Anos mais tarde lhe haviam encontrado caminhando só por uma rua do bairro.
Levava um envelope de papel pardo na mão.
- Continua feio o pobre! Mas imaginava que era mais alto - Comentou o marido
fitando sua cara
- Continua profundo o pobre! Sim, parece que encolheu - Comentou a esposa fitando
seus olhos.
Tudo era verdade. Havia praticamente desaparecido aproximadamente oito anos
atrás. Continuava feio. Sim, continuava profundo, e, sim havia encolhido,
como não? Acontece com algumas pessoas. O jovem sobre o qual faziam comentários
o casal era feio de nascimento, mas, a vida lhe reservava maiores desgraças:
sua profundidade de espírito, sua alma apaixonada. É uma verdade
triste: ignorância e felicidade caminham de mãos dadas. Ter conhecimento
das coisas, desejar, sonhar e querer mais é muito perigoso, mais ainda
quando não podemos tê-las. Ninguém demorou em descobrir
lhe essa sua peculiaridade. De pequeno seu pai havia comentado:
- É muito calado.
- Porque tem muito a dizer. - Havia respondido a mãe.
Ele mesmo não tardou em se dar conta de sua paixão. Já
nos primeiros contatos com o mundo lá fora, nos primeiros anos de escola
já havia percebido que possuía algo diferente, que era um pouco
mais curioso que as demais pessoas e que sentia as coisas com mais intensidade,
e, se não se manifestou sobre isso havia sido porque o mundo acabar de
começar.
De sua feiúra demorou mais tempo em descobrir. Talvez porque as meninas
sempre demoram um pouco mais em notar a presença masculina, ou, talvez
porque foi um longo período de negação até assumir
seu destino. No começo de sua adolescência foi apresentado à
dura experiência da solidão enquanto seus amigos eram iniciados
às primeiras aventuras amorosas. Primeiros beijos, namorar escondido,
cartinhas de amor e todo um sem fim de situações que ele jamais
experimentaria, como se observasse todo o mundo divertindo-se em um jogo o qual
não lhe deixavam participar.
Aí surgiu sua negação. Culpava a tudo. Sua postura, suas
roupas e num último estágio de não aceitação
culpou a claridade da luz que realçava demais seus traços. Imaginou
que poderia ser belo à meia-luz e passou a sair de casa apenas pela noite
e em locais pouco iluminados.
Não deu certo. Isso sim, alguém algum dia comentou que tinha olhos
bonitos, mas, não tinha. Tinha um olhar triste. É que algumas
pessoas não sabem distinguir o belo do triste. - Repara só - Assim
é que suas últimas aparições pelo bairro foram daquele
menino perambulando sozinho pelas ruas semidesertas e semiescuras, vestido
em seu estilo originalmente deselegante, visivelmente desconfiado e ansioso
sem saber se seu andar inspirava confiança com sua cabeça baixa
para que seu rosto se resumisse a dois olhos tristes que alguém de mau-gosto
achou bonito.
Quando nem a meia-luz e nem a completa escuridão foram suficientes para
esconder a vergonha que possuía de seu próprio rosto, refugiou-se
em sua casa, disposto a observar o mundo através dos telejornais ou das
frestas de sua janela. A solidão e o tédio lhe levaram a buscar
alternativas para matar o tempo e foi quando decidiu fazer uso de toda a criatividade,
paixão e profundidade que lhe eram peculiar para imaginar soluções
para as coisas e criar seu mundo perfeito. Comprou lápis, caneta, suco
de caju e biscoito de polvilho - que eram seus favoritos - e se pôs a
inventar coisas. Um novo aparelho de higiene pessoal, alguns eletrodomésticos
e remédios para enfermidades crônicas. Compôs uma canção
de amor, um roteiro para cinema alternativo, uma nova política econômica
e um comercial de cigarro inteligente. Escreveu ensaios filosóficos,
poemas, cartas de amor, cartas suicidas e listas de compras. Elaborava tratados
para solucionar os problemas atuais, criava religiões e a cada dia reescrevia uma nova lista
das dez melhores canções do mundo.
Seu estômago vazio e sua cabeça sobrecarregada o atordoaram. Caiu
no sono e foi um sono muito pesado. Então, as horas passaram sem que
ninguém batesse na porta, e os dias passaram sem que o telefone tocasse,
e passaram-se oito anos e três meses até que despertasse com a
garganta seca. Bebeu água, escreveu algumas anotações mais,
guardou tudo num envelope de papel pardo e sentiu curiosidade por ver como se
encontrava o mundo lá fora.
Saiu pelas ruas e teve medo, se sentia pequeno. Queria mostrar o conteúdo
de seu envelope de papel pardo, mas, todos tinham receio do que poderia haver
escrito aquele sujeito feio, inseguro, sem postura, de olhar torto e meio-sorriso.
Não conseguiu relacionar-se. Além de toda a hipocrisia, falta
de educação e mesquinharia da sociedade, todas as pessoas se encontravam
oito anos e três meses à sua frente. Todo um tempo perdido consigo
mesmo. Voltou ao seu quarto, mas, curiosamente sentiu que seu quarto havia aumentado
de tamanho.
Parecia imenso. Imenso como o mundo que acabava de humilhá-lo. Sentiu
medo e trancou-se em seu guarda roupa junto ao seu envelope de papel pardo que
ninguém jamais leria e que poderia mudar o mundo. Chorou. Perdeu a noção
do tempo que havia passado ali dentro, mas, passaram-se anos. Logo, surpreendeu-se
ao deparar-se como era enorme seu guarda-roupa e que se sentia demasiado exposto
ali dentro, assim que foi viver em uma velha caixa de sapato que há anos
se encontrava baixo sua cama.
Sua esperança morreu alguns anos antes que ele. Aproximadamente pela
época em que afirmam tê-lo visto entrar assustado dentro de uma
caixinha de fósforo.
Quando morreu não deparou-se com nenhuma experiência sobrenatural.
Não viu nenhum inferno, limbo ou paraíso, simplesmente fechou
os olhos pela última vez e não voltou a despertar nunca mais em
nenhum lugar e nenhum espaço-tempo. É que sua dor era tão
grande que seu espírito encolhia e morria ao mesmo passo que seu corpo,
até que um dia desapareceu por completo na escuridão vazia do
esquecimento.