Pequei novamente, padre. O senhor sabe que quando eu morrer, vou diretamente
pro inferno, portanto não sei porque sempre venho aqui contar essas barbaridades
que cometo por causa de meu ofício. Acho que volto aqui pra abusar de
sua paciência porque assim me sinto mais aliviado, é um peso que
sai dos ombros.
O senhor sabe que não escolhi essa profissão de matador, sempre
penso que foi ela que me escolheu, pois tem vezes, quando faço um serviço
caprichado, sinto que estou fazendo uma limpeza nesse mundo, parece até
uma missão. Já lhe contei dos safados que tenho mandado pro outro
mundo, ainda nem rezei todas as penitências do mês passado, mês
movimentado, um político e um traficante na mesma semana. Ao menos o
traficante era gente boa, ajudava a vizinhança na comunidade, fazia alguma
coisa pelos pobres. Mas o senhor sabe que eu não escolho meus alvos,
nem faço perguntas, nem quero saber dos motivos. Nesse ramo a gente deve
ter critérios e princípios.
Mas padre, pequei de novo e dessa vez tô incomodado, esse serviço
não tá me saindo da cabeça, é que dessa vez foi
mulher, padre. Eu não gosto nem de bater em mulher, a não ser
quando pedem, quanto mais fazer um trabalho desses. Já fiquei incomodado
quando aceitei essa encomenda, por telefone, pois dessa vez foi uma mulher que
me contratou. Aquela voz rouca e aveludada me pediu pra fazer uma execução
e fiquei ainda mais intrigado quando ela disse que a vítima era outra
mulher. Mas o senhor já me conhece, padre, não escolho meus alvos
e gosto de fazer tudo muito bem feito. Sou um profissional. Tenho um nome no
mercado.
Antes de investigar esse alvo, pra achar o momento certo do abate, comecei a
me perguntar o motivo dessa contratante misteriosa, de voz rouca e aveludada.
Provavelmente seria ciúme, disputa por homem, ou até por mulher,
sabe-se lá. Podia ser por inveja. Talvez motivo de herança. Talvez
queima de arquivo. Ou seria por grana mesmo, algum seguro de vida milionário.
Chantagem. Olha, padre, nesse negócio, os motivos são os mais
variados, acredite.
Quando comecei a vigiar sua casa, para estudar seus hábitos, primeiro
me impressionou o fato dela morar sozinha. Depois me chamou a atenção
sua beleza natural, dessa que não precisa de maquilagem, sua silhueta
esguia, sua elegância clássica. Não tinha nem 30 anos, era
muito discreta na aparência, muito reservada mesmo. Não tinha amigos,
não recebia visitas nem visitava ninguém. Apesar de bonita, não
tinha namorado nem saía para festas e baladas. Apenas aos sábados
dava uma espécie de ronda pelas livrarias e sebos da cidade, assim aumentava
as fileiras de livros nas estantes da casa. Aos domingos à tarde ela
frequentava um desses bingos eletrônicos, não sei se ganhava
ou perdia, mas sua vida social se resumia nisso, veja só.
Durante a semana ela saía cedo de casa, passava numa confeitaria da esquina,
tomava seu café preto, puro, comprava uns chocolates, muitos chocolates,
e seguia para a entrada do edifício onde trabalhava. Não consegui
descobrir exatamente o que ela fazia lá, parece-me que era uma importante
executiva de uma multinacional ou algo assim. Ela saía ao meio-dia, sempre
sozinha, almoçava nos restaurantes ali por perto, às vezes dava
uma olhada nas novidades nas vitrines das lojas ou visitava uma ou outra livraria.
E passeava pelas calçadas, usando seus terninhos bem alinhados, cores
sóbrias, sempre com os cabelos presos, óculos combinando com o
desenho das sobrancelhas, bolsa combinando com os sapatos, enfim, formava um
conjunto bonito. A única coisa que não combinava eram aqueles
olhos tristes, aquele semblante de quem está longe, em devaneio, como
se algo faltasse, praia sem ondas, chopp sem colarinho. No fim da tarde, ao
sair do trabalho, ia direto para casa e depois de algum tempo tomava um banho
demorado e depois mergulhava em suas leituras, que não raro, passavam
da meia-noite. E assim era sua rotina, o cotidiano de uma mulher reservada e
comportada.
