Quando o meu pai morreu, há uns quinze anos, nós morávamos
em dois cômodos de alvenaria que ele erguera sozinho num loteamento clandestino
muito afastado do centro da cidade. Por precaução, depois que
o enterramos minha mãe arrumou um cachorro grande e marrom para vigiar
o quintal, pois o bairro andava infestado de ladrões e ela tinha medo
de me perder, como acontecera recentemente a uma vizinha, que perdera um filho
da minha idade por causa de umas roupas do varal.
Minha mãe era uma pessoa sistemática. Certa noite, ela voltou
do serviço e eu tive que lhe dar a notícia de que o caminhão
corta-luz viera de tarde e cortara a nossa, por falta de pagamento. Se não
me engano, ela não chegou sequer a cometer o gesto falho de apertar o
botão do interruptor para desafiar a realidade, como qualquer um faria.
Apenas depositou a bolsa de tira-colo sobre uma cadeira, afastou o cachorro
com um chega-pra-lá vigoroso e saiu pelo portão, sem me dizer
nada. Voltou dez minutos depois, com um punhado de velas embrulhadas em papel
pardo. Não sei até que ponto ela esperava que eu pudesse lutar
contra os homens que trouxeram escuridão à sua vida, mas certamente
eu tinha a minha parcela de culpa, pois jantamos sem que ela me dirigisse a
palavra.
Chateado e sem televisão, fui dormir mais cedo. Ignoro quanto tempo se
passou, mas sei que acordei com o rosnado insistente do cachorro e a mãe
também estava acordada na cama ao lado, olhando para mim, suplicando
ajuda.
Devolvi a ela um olhar que queria pedir perdão por não ser ainda
capaz, apesar dos meus doze anos, de agir como o homem da casa e por não
conseguir controlar a covardia do meu coração. Quis lhe dizer
tudo isso em alto e bom som, e até comecei a abrir a boca, mas ela fez
um sinal com o dedo na frente dos lábios, mandando calar.
A mãe alternava a atenção entre a minha cama e a porta
da casa. Vi o medo dela se transformar em pavor quando o cachorro parou de rosnar
de repente, e ela puxou a coberta até o queixo.
Não soubemos mais o que pensar do estranho lá fora.
Cobri a cabeça com o lençol para fugir do seu olhar aflito. Ouvi
quando ela se levantou nas pontas dos pés e quando abriu lentamente o
trinco da janelinha da porta; achei excessivo o tempo entre este ruído
e o de fechar o trinco, mas esperei. Depois, senti a presença dela perto
de mim e o morno do seu hálito junto à minha orelha.
"Foi embora", disse.
Peguei no sono em seguida e sonhei com o ladrão descendo a rua com o
nosso botijão de gás nos ombros. Quando acordei de manhã,
a mãe estava tomando um café preto na mesa da cozinha. Era evidente
que tinha passado o resto da noite chorando. Fiz o meu café com leite
e ficamos calados, um ao lado do outro, até formar nata. Então,
levantei da mesa e fui me trocar meia hora antes do normal, sem verter uma lágrima,
porque compreendi, naquele momento, que jamais seria o homem da casa se não
fosse eu, daquela vez, quem colocasse o corpo do cão num saco de lixo
para jogá-lo no córrego, a caminho da escola.