus cabelos soltos pendiam fios de fone de ouvido.

Seja pela presença de um homem vestido daquela forma anormal para um dia útil ou pela má fama dos moradores do endereço, a verdade é que todas as crianças a caminho da escola evitaram a calçada onde eu me encontrava e algumas donas de casa da redondeza estiveram espiando pelas frestas das janelas o tempo inteiro. Fiquei com a impressão de estar diante de uma moradia suspeita e de ter passado por quem não sou.

No dia seguinte, não descansei. Depois de uma noite terrível, na qual não preguei o olho e não ousei me levantar para não acordar os outros hóspedes da pensão onde alugara uma vaga, fui remexer em minha mochila até descobrir alguma pista da Inês. Acabei encontrando um autorretrato dela em cujo verso havia o endereço de uma prima, onde a minha amiga dizia se refugiar quando a família não a suportava mais. Lembrei das tardes de sol em que nós trocávamos papeis por cima do muro que separava as alas feminina e masculina da instituição. Eu lhe presenteava com poemas que tinha acabado de compor e ela se achava na obrigação de me dar em troca algum de seus singelos trabalhos artísticos, pois o melhor passatempo da sua terapia era desenhar com lápis de cor, como havia aprendido a fazer estudando com dedicação uma pilha de revistas de hantai que alguma outra interna provavelmente deixara para trás, após receber alta.

Era sábado. Cheguei ao bairro da prima da Inês na hora do almoço. Tratava-se de uma favela agarrada às margens de uma rodovia movimentada. Fiquei um pouco confuso a princípio, já que eram várias as entradas a partir da avenida onde descera do ônibus. Resolvi perguntar pela pessoa a quem estava procurando a um grupo de crianças que se aglomerava na frente de uma mercearia, e dei sorte. Eles me disseram que estavam justamente numa festa de batizado na casa daquela moça e que tinham vindo até ali apenas para comprar refrigerante. Eram dez ou doze pirralhos de todas as cores e tamanhos: as meninas de fitas coloridas nos cabelos e sapatos de verniz e os meninos com as camisas de manga comprida ensacadas nas calças jeans. Fizemos uma procissão inquieta por aquelas veredas de cimento. Eu era o último da fila. Jamais teria encontrado o local por conta própria e seria difícil sair dali sem um guia.

A casa ficava na confluência de duas vielas e para entrar nela, a partir do portão, era preciso descer uns dez degraus íngremes, de forma que o telhado estava no nível da rua e o piso, mais de dois metros abaixo. Não havia quintal. Entre a parede da frente e o muro de arrimo no qual se grudava a escada de madeira, o espaço era só o suficiente para passar uma pessoa de cada vez. Demorei bastante para acostumar a vista à escuridão da sala. Precisei confirmar pelo tato se uma poltrona estava realmente vazia, antes de me sentar. Cruzei as pernas e fiquei conversando como um cego, rindo na direção errada e me virando para responder a uma pessoa diante de mim. Aos poucos, fui me adaptando à luminosidade fornecida por uma lâmpada amarela no teto. Comecei a definir melhor os contornos dos objetos e das pessoas, até enxergar claramente toda a sala. Contei seis mulheres mais ou menos da minha idade e duas idosas que iam e vinham da cozinha, depois entravam no único quarto da moradia e se apressavam em fechar a porta. Percebi rapidamente que todos ali já me conheciam, de ouvir falar, mas somente as velhas duvidavam um pouco de que eu fosse mesmo quem de fato eu era. Para justificar a atitude das duas, uma das moças me informou que havia naquele quarto um rapaz, amigo da família, ferido à bala. Ela não quis perder tempo me explicando porque ele não procurava um médico e agiu como se eu tivesse a obrigação de compreender uma razão óbvia. Reparei no seu perfil árabe. Fingi não notar que ela me olhava sorrindo de onde estivesse e que cochichava com as outras a meu respeito, irônica.

A televisão estava ligada, mas só eu prestava atenção ao programa de esportes. Alguém colocou um cd de pagode para tocar no aparelho de som. Diante de mim havia uma estante de madeira escura, em cuja prateleira mais alta ficava a pirâmide preta com as duas hastes e o arco de alumínio da antena da tv. Além da minha poltrona, havia na sala duas cadeiras e um sofá marrom rasgado em vários pontos, de onde saiam tufos da estopa acrílica do enchimento. Das paredes cor de pêssego escorria uma umidade constante, que combinava com o cheiro geral da casa, como se os tijolos por trás do reboco desbotado transpirassem antibiótico. A prima de Inês estava muito ocupada na cozinha e não pôde me dar atenção. As crianças entravam e saiam da sala, sós, procurando os demais, ou em grupos, brincando de esconder.