Concluí que a melhor forma de cumprir minha missão, seria dentro
de sua casa e para tanto precisava estudar esse ambiente. Na primeira vez que
entrei na casa, após ela ir para seu trabalho, notei seu bom gosto na
decoração, tudo casava com tudo. Na sala havia um conjunto de
gravuras de mandalas e também uma série de fotos de túmulos
e crucifixos de cemitérios. Em seu quarto, sobre o criado-mudo, uns rosários
e caixinhas de comprimidos antidepressivos. Pelas paredes, imagens de Buda,
Krishna e deuses egípcios. E havia também aquele cheiro no ar.
Incenso. Muito incenso. Feito esse primeiro reconhecimento de terreno, depois
de cheirar todos seus perfumes, muitos perfumes, saí da casa, tomando
os devidos cuidados para não deixar nenhuma marca, nenhuma impressão.
Nesse ofício a gente deve ser assim, muito discreto.
Resolvi retornar no dia seguinte, queria saber mais dessa moça que aparentemente
não fazia mal a ninguém. Dessa vez, me demorei vendo seus álbuns
de fotografias. Boa origem, algumas viagens, formatura, um ex-namorado, que
parece que chegou a ser noivo dela, várias fotos de praças, onde
ela gostava de fotografar estátuas e esculturas, fotos de vários
ângulos de uma mesma escultura, coisas desse tipo. Havia ainda um caderno
com muitos manuscritos, poemas principalmente, quase sempre falando da morte,
de suicídios e coisas assim. Até que gostei.
Não resisti e no dia seguinte voltei para bisbilhotar um pouco mais essa
vida, cuja data final estava escrita em minhas mãos. Queria encontrar
um motivo, embora isso fosse contra minhas regras. Com cuidado fui vasculhando
tudo, mas não vi ainda nada que a fizesse merecer essa fatalidade. Sob
a cama encontrei apenas umas revistas de homens nus e numa gaveta, várias
calcinhas muito bonitas, em estilo erótico, com transparências,
desenhos, fendas, penugens e outros enfeites. Acho que ela tinha lá suas
fantasias. Remexendo mais um pouco, achei uma caixa com cartas do tal ex-namorado,
as quais tive o cuidado de ler em ordem cronológica. As primeiras eram
todas muito melosas, com declarações e muitas promessas de amor,
algumas até mesmo elogiando as paisagens íntimas da destinatária.
Depois de um ano começavam a falar de planos, de juntar as escovas de
dentes. Mas depois o namoro foi esfriando, o relacionamento entrou em crise
e as declarações passaram a ser reclamações, brigas
e as irreconciliáveis diferenças de temperamento, personalidade
e objetivos. Por fim, a última missiva falava mesmo era de despedida.
Enfim, nada demais.
Tudo naquela casa era bonito, mas ao mesmo tempo, um pouco triste. Eu já
estava puto da vida por não ter achado um motivo pra que alguém
quisesse acabar com aquela mulher. Eu já conhecia sua intimidade, já
estava me apegando a ela, já estava com vontade era de matar aquela que
me contratou. Mas o senhor sabe, padre, sou um profissional, meus clientes em
primeiro lugar, meu nome a zelar, e depois, meu pagamento já estava depositado
em minha conta.
Em minhas andanças seguindo-a, notei como seus gestos eram delicados,
era graciosa no andar e gesticulava de maneira sempre muito suave. Por isso
escolhi um método que não fosse cruel e sanguinolento, como das
outras vezes. Planejei esperá-la dentro de sua casa, um pouco de éter
pressionado de surpresa em suas narinas a faria desmaiar imediatamente e depois
uma ingestão induzida com pílulas e barbitúricos, formando
um coquetel fatal, fariam o resto. Dormindo, rápido e indolor. Ela não
merecia sofrer. E foi assim que aconteceu, padre, agora há pouco, assim
que terminei vim direto pra cá, padre. E se estou tremendo assim e com
a voz um pouco embargada, é por que depois do serviço feito, vi
no criado-mudo um disco de DVD, onde estavam escritos o nome dela e a palavra
"declamações". Coloquei o disco no aparelho e apareceu
a filmagem de um evento de poesia no café de uma livraria. E lá
estava ela, de cabelos soltos, sem óculos, declamando seus poemas, com
aquela sua voz rouca e aveludada...