O quarto azulejado estava imaculadamente esterilizado, tão branco quantos
as neves que caem no inverno. Havia no centro uma maca de inox onde algo estava
coberto com um lençol. Os pés cintilavam à luz das lâmpadas
fluorescentes. No extremo dela havia uma espécie de mesa com rodinhas,
contendo alguns aparelhos médicos, tais como bisturi, tesoura, linha,
agulhas.... Havia também uma bisnaga onde se via escrito em um pedaço
de fita crepe: "Álcool" e um vidro alto, semelhante a um baldinho
de praia, onde havia um líquido transparente, no qual se rotulava: "Formol".
Na lateral da maca, havia outra mesa com rodinhas, esta maior que a outra. Possuía
aproximadamente umas cinco prateleirinhas todas abarrotadas com tigelas de todos
os tamanhos e formatos. Passavam despercebidas sob olhares desatentos, tão
brancas quanto à sala.
O ambiente possuía duas portas, ambas brancas. Uma era de madeira comum
deduzindo-se então que seja a saída (ou a entrada, dependendo
do referencial). A outra era de ferro maciço e possui uma grande engrenagem.
Era a porta de uma câmara fria, sem sombra de dúvidas.
Em cima de um banquinho, ao canto da sala, um rádio negro "Philips",
ligado à tomada, destoava da alvidez do local. Um led vermelho piscava
incessantemente na frente. Ao lado, uma modesta pia e uma torneira amarelada
extremamente brilhante.
A porta de madeira se abriu com um rangido. Um homem, vestido roupas brancas
entrou na sala. Trajava um avental sobre as vestes, um par de luvas, uma máscara
e uma touca de feltro.
Dirigiu-se ao rádio e apertou o play.
Caminhou cantarolante à maca. Olhou para o corpo. Tinha um bom gosto
impecável para suas amantes, isso era algo qual não podia se negar.
Esticou os braços e estalou os dedos. Depois de tantos anos, ainda calculava
aonde seriam os cortes. Não que fosse necessário, mas, sempre
gostava de inovar um pouquinho.
Pegou o bisturi na bandeja. Posicionou-o verticalmente à garganta da
jovem. Pressionou um pouco e então, começou a puxar. O bisturi
desceu macio até a altura do ventre.
Virou o bisturi de forma horizontal. Um corte para a esquerda e outro para a
direita.
Delicadamente, puxou a pele. Ali estava o feto.
Retirou-o. Sem dúvida um dos mais feios qual já havia visto. Não
tinha muito mais que 20 cm. Era pálido feito os azulejos da sala, quase
asqueroso. Sua coluna era visível sob pele e as veias eram nítidas.
O braço esquerdo possuía uma leve deformação na
altura do cotovelo. Provavelmente, se em vida, não teria articulação
naquele braço. Cortou o cordão umbilical rente ao umbigo. Pegou
uma das tigelas. Pôs o bebe dentro e pegou a bisnaga de álcool,
derramou um pouco e começou a limpa-lo com algodão. Gostava das
coisas impecavelmente conservadas.
Tomou o pote com formol à mão e mergulhou a criança dentro.
Rosqueou a tampa e conservou ao lado. Apesar de uma peça constante em
sua coleção, não os apreciava muito.
Agora vinha a parte a qual mais gostava.
Averiguou um pouco a situação. Não fugiria do padrão
comum. Só as menos desejadas eram desmembradas.
Olhou mais um pouco. Deveria ter pensado antes de abrir um corte tão
grande. Ela era, sem dúvida nenhuma, linda. Não a colocaria nas
caixas. Não merecia uma beleza tão estonteante ser mutilada.
Pegou uma agulha cirúrgica e a linha. Delicadamente começou a
traçar os pontos, um a um. Era um serviço demorado e, por mais
bem feito que fosse não ficaria bonito. Uma pena.
Terminado a costura, partiu para as outras partes.
Pegou uma das pálpebras, de forma bem delicada, e começou a costurá-la
à face. Fez o mesmo com a outra.