Fiquei um pouco retraído quando uma moça magra e loira veio se sentar no braço da poltrona que eu ocupava. De vez em quando ela roçava o cotovelo em mim. Aproveitei para encher os pulmões com a alfazema do seu sabonete preferido. Notei que as suas unhas estavam pintadas do mesmo azul da camurça que forra as paredes do cinema da minha cidade. Ela e a de nariz árabe trocaram olhares divertidos. De repente, numa pausa inexplicável de todos os ruídos da casa, uma mulata de olhos verdes, de quem até então eu não conhecia o som da voz, mas que por um momento me pareceu ser a mesma que eu vira na véspera sair dançando da casa do velho negro, disse a frase que eu mais temia ouvir. Postada de braços cruzados por trás de mim, com a barriga apoiada nas costas da poltrona, triste e alheia, como se vigiasse a festa sem ter autorização para sentir alegria, ela olhava fixamente na direção da porta da rua, apesar de não haver ali mais do que o reboco grosseiro de um muro de arrimo. Suas palavras devastaram a sala muda. Todas as pessoas olharam na minha direção, enquanto eu assistia na moldura da tv a uma ola silenciosa de alguma torcida não sei em que lugar do mundo.

"Onde andará a Inês?", disse a moça num suspiro.

Com a chegada de um casal com um bebê de colo, a sala ficou apinhada de gente, irrespirável. O homem me tratou com hostilidade. Olhou para mim com um misto de rancor e desprezo, como se eu fosse suspeito de um crime e ele não conseguisse encontrar na minha pessoa nem o mínimo recurso para cometê-lo. A curiosidade das moças e o cheiro de remédio da casa também me sufocavam. Bateu nos ossos o cansaço da noite insone e o meu humor começou a azedar. Para relaxar, resolvi esticar as pernas. Subi as escadas de madeira protegendo os olhos dos fachos de luz que se filtravam por entre as nuvens. Quando cheguei ao portão, um dos garotos bem alinhados da festa me cutucou por trás e me pediu dinheiro. Aproveitei a oportunidade e fiz com que ele me mostrasse o caminho até um comércio qualquer, com a desculpa de comprar cigarros. Só quando chegamos ao local, percebi que todas as outras crianças haviam nos seguido. Tomei um conhaque, para provar a mim mesmo que ainda podia beber quando quisesse, desde que ficasse longe das outras coisas, e comprei um doce para cada uma delas, o que bastou para me considerarem digno de confiança.

Nós nos sentamos nos degraus entre a padaria e o meio-fio. Comecei a fazer perguntas tolas para matar o tempo enquanto testava o efeito do álcool em mim, após tantos meses de abstinência. Enveredei pelo atalho mais surrado. Quis saber das crianças o que pretendiam ser quando crescessem.

Elas iam me respondendo atropeladamente, sem deixar de roer os seus corações de abóbora, as marias-moles e suspiros, todas muito interessadas em mim e nos doces alheios. Uma queria falar mais alto que a outra e duas ou três mudaram de profissão depois de se informar sobre a minha. O menino que me mostrara o caminho estava decidido a ser piloto de fórmula um e médico ao mesmo tempo. Ele era um líder para os demais. Do alto dos seus dez anos, mandava os amigos falarem mais baixo, corrigia quem se arriscasse em uma palavra difícil e debochava dos que caíram na besteira de eleger uma ocupação útil, porém insossa, segundo o seu critério.

Fui me deixando ficar, confortável como se estivesse em casa, sem conseguir tomar a decisão de ir embora, inclusive porque a atendente no balcão da padaria tinha o rosto mais bonito que eu já vira na vida, pessoalmente, e olhava para mim com seus olhos negros imantados, grandes e brilhantes como os do autorretrato da Inês: olhos de mangá. E eu não queria resistir à tentação de me virar para ver o seu rosto mestiço toda vez que mandava um dos moleques levar meu copo vazio e trocá-lo por outro cheio. Cheguei a pensar a sério uma hora, já um tanto calibrado de conhaque, que seria bem difícil, no dia seguinte, amanhecer sabendo que nunca mais a veria.

