A Garganta da Serpente
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O outro

(Tia Caroleta)

Eram as flores que lhe apagavam o olhar. Não podia correr até elas porque o sol lhe seria fatal, apenas as observava por entre o fino tecido da cortina. Ali, preso naquele casulo que não lhe pertencia e sua mãe arranjara sentia-se angustiado e infeliz. Por mais que o amor rondasse, ali não era seu lugar. Tinha coisas incompletas no outro plano enquanto as desses já estavam completas. O ciclo já havia se fechado e sua mãe não entendia isso.

Levantou-se da cadeira em que estava sentado no quarto, e caminhou até o espelho. Não gostava de sua aparência. Nem um pouco. Talvez aquele tivesse sido um garoto relativamente bonito em vida. Mas em morte não. Em morte, ele era um boneco de cera, de faces encovadas, olheiras proeminentes e palidez cadavérica. E afinal, não era isso o que era? Um cadáver?

Suspirante dirigiu-se à escada de madeira que dava para o hall. Repousou sua mão no corrimão também de madeira. Não sentiu nada. Era insensível ao toque, ao frio, ao quente, à dor… e talvez esse também fosse um dos fatores mais agoniantes de sua semiexistência. Por mais que soubesse do amor incondicional de sua mãe nunca mais pudera sentir seu toque, seu cheiro ou seu carinho. Era insensível a tudo.

Bateu na porta do quarto da mãe.

Uma mulher de cabelos negros e olhos calmos abriu a porta.

- Diga meu filho. - disse ela com bondade.

- Estou entediado… - respondeu o garoto amargurado.

- Por que não monta um quebra cabeças?

- Porque já fiz isso. Quer correr pelos campos mãe. Estou cansado dessa casa.

A mulher suspirou.

- Meu amor… você sabe que eu ainda não consegui chegar a uma conclusão e solução para esse problema nem para sua insensibilidade. Eu passo horas, aqui, enfiada nesse quarto pesquisando… mas nada...

- Mãe, não é para eu estar aqui. É para eu estar do outro lado. Meu ciclo aqui já chegou ao fim e o do outro lado está atrasado.

Os olhos da mulher encheram-se de lágrimas.

- Não, você tem que ficar aqui comigo! Aqui!

A mulher então o pegou pelo pulso e arrastou-o escada a cima. Ele não relutou. Entrou no quarto com o garoto, que se sentou na cama, e saiu sem dizer uma palavra, apenas fechando a porta.

Suspirou novamente. Lembrava-se do dia de sua morte claramente. Estava acamado, muito doente por conta da pneumonia que o atacara. Os delírios de febre estavam cada vez mais decorrentes. Sua repentina melhora naquele dia representava, como em todas as doenças, uma queda irremediável no próximo. Estava à beira da morte, o médico já havia dito isso a sua mãe.

Ela então entrara desesperada no quarto, carregando entre os braços algo coberto com lençóis brancos, porém sujos de terra. Chorava compulsivamente, de um jeito que dava verdadeira pena. A mulher colocara o "embrulho" no chão.

- Mãe o que é isso? -perguntou com a voz fraca.

Ela nada respondeu.

Saíra apressada do quarto. Ele, sem forças para se levantar, apenas ficou olhando o monte de lençóis sujos no chão. Não demorara muito para voltar. Trazia consigo uma xícara com um líquido que exalava um cheiro agradável de rosas e canela e alguns artefatos seus de costume.

- Tome meu menino. - disse ela sentando-se ao lado do menino na cama. - Não está muito quente.

Com dificuldade, se ajeitou na cama olhando para as coisas que a mãe tinha no colo.

- Mamãe. Você já testou todos os seus encantamentos. Não pode curar os males físicos tal como cura os males da alma.

- Eu sei que não. E não é isso que vou fazer.

- É o que então?

- Beba seu chá.

O menino assentiu. Sempre respeitara as ordens da mãe. O chá descera agradavelmente por sua garganta, preenchendo-lhe o peito. O mundo parecia bem mais agradável agora. As dores e o cansaço iam embora rapidamente.

A mãe ajeitava algumas pedras e incensos ao seu lado, apressada.

- Mamãe… acho que deu certo… estou me sentindo melhor…

- Sim meu amor, esse é um dos efeitos.

- Estou com sono.

- Sim eu sei. Durma.

- Eu não quero…

O mundo rodava lento. Não queria dormir… mas era quase incontrolável.

- Você vai acabar dormindo.

E quando acordara estava daquele jeito. Viu seu corpo inerte, morto na cama e sua mãe o contemplando emocionada.

Aos poucos, as coisas semi vividas no outro plano vieram a sua mente. O tempo lá corria de modo diferente. Sua mãe nunca deveria ter violado a lei dos mortos.

