São Paulo é uma cidade grande, muito grande. M e H conheceram-se
numa dessas situações inesperadas, que talvez por comodidade convencionamos
chamar de acaso. M, há tempos que estava acostumada com a rotina do metrô,
meia hora para ir e outra longa meia hora para voltar. Para suportar melhor
esse limbo de tempo inútil, lia revistas de fotonovelas, que adquiria
numa loja de livros usados, próxima à estação da
Praça da Sé. A monotonia desse trajeto só era quebrada
lá de vez em quando, com alguma paquera, pelo fuzuê com algum trombadinha
ou algum ator fazendo sua performance e passando o chapéu.
Aquela manhã de sábado com garoa não prometia muito. Vagão
cheio, M incomodou-se um pouco por ter que ficar em pé, e cavalheirismo,
como se sabe, não anda muito na moda. Incomodou-se um pouco mais quando,
no frenesi das pessoas que apressadamente entravam e saíam do vagão,
um sujeito passou por trás dela, encostando-se, inevitavelmente. Este
momento deve ter durado apenas um segundo, mas foi o suficiente para ela sentir
um hálito de hortelã, e ele percebeu a fragrância de alfazema
nos cabelos dela. Quando ele se afastou, ela olhou de soslaio, para identificar
o atrevido, ao tempo que H, também discretamente, observava sua silhueta
bem desenhada pelo reflexo da janela. Ato seguinte, um assento que ficou vago
permitiu que a vida voltasse ao normal no escapismo de mais algumas páginas
da fotonovela.
Desceu na estação de sempre e depois de mais uma manhã
rotineira, ao meio-dia em ponto estava livre, seu fim de semana começou
com o fim da garoa. Logo ela estava zanzando pelas barracas da feirinha da Liberdade,
onde adquiriu umas bonequinhas de origami. O almoço se resumiu à
alguns camarões no palito, assim, almoçava caminhando, observando
os artesanatos e antiguidades espalhados pelas banquinhas. Naquele vai-e-vem
de tanta gente, julgou ter visto o sujeito do metrô, próximo à
uns quadros de paisagens japonesas que um pintor apresentava no chão
de uma pracinha. Tímida do tipo ousada, aproximou-se para ter certeza,
mas não viu mais o vulto, certamente era outra pessoa.
Lembrou-se que precisava renovar o estoque de suas revistas antigas de fotonovelas,
e lá foi ela em direção ao sebo. Ao chegar foi diretamente
à sala das tais revistas, onde levou um susto, pois ninguém menos
que H estava ali, escolhendo alguns exemplares de bolsi-livros de faroeste,
sua única distração literária. M imaginou inicialmente
que H estivesse lhe seguindo, mas logo concluiu que isso não poderia
ser, pois quando ela chegou ele já se encontrava no local. Depois pensou
em coincidência, em destino, essas coisas que não entendemos muito
bem, e logo já estava fantasiando que fosse algum investigador contratado,
um tipo de detetive. Saiu de tais devaneios quando percebeu que ele já
não estava mais naquela sala, então tratou de escolher alguns
exemplares de revistas para sua coleção. O segundo susto foi na
hora de pagar, pois ambos chegaram juntos ao balcão, o que fez com que
o balconista perguntasse o típico 'quem está na vez?', o que inicialmente
causou um certo constrangimento para ambos, mas foi a ocasião para uma
breve troca de olhares e o esboço de um sorriso. O fato de H ter permitido
que M pagasse primeiro, foi a senha para continuarem conversando e o manuseio
do pagamento permitiu que ambos vissem que nenhum dos dois estava usando aliança.
As recentes aquisições permitiram que a conversa se prolongasse
num café próximo dali. Esgotado o assunto das preferências
literárias, trataram de puxar outros temas corriqueiros, amenidades bem
triviais, apenas umas desculpas para poderem continuar se olhando, um adentrando
o semblante do outro, tentando desvendar camadas de personalidades e nuances
dessa atração inusitada. Esse mesmo ardente encontro de olhares,
sequer permitiu que falassem sobre relacionamentos, fossem anteriores ou atuais,
profissões ou endereços, esses ítens que definem tanta
gente. Eram apenas dois intensos olhares cruzados, que em seguida receberam
a cumplicidade de duas mãos que se tocavam de leve, no início,
e assim não demorou para que um certo par de lábios ávidos
também se encontrassem. A vida naquele momento era apenas um sabor de
hortelã e um suave aroma de alfazema, naquela esquina da megalópole.
Não se conheciam, não queriam se conhecer, mas desejavam se entregar.
Talvez essa substância abstrata que chamamos de natureza humana, explique
o fato de que dentro de poucas horas, já no número 609 de um hotel
da rua Ipiranga, o par estivesse resfolegando num faiscante entrelaçamento
com fusão de corpo e alma. O caos e o céu ao mesmo tempo. Depois,
quando os corações foram desacelerando, o suor foi secando e os
instintos permitiram que alguma lucidez se instalasse no recinto, começaram
a conversar e, conversaram demoradamente, outro prazer que descobriram assim,
sem querer. Concluíram que esse enigma, que as pessoas chamam de amor,
pode acontecer assim, de repente, numa nublada tarde de sábado, no labirinto
da gigantesca cidade. Ao saírem do hotel, ninguém sabia nome,
idade, telefone, e-mail ou o que quer que fosse sobre o outro, esses ítens
que identificam muita gente, o que não impediu de combinarem se encontrar
no saguão do mesmo hotel, no mesmo horário, uma semana depois.
