A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

A Passagem

(Syl Signoretti)

Havia sete cruzes na beira da estrada.
Sob elas uma rosa de plástico.
Toda vez que ela por ali passava, chorava. Pensava nos anônimos que ali morreram e rezava.
Um dia, ela estava com tempo e resolveu parar o carro e ver os nomes escritos nas cruzes, nem sabia o que faria com aquela informação, mas estava curiosa. Quem sabe ao ler os nomes a sua dor diminuiria e passaria por ali sem sentir aquela dor enorme no peito, afinal este seria seu caminho por muitos e muitos anos, é o que desejava, já que seu trabalho lhe dava prazer e sustento.

Desligou o veículo já no acostamento da estrada, enxugou o rosto banhado de suor, fazia calor naquela tarde, tomou um gole da água que sempre trazia consigo, respirou fundo e saiu do carro.

Atravessou a estrada já que as cruzes ficavam do outro lado.
Sentiu um arrepio percorrer seu corpo.
Teriam morrido assim, atravessando a via expressa?
Que horror! Isso certamente lhe atingia.

As sete cruzes enfileiradas, a primeira escrita em preto, com letras desarrumadas e com caligrafia primária, RITA.
A segunda da mesma forma, CARMEM.
A terceira, ELISEU, FERNANDO, PLÁCIDO, LÚCIA e finalmente a sétima, ADDA.
Adda? Não podia ser esse era seu nome, que coincidência, seria por isso a tristeza? Mas o que tem a ver com ela?

Olha em volta, quer saber alguma coisa sobre aquelas pessoas, procura alguma casa pela redondeza, mas só vê pasto, plantação de milho e uma vasta plantação de Girassol, fica embevecida com as flores, sua preferida desde menina. O campo tinha tanta flor de se perder de vista, ela só olhava para as cruzes e nunca havia reparado o lindo quadro às margens da rodovia.

Resolve caminhar e chegar perto da tal plantação. Naquele momento a estrada estava vazia, por ali circulavam mais os caminhões de transporte do leite e o faziam pela manhã.

Ao chegar mais perto observa uma casinha humilde bem no meio das flores, duas janelas rosadas, a parede em branco, manchas de mofo perto do solo, mas na chaminé uma fumaça indica a presença de moradores.
Vai arriscar.
Se embrenha no mato, a trilha é mal feita, e o mato toma conta da trilha de terra vermelha, típica daquela região do estado de São Paulo, região de cana de açúcar, de milho.

Absorta com seus pensamentos nem nota uma senhora no meio do caminho lhe observando assustada.
Ela quando vê pára.
Olha para aquele rosto moreno, pele enrugada, castigada com certeza pela contínua exposição ao sol forte. Marcas da dor.
Vestimentas simples, na cabeça um lenço de chita mal arrumado mostra seus cachos grisalhos. Nas mãos um enorme ramo de Girassol.

Ficam paradas olhando uma para outra, ela nem sabe quanto tempo, até que a senhora quebra o silêncio e diz:

- Filha, porque demorou tanto?
- Ela não consegue falar, tenta, mas a voz não sai, olha o rosto da senhora e vê as lágrimas que ela derrama, quer falar, dizer que não entende, mas impossível, não consegue.
Tenta então caminhar até ela, suas pernas travaram, parece que está tomada por uma bolha invisível que a prende ao solo e a imobiliza.
Os braços não se movimentam, não domina seu corpo.

O desespero toma conta dela e neste momento vê a senhora mexendo os lábios não mais a escuta, sente seu rosto molhado, sabe que chora mais uma vez.

(O tempo parece parar)

Quando do céu uma Luz intensa surge em sua direção.
Uma chuva de pétalas de rosas cai sobre sua cabeça, ela mal acredita no que vê, a Luz, as flores, e agora do lado da senhora está um homem idoso, cabelos brancos, terno claro de linho, olhos azuis, um largo sorriso que ela logo reconhece.

Seu Pai !