Eu estava tão contente com aquela solução de ficar me entretendo com as crianças, com o sol de inverno caindo oblíquo sobre os telhados da favela a minha frente e aquele rosto sublime ao alcance da visão, por trás de mim, apesar do tormento de ter que recontar a meninada a cada dez minutos - pois duas delas, as menores, tinham o dom de se desmaterializar e reaparecer no meu ombro, no meu colo ou do outro lado da rua, com um doce novo na mão -, que não vi o tempo passar. Quando me dei conta da hora e me levantei para acertar no caixa os doces e as bebidas, avistei a prima da Inês apontando na rua, deixando um acesso da favela. Ela estava irritada e me explicou, sem me olhar na cara, que ninguém presenciara a nossa saída e, por causa disso, tinham ficado preocupadas e passado a última meia hora procurando as crianças pela vizinhança, o que praticamente dera fim à festa.

Não tive coragem de acompanhá-los de volta na procissão que fizeram, desta vez seguindo os passos militares, enfezados, da dona da casa. Tive raiva de mim mesmo por não ter conseguido argumentar em favor das crianças. Na hora h, as palavras tinham saído dissociadas do pensamento, contaminadas pelo álcool, e não pude me fazer entender diante do olhar intrigado da mulher. Eu sentia tontura e um pouco do calor remanescente do conhaque. Comecei a andar na direção do ponto de ônibus, mas me lembrei do ambiente sem privacidade da pensão e dos paraíbas com os quais eu tinha que dividir um quarto, que me incomodavam não por caçoarem de mim e dou meu sotaque, e sim por parecerem tão perdidos quanto eu nesta cidade imensa; e essa simples lembrança me jogou na cara a realidade de que não havia mais Inês em canto nenhum dos quatro cantos do mundo e que as outras pessoas junto das quais eu sentia um pouco de afeto estavam todas no interior do Estado, a duzentos quilômetros de distância. Pensar nisso encheu de gelo as minhas artérias e acelerou meu coração. A respiração se tornou curta, ofegante. Desorientado, parado no meio da rua e sem poder contar com um idioma racional capaz de expressar o que eu sentia e me possibilitasse pedir socorro a alguém, eu tomei a decisão mais louca da minha vida.

Entrei no primeiro acesso à favela que vi pela frente. Não me importei com as pessoas que cruzaram o meu caminho nem com os cachorros que vieram me morder. Nas bifurcações, optei sempre por tomar a vereda de cimento que apresentasse maior declive. Passei duas ou três vezes na frente de uma casa idêntica à da prima da Inês. Também passei por um grupo de evangélicos; um time inteiro de futebol; um cavalo branco livre de arreios; um automóvel antigo emparedado atrás de uma passagem muito menor do que a metade do seu diâmetro; uma ponte feita de pedaços de outdoor sob a qual não havia rio algum senão uns fios de água cinza contornando amontoados de embalagens plásticas e utensílios domésticos sujos de barro. Até que me vi diante de um portão que era o último da rua. Enfiei a mão por entre as tábuas e soltei a tramela, abrindo caminho para o quintal daquela casa. Uma mulher obesa lavava roupa num tanque com os braços nus, apesar do frio intenso, e não se deu nem ao trabalho de levantar a cabeça. Atravessei uma hortaliça afastando com a mão as roupas do varal e uns pés de couve da minha altura, e finalmente cheguei à beira do barranco de onde se via inteira a rodovia. Enchi os pulmões do ar carregado de vapor de gasolina e preparei o corpo para pular.

Na queda, patinei na poça de lama que escoava do morro para o acostamento e caí de mau jeito ferindo a testa na placa de aço do guard rail. A dor não era maior do que a sensação de que ela crescia enquanto latejava. Por intuição, mas também por haver observado que à esquerda a cidade se adensava, enquanto na outra direção tudo parecia mais verde à medida que eu olhava para além de um bairro de casas cor de areia cada vez mais esparsas, comecei a andar para a direita. O sol batia na última fatia do paredão de pedra que estava na margem oposta, do outro lado da rodovia. Abaixo daquela linha de calor e luz tudo era sombra, inclusive eu, os automóveis e o asfalto frio. Iniciei uma marcha terrível no sentido do interior, sem volta. Enfiei na cabeça que não iria parar antes de encontrar minha mãe ou a clínica de reabilitação. O que viesse primeiro. Mas o susto da queda e o fio de sangue morno que descia da testa me restituíram alguma lucidez e eu fiquei sóbrio o bastante para considerar, sem interromper os passos, que talvez antes de encontrar alguém, eu venha a perecer de solidão.

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