Queria livrar-se logo daquilo. Porém não sabia como fazer isso. Sair ao sol não seria uma solução. Apenas deterioraria seu corpo físico. A alma permaneceria intacta e aprisionada a esse plano. Sempre que saía a mãe levava a chave do quarto, o que lhe impedia de procurar o reverso do feitiço que o mantinha aprisionado naquela carcaça.

Continuou pensativo. O destino de cada ser humano já está traçado muito antes de cada um deles nascer. Cada dia está detalhadamente escrito e entrelaçado a muitos. Por mais que muitos condenem os assassinos, não há nada que se possa fazer. Ele não pode fazer nada porque o seu crime já estava escrito em seu destino. O problema é que o destino termina onde a morte começa. Nunca algo é escrito além. A sua existência naquele momento eram páginas em branco. E talvez o sentido estivesse aí.

Se matasse sua mãe de modo a ter acesso aos seus livros, não haveria culpa. Por alguma razão isso estava no destino de sua mãe, mas não no seu. Por fim caberia a ele pesquisar o reverso do encantamento e libertar-se. Provavelmente não encontraria sua mãe do outro lado porque cada um tem o lado que merece. Esperava que o dela fosse bom. De forma alguma desejaria mal ou sofrimento para sua própria mãe.

Mais uma vez levantou-se de sua cadeira. Seguiu a esquerda no corredor, caminhando até a última porta onde era o banheiro.

Abriu o armarinho. Remexeu um pouco entre os frascos até achar o que queria. Um frasquinho marrom de vidro, com um rótulo escrito em letras de forma: "Clorofórmio".

Embebeu uma ponta de uma toalha de banho com o líquido e partiu ligeiro para o quarto da mãe. Deu duas batidinhas leves. Logo a mulher apareceu à porta. Não teve tempo de reagir quando o menino pôs a toalha umidificada pelo clorofórmio em seu rosto. Logo desmaiou. Com a mesma toalha fez um monte e tampou o rosto da mãe inconsciente. Não demorou muito e o movimento de "sobe e desce" de seu tórax cessou.

Tirou a toalha de se rosto. Estava sereno como sempre foi. Queria chorar, soltar toda a sua mágoa, o seu desespero. Mas o seu casulo não permitia.

Entrou no quarto de sua mãe. Era a primeira vez que entrava ali. Ela nunca deixara antes. Era um quarto abafado, desprovido de luz. Varias prateleiras circundavam as paredes, todas repletas de livros e vidros com coisas que só conhecia pelo nome.

Havia duas mesas no centro da sala. Na primeira havia uma quantidade livros abertos, folhas meio jogadas, canetas sem carga e anotações. Era ali que a mãe estudava. Na segunda havia alguns vidros, pedras e alguns restos de coisas que não sabia definir. Era ali que a mãe experimentava.

Revirou algum dos livros. Velhos, a maior parte em latim. Tinha boas noções de latim, o que lhe permitia uma boa compreensão dos textos. Engraçado já havia achado o erro da mãe na tentativa de "curar" os seus defeitos. E descobriu que jamais ela solucionaria o problema. Todos os encantamentos eram para pessoas vivas. E definitivamente vivo era uma coisa que ele não estava.

Um livro de capa preta marcado com uma fita de cetim vermelha chamou-lhe atenção. Pegou-o com cuidado e abriu-o na página marcada. Ali estava o que a mãe havia feito consigo. Ela conseguira uma façanha e tanto, dada a complexidade das instruções. Ela não deixara que sua alma se transferisse completamente e aprisionou-a em outro corpo. O que o deixou mais horrorizado era que o termo "aprisionado" era perfeitamente aplicável. Segundo os escritos, a função não era manter uma sobrevida e sim prender a alma a este plano e isso queria dizer que do mesmo modo que estava preso á um corpo, poderia estar á um vaso ou qualquer outra coisa.

Folheou mais um pouco. O contra feitiço deveria estar por ali… achou.

. Leu o que precisaria usar para fazer o feitiço. Por sorte eram coisas que sua mãe tinha estocado ali naquela sala. Por fim foi ver as instruções. E aí percebeu o grande erro que havia cometido em matar sua mãe.

Não teria como terminar o feitiço. Era necessário que adormecesse com um chá que o livro ensinava a fazer e aí sim uma segunda pessoa concluiria o encanto.

Sentou-se desolado. Se seu destino eram páginas em branco devido sua morte, tinha o livre arbítrio de mudar o destino de outras pessoas, mas não podia mudar sua própria existência. Sua mãe morta nunca mais lhe ofereceria carinho, mesmo que ele não sentisse nem seu toque nem seu cheiro. Estava fadado a "viver" eternamente dentro daquele cadáver, isolado do mundo e de todos.

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