A Garganta da Serpente
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A sinuca

(Silvio Silva)

Foi assim: eu estava jogando sinuca com um investigador de polícia amigo meu num bar próximo à escola municipal onde leciono história e geografia, e com o canto do olho percebi o momento em que uma menina esguia e morena entrou para comprar um cartão telefônico e começou a conversar com o dono do lugar. Fiquei tão concentrado no esforço de fazer as tacadas sem demonstrar o tremor das mãos que perdi suas primeiras palavras. E teria perdido as demais se ela não tivesse alterado o tom de voz para defender seu ponto de vista, contrário ao do bom homem atrás do balcão.

Parece que ele, tentando arrancar ainda algum mexerico tardio a respeito da última onda de violência que assolava o bairro, tinha feito alguma referência ao irmão da garota, morto pela polícia uma semana antes, e insinuado que o desaparecimento dele devia ter trazido algum alívio a sua família. Pelo menos foi isso que deduzi a partir da resposta firme da moreninha, que não passava de uma menina de catorze ou quinze anos, que estudava na mesma escola onde eu trabalho e não demonstrou haver me reconhecido.

Segundo ela disse - com uma autoridade que destoava completamente da sua figura infantil e dos seus cabelos crespos ajeitados numa trança longa -, o seu irmão, se estivesse vivo, ainda poderia ser corrigido, pois era jovem e inteligente, ao contrário de certos parasitas que gastavam o tempo vago em especular a vida alheia de uma forma vergonhosa. Disse que seus pais eram evangélicos e encontravam conforto na palavra de Deus para superar tanto os dissabores que o filho tinha causado quanto o seu brutal desaparecimento.

Antes de ir embora ela exigiu, desta vez se dirigindo a todos nós, como se fôssemos todos da mesma laia do caipira com sobrenome alemão com o qual debatia, que deixássemos a memória do seu irmão em paz e voltássemos a nos preocupar com as nossas atividades mesquinhas ao invés de ficarmos fofocando pelos botecos do bairro, sem mover uma palha para modificar o estado das coisas e só esperando a morte chegar.

Nada do que ela falou era novidade para mim. Eu tinha acabado de ouvir apenas mais um ponto de vista sobre o crime que ainda era um assunto quente no bairro, mas fiquei chocado mesmo assim. Foi como encontrar um oásis de dignidade perdido no meio daquele deserto de sentimentos humanos onde largamos os corpos dos nossos semelhantes mais desajustados. Eu conhecia muito bem o irmão daquela garota e inclusive tivera um atrito com ele poucas horas antes da sua morte. O rapaz era meu aluno no período noturno e no dia do seu falecimento eu o expulsara da classe porque ele estava visivelmente drogado e insistia em importunar suas colegas apontando de brincadeira uma pistola que trouxera para a escola enfiada no cós da calça. Na saída, no final da aula, quando eu me encaminhava para a sala dos professores, outros alunos vieram me avisar de que alguém havia rasgado os pneus do meu carro com uma faca. Eu fiquei puto de raiva, é claro, mesmo porque ainda não tinha me recuperado da desmoralização que o irmão da moreninha me fizera passar alguns minutos antes, quando saíra da sala depois de sacudir a arma bem diante do meu nariz e me deixara com os joelhos trêmulos na frente de toda a classe, que zombou de mim. Não tive alternativa senão chamar a polícia, apesar dos conselhos da diretora para que pensasse muito bem antes de me indispor assim contra um rapaz tão perigoso.

Agora, na penumbra daquele bar onde eu me sustinha ereto graças ao apoio do taco de bilhar, que eu segurava com as duas mãos, a menina tinha acabado de proferir o seu discurso e por um segundo ignorou os outros dois homens dentro do salão para olhar só para mim, bem no fundo de mim, como se houvesse finalmente me reconhecido, antes de sair para a claridade sufocante da rua com um cartão telefônico na mão. O tempo parou dentro daquele estabelecimento comercial.

Depois eu a segui com os olhos até o orelhão da esquina. Ela percorreu com o dedo as linhas de uma página na agenda de capa preta que trazia consigo e digitou uma sequência nas teclas prateadas do telefone público. Reparei nos seus sapatos antiquados, sem meias, e vi esses mesmos sapatos tomarem a direção oposta, com passos decididos, quando a breve ligação se encerrou. Então voltei a minha atenção para dentro do bar, para o jogo inacabado. O robusto loiro de meia idade atrás do balcão abaixou os olhos e evitou me encarar; o meu adversário sorriu e o apontou com o queixo, sacudindo negativamente a cabeça, como se quisesse dizer que o caipira não dava uma dentro e levara um sabão de uma simples menina orgulhosa. O tempo tinha voltado a funcionar e era a minha vez. Fiz uma tacada ridícula. A bola voou sobre as demais, resvalou na moldura de fórmica da lateral da mesa, bateu no cimento do chão com um ruído surdo, e rolou devagar para o meio-fio.

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