E passados sete dias, na tarde paulistana, desta vez ensolarada, lá estavam
M e H novamente, tentando ser discretos na recepção do hotel,
mas mal disfarçando a gana de avançar um sobre o outro, o que
aconteceu de fato, logo que fecharam a porta do mesmo quarto 609. Pura selvageria.
Frisson e êxtase. Volúpia e lascívia. Concupiscência
e atração. Luxúria e lúbricas intimidades. Umidade
e fricção. Ou o que muitos preferem resumir como tesão.
Apagado o primeiro de muitos outros incêndios, M percebeu então
que H havia trazido champanhe com morangos, e H pode emfim também notar
os detalhes da lingerie provocante que M escolheu para o novo encontro. Algumas
labaredas mais tarde, fruíram daquele prazer de conversar, de poder falar
das sensações, dos sentimentos e das percepções
desses momentos incandescentes. E falavam da saudade, e dos desejos, e dos medos,
e das vontades, e das fantasias, e de todo um outro labirinto, o das afetividades
que se entrelaçavam nas relações e no relacionamento. Antes
de se despedir, H notou entre os pertences de M uma pequena réplica de
espada japonesa, dessas para abrir envelopes, sinal de que ela devia ter passado
novamente pela feirinha oriental. Já M, pecebeu que H havia adquirido
mais alguns livrinhos com histórias de bang-bang. Mas ninguém
quis comentar nada, nada de observações, nada de perguntas. Manter
algum mistério era muito mais excitante.
E assim se despediram, e assim se reencontraram, e assim foram repetindo seus
encontros semanais, pontuados pela entrega total em suas experiências,
preservadas por segredos mútuos, quase como se suas vidas particulares
nem existissem, como se a vida real acontecesse apenas naquele idílico
quarto 609. E mais não precisava. E como é próprio dessas
raras uniões onde o casal se completa, se complementa e se funde, chegaram
à um nível de cumplicidade e simbiose onde era possível
sentir plenamente o estado emocional do outro, apenas pelo olhar, pela voz,
pelo toque. Não raro, depois do descanso, abriam os olhos ao mesmo tempo,
sonhavam um com o outro, e muitas vezes um ía dizer uma coisa e o outro
completava. Ao final de um ano a sintonia era tanta que de vez em quando já
se conseguia até mesmo ler o pensamento.
Foi mais ou menos por essa época que M começou a pensar na possibilidade
de investigá-lo, de tentar saber mais sobre esse homem misterioso, que
lhe fazia tão feliz. Talvez desvendar o cotidiano desse íntimo
desconhecido, saber o que ele fazia durante a semana, onde morava, se era casado,
no que trabalhava, essas coisas. Mas refletiu bem e escolheu deixar de lado
a curiosidade, preferiu não quebrar a magia que os unia, não queria
desconfianças, não queria que ele fizesse o mesmo, que descobrisse
tudo sobre ela. E assim continuaram, já que toda a felicidade do mundo
cabia naquele singelo quarto. Ali era o endereço do amor, da paixão,
do romance e do desejo. O resto, era apenas o mundo. E pequenas mudanças
naquele quarto eram quase um acontecimento. O dia em que trocaram as cortinas.
Uma pequena gravura que apareceu em uma das paredes. Os desenhos florais na
estampa de um lençol. E um dia as paredes receberam uma nova tonalidade,
o salmão suave passou para um rosa pálido. Isso foi uma grande
novidade.
E o tempo foi passando. As fronhas dos travesseiros foram naturalmente se gastando,
perdendo a cor, a textura. As conversas agora tinham diminuído um pouco,
entremeadas de breves silêncios, que aos poucos foram se prolongando e
muitas vezes a falta de assunto era compensada com a leitura de fotonovelas
e os livrinhos de bolso. Num dos encontros sequer fizeram amor, apenas trocaram
carícias. Depois, uma viagem impediu o próximo encontro, e uma
desculpa aqui e outra ali fizeram rarear os sábados dos amantes. Até
que numa dessas tardes de muito calor, as paredes do 609 sequer viram o casal
se despir, apenas conversaram, olharam-se demordamente, choraram, abraçaram-se
e então convenceram-se de que poderiam parar de se encontrar. O rio da
vida que seguisse seu fluxo. Sem culpa, ou rancor, deram-se ainda um longo e
afetuoso último beijo.
Na saída para a rua, nenhuma palavra, apenas dois semblantes que se encontravam
quem sabe pela última vez e cada um seguiu para um lado. H dobrou a próxima
esquina, refletindo sobre isso que as pessoas chamam de amor. Se isso existe
mesmo, dura pouco, uns dois anos, concluiu. De seu destino nada sabemos, apenas
que deixou de frequentar uma certa loja de livros usados daquele lado da
cidade. M, que tomou o metrô mais próximo, olhava demoradamente
as fotografias da revista, mas nada via, apenas pensava em como era possível
conhecer alguém com tal profundidade e sintonia sem sequer saber seu
nome. Dela também pouco sabemos, apenas que continua usando xampu com
perfume de alfazema e adquiriu o hábito de comprar pastilhas de hortelã.
Dizem que aquele sebo fechou. Dizem também que vai reabrir em outro ponto
da cidade, mas não se sabe bem onde, pois como sabemos, São Paulo
é uma cidade grande, muito grande.