Neste momento toma consciência de que seu Pai viera ao seu encontro como prometera há muitos anos.
- Quando morrermos filha, quem for primeiro volta para receber o outro, combinado?
- Que bobagem Pai, para de falar asneira.
- Prometa filha, quem for primeiro recebe o outro.
Ela aceita para tranquilizar aquele que é sua proteção, ele realmente parece aflito.

Agora na sua frente seu Pai lhe surge como em seus sonhos, lindo, sorridente, expressão de paz no rosto.
Entende que o nome da cruz era realmente o dela, de alguma forma ela morrera, mas como não se lembrava de nada?
Como explicar que vinha do trabalho todo dia há semanas e ficava observando o próprio local de sua morte?

Como se lesse seus pensamentos seu pai lhe estende a mão, lhe pede para ter confiança e ir com ele.
Ela olha em volta, o dia parece ainda mais claro, olha para trás e vê seus amigos, Rita, Carmem, Eliseu, Fernando, Plácido, Lúcia lembra-se de tudo, eles a abraçam, fazem em volta de si um círculo, ela e seu pai e aquela bondosa senhora no centro.

Seu pai lhe diz : - Filha, fecha os olhos e reze conosco.

- "Deus Todo Poderoso, que vossa misericórdia se estenda sobre a alma de Adda, que acabais de chamar para Vós. Possam ser contadas em seu favor as provas por que passou na Terra, e as nossas preces abrandar e abreviar as penas que ainda tenha de sofrer como Espírito!
Vós, Bons Espíritos que viestes receber essa criatura, e vós sobretudo, que sois o seu Anjo Guardião, assisti-a, ajudando-a a se despojar da matéria. Dai-lhe a Luz necessária,e a consciência de si mesma, a fim de livrar da pertubação que acompanha a passagem da vida corporal para a vida espiritual. Inspira-lhe o arrependimento de suas faltas e o desejo de repará-las, para apressar o seu progresso rumo à eterna bem aventurança... seguem em oração que culmina com o Pai Nosso ...

Neste momento Adda e seus companheiros se vão.
Ela entende que fez a passagem e que pela Justiça Divina demorou a entender sua nova condição de espírito, devido a sua falta de conhecimento e sua morte trágica.

Um acidente na noite de 28 de agosto de 2005 tira a vida desses jovens numa estrada do interior de São Paulo.
Adda deixa irmãos, mãe, cunhados, marido e dois filhos, Gustavo de 3 anos e Priscila de 10 anos.

Motivo do acidente : Plácido passa mal ao volante, enquanto dirigia teve um aneurisma. Por muito tempo se sentiu culpado pelo acidente e precisou de tratamento espiritual para poder hoje estar no encontro com Adda que ficou presa as ferragens esperando por oito horas que os Bombeiros conseguissem tirá-la de dentro do carro.
Morreu a caminho do hospital.

Hoje a dor não existe.

" Se não vives mais pelo corpo, vives entretanto pelo espírito, e essa vida espiritual está isenta das misérias que afligem a Humanidade. Não tens mais sobre os olhos o véu que nos oculta os esplendores da vida futura. Podes agora contemplar novas maravilhas, enquanto nós continuamos mergulhados nas trevas. Vais percorrer o espaço e visitar os mundos, em plena liberdade, enquanto nós rastejamos penosamente pela Terra, presos ao nosso corpo material, semelhante a um pesado fardo. Os horizontes do infinito se desvendarão diante de ti, e ao ver tanta grandeza, compreenderás a vaidade das ambições terrenas, das nossas aspirações mundanas, e das alegrias fúteis a que os homens se entregam".

Adda agora sabia que muito ainda teria para descobrir, estudar e crescer na vida espiritual, mas sabia que não estava só, jamais estaria.
E com a fé em dias melhores seguiu seu Pai e seus amigos para um outro plano de vida.


Notas da autora:
  • O texto entre aspas é trecho de oração retirada do Livro O Evangelho Segundo o Espiritismo de Allan Kardec páginas 338 e 339, de tradução de J. Herculano Pires Editora LAKE.
  • Este conto é uma ficção, os nomes e datas foram criados pela autora.
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br