Vai que ela resolvesse abrir os olhos.
Olhou para os lábios... Um dia foram tão vivos. Agora eram tão
pálidos, frios e insensíveis.
Costurou-os também.
Vai que ela resolvesse falar.
Suspirou. Como dava trabalho.
Agora, iria retirar aquela coisa medonha e asqueirosa que distorcia a beleza
das mulheres. Como tinha nojo de cabelos! Aquelas crinas longas, ásperas,
acumulavam sujeira. Sem dúvida, muito nojento. Além de matar os
traços mais belos que uma mulher pode ter.
Pegou a máquina de cortar cabelos e ligou na posição zero.
A máquina ia retirando cabelo do mesmo modo que um cortador de gramas
carpi um campo de futebol.
De quando em quando, parava embulindo. Segurava o vomito. Ah, como era nojento!
As mechas negras e longas caiam em tiras no chão. E pensar que teria
que varrer tudo
A última mecha caiu. Olhou para o rosto da mulher. Linda como as rosas
vermelhas que possuía no jardim. Estava pronto o serviço.
Caminhou até a câmara fria. Girou a tranca com um pouco de força.
A porta se abriu e um bafo gélido acariciou-lhe o rosto. Tateou a procura
do interruptor. Ali estava.
A luz acendeu mostrando uma imensa coleção.
A câmara não era muito grande. Do lado esquerdo haviam gavetas
muito parecidas a arquivos de escritório. Em cada uma havia uma etiqueta
de identificação. Vera, Laís, Alessandra, Emanuela. Algumas
se demonstravam mais amareladas e gastas.
Do lado direito havia frascos com fetos em uma prateleira que ia do teto ao
chão. Eram de vários tamanhos e jeitos. Um possuía os traços
de um portador de Síndrome de Down.. Curiosamente, muitos eram meninas.
O mais curioso, porém, era o que se via logo ao abrir a porta. Não
muito próximo ao teto, havia treliças que cruzavam todo o recinto.
Nas treliças havia vários ganchos pendurados. Em alguns desses
ganchos jaziam mulheres.
Todas nuas, sem os cabelos e penduradas pela nuca. Brancas como a lâmpada
que iluminava a sala, com os lábios roxos, devidamente costurados tal
como os olhos. Algumas possuíam mais pontos no tórax, outras nem
tanto.
Não podia deixa muito tempo aberto. Correu pegar o vidro com o feto.
Cruzes, que criança feia!
Colocou-o de qualquer meio jeito nas prateleiras. Mais um para a coleção.
Voltou rapidamente à mesa onde jazia a moça. Pegou-a delicadamente
no colo e carregou-a até a câmara.
- Vejam garotas, vocês possuem uma amiguinha nova!
Os cadáveres mexeram debilmente a cabeça em direção
ao homem. Os fetos abriram os olhos.
- Não, vocês não podem vê-la. Seria muito muito muito
perigoso.
As cabeças voltaram. Os fetos adormeceram novamente.
- Prometo que não vai doer Larissa. Não doeu até agora,
minha querida.
O homem se esticou e pegou um gancho. Com muito cuidado, cravou-o na nuca da
jovem.
- Viu, nem doeu.
Fazendo um esforço descomunal, pendurou-a na treliça.
- E como anda Vera, minhas garotas?
Os cadáveres voltaram suas cabeças novamente ao homem. Os fetos
permaneceram imóveis, exceto um que possuía os olhos extremamente
esbugalhados.
- Verei, verei
Abriu uma das gavetas do arquivo.
Pedaços simetricamente cortados jaziam ali. Um olho de íris muito
azul o fitava, no canto.
- É
mamãe está ok, menino!Nem um sinal de putrefação.
O feto fechou os olhos, como que aliviado.
- É
tudo ok garotas. Voltarei assim que puder
ou com uma
amiguinha.
As mulheres permaneceram imóveis.
Apagou as luzes e fechou a porta, resguardando bem sua bizarra coleção.
(03/05/2010)