A Garganta da Serpente
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Rito de passagem

(Silvio Silva)

Quando o meu pai morreu, há uns quinze anos, nós morávamos em dois cômodos de alvenaria que ele erguera sozinho num loteamento clandestino muito afastado do centro da cidade. Por precaução, depois que o enterramos minha mãe arrumou um cachorro grande e marrom para vigiar o quintal, pois o bairro andava infestado de ladrões e ela tinha medo de me perder, como acontecera recentemente a uma vizinha, que perdera um filho da minha idade por causa de umas roupas do varal.

Minha mãe era uma pessoa sistemática. Certa noite, ela voltou do serviço e eu tive que lhe dar a notícia de que o caminhão corta-luz viera de tarde e cortara a nossa, por falta de pagamento. Se não me engano, ela não chegou sequer a cometer o gesto falho de apertar o botão do interruptor para desafiar a realidade, como qualquer um faria. Apenas depositou a bolsa de tira-colo sobre uma cadeira, afastou o cachorro com um chega-pra-lá vigoroso e saiu pelo portão, sem me dizer nada. Voltou dez minutos depois, com um punhado de velas embrulhadas em papel pardo. Não sei até que ponto ela esperava que eu pudesse lutar contra os homens que trouxeram escuridão à sua vida, mas certamente eu tinha a minha parcela de culpa, pois jantamos sem que ela me dirigisse a palavra.

Chateado e sem televisão, fui dormir mais cedo. Ignoro quanto tempo se passou, mas sei que acordei com o rosnado insistente do cachorro e a mãe também estava acordada na cama ao lado, olhando para mim, suplicando ajuda.

Devolvi a ela um olhar que queria pedir perdão por não ser ainda capaz, apesar dos meus doze anos, de agir como o homem da casa e por não conseguir controlar a covardia do meu coração. Quis lhe dizer tudo isso em alto e bom som, e até comecei a abrir a boca, mas ela fez um sinal com o dedo na frente dos lábios, mandando calar.

A mãe alternava a atenção entre a minha cama e a porta da casa. Vi o medo dela se transformar em pavor quando o cachorro parou de rosnar de repente, e ela puxou a coberta até o queixo.

Não soubemos mais o que pensar do estranho lá fora.

Cobri a cabeça com o lençol para fugir do seu olhar aflito. Ouvi quando ela se levantou nas pontas dos pés e quando abriu lentamente o trinco da janelinha da porta; achei excessivo o tempo entre este ruído e o de fechar o trinco, mas esperei. Depois, senti a presença dela perto de mim e o morno do seu hálito junto à minha orelha.

"Foi embora", disse.

Peguei no sono em seguida e sonhei com o ladrão descendo a rua com o nosso botijão de gás nos ombros. Quando acordei de manhã, a mãe estava tomando um café preto na mesa da cozinha. Era evidente que tinha passado o resto da noite chorando. Fiz o meu café com leite e ficamos calados, um ao lado do outro, até formar nata. Então, levantei da mesa e fui me trocar meia hora antes do normal, sem verter uma lágrima, porque compreendi, naquele momento, que jamais seria o homem da casa se não fosse eu, daquela vez, quem colocasse o corpo do cão num saco de lixo para jogá-lo no córrego, a caminho da escola.

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