Era sozinha no mundo e passava os finais de semana molhando as plantas em seu
apartamento mofado.
Torcia imensamente para que a Terra girasse mais rápido em volta de si
mesma. Queria sempre voltar para os seus carimbos. Eram muitos: grandes, pequenos,
com data, redondos, triangulares... ah, como gostava deles!
O telefone não tocava. Ninguém batia à sua porta nem mesmo
para pedir-lhe um pouco de açúcar para um bolo de última
hora.
Aurélia era muito séria desde a infância, e não fizera
amigos quando se mudara para a cidade. Mulher sisuda, austera e ensimesmada.
Apenas gostava de seus carimbos.
Era em seu trabalho que podia sorrir por dentro, porque por fora nem cogitava.
Preparava a roupa que usaria na noite de véspera. Não só
a roupa como também os acessórios. Escolhia um dos três
pares de sapato que possuía. Acordava muito cedo e nunca se atrasava.
Era numa repartição pública.
Sua sala ficava esquecida num pavimento pouquíssimo movimentado. As cortinas
eram mofadas como as da sua casa, e a luminosidade era precária. Na ampla
sala repleta de móveis velhos somente Aurélia e seus carimbos.
Na gaveta uma revista com horóscopo para o ano inteiro. Fingia para si
mesma que alguém lhe havia dado. Lia-o como assinava seu ponto. Tossia
um pouco por causa de um resfriado mal curado. A voz já não lhe
era boa.
O telefone tocava sempre. Pediam informações sobre a papelada
para o registro, e ela respondia tendo lido o manual apenas quando entrara naquele
trabalho há vinte anos. Sua memória nunca tinha sido forte e a
idade só tornava-a pior. Confundia os requerentes.
Aurélia orgulhava-se profundamente de seu trabalho e, dentro de sua casca
tosca e insipiente, acreditava veemente em sua colaboração junto
à sociedade.
Quando recebia alguém, ou para registro ou para informações
tratava de ser ainda mais eficiente. As pessoas adentravam a sala comprida e
ela, antes que lhes chegassem, pedia que a aguardassem chamar na antessala.
Concentrava-se e, então, abria a gaveta onde guardava a revista de horóscopo
e os carimbos. Respirava e dava início à cerimônia.
- Pode entrar. - pedia ela com a voz impostada.
Nesse momento, sentia-se tensa, pois saberia se o requerente vinha para obter
uma mera informação ou se era um registro completo.
No primeiro caso ela tornava-se logo enfadada. Dar informações
não lhe exigia carimbar, pelo menos não constava no manual que
lera quando entrou na repartição. Todavia, achou por bem fazer
um carimbo simples, contendo algumas informações rotineiras, com
seu próprio ordenado. Isso não faria mal nenhum. Era apenas para
facilitar e tornar o seu trabalho mais rápido. Então molhava o
carimbo retangular por cerca de trinta segundos, esfregando-o na almofada de
tinta preta de uma extremidade à outra e, depois, deitava-o na folha
branca, pressionando-o com exatidão. Nenhuma letra falhava! Sorria, por
dentro, satisfeita e despedia-se do requerente, desejando-lhe boa sorte.
O regozijo, todavia, só se dava na segunda opção, o registro.
Neste caso ela abria um sorriso discreto, meio de canto. Era a única
hora que sorria por fora. Prontamente pegava os formulários, tabelas,
protocolos, almofadas azul, preta e vermelha e, as estrelas do seu êxtase,
os carimbos.
Preenchia lentamente e, depois, carimbava de um lado, de outro e até
de cabeça para baixo. Carimbava com as três cores diferentes de
que dispunha, com os variados carimbos em todas as folhas. Era uma festa para
seus olhos atentos e um júbilo para seu coração amargo.
O procedimento exigia apenas três carimbos e uma única almofada
de tinta, cuja cor não era especificada no manual. Com tantos anos naquele
cargo, Aurélia achou que poderia facilitar as coisas, adotando mais alguns
carimbos. Foi assim que de três carimbos necessários ao registro
passaram a nove e mais um de "boa sorte".