A Garganta da Serpente
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A árvore do mundo

(Vana Comissoli)

Suo. Há duas horas suo. Mourejo sob esta enxada que me enche os dedos de bolhas aquosas, enredada em minhas ramagens que vicejam pornográficas embaixo deste sol úmido. A profundeza do buraco está a contento, já posso ver os restos de adubo com que o enriqueci. Preciso de uma terra uterina e gorda para alimentar e receber.



Tudo foi como sempre: um amor desentupido, canal aberto para as delícias do tocar e ser tocado. O prazer. Fartura de tesão, pernas, braços e bocas abertas.

As mudanças, me lembro bem, coincidiram com a vinda de minha irmã caçula para morar conosco. Órfã se descobrira no enterro duplo de pai e mãe que, cumprindo promessa, tomaram juntos uma espumante batida de banana com veneno de rato, agradável até ao mais convicto suicida. Acharam que a filha temporona, já estava bem vivida nos seus completos dezessete anos e deram por finda a tarefa de se preocupar com outra coisa além deles mesmos.

Há alguns anos não convivia com Belinha. Para mim ainda era aquela menina mimada e birrenta de oito anos que eu deixara em casa para seguir o recente marido para outra cidade. Deparei-me, em escandalizada surpresa, com uma mulher cheia de trejeitos e abundantes seios. Olhares capciosos ou capituosos, a boca vermelha de batom da manhã até a noite. Muitas vezes a espiei dormindo, acreditei que ainda assim estivesse em vermelho Lancôme. Não cheguei à conclusão alguma, nesta idade sempre se tem boca de flor.

Não me agradava a ideia de herdar uma filha prestes a entrar na idade da cama desvairada, enquanto eu mal chegava aos trinta e cinco anos. Promessa descabida por promessa descabida também tinha a minha: jurara à mamãe que olharia a garota se alguma coisa fúnebre acontecesse. Tenho uma raiva danada de mamãe por isso, organizara sua vida para sair a saracotear com meu pai na morte. O sexo era a chave-mestra da relação dos dois. Acho que a escolha se deveu mais à brochura de papai e a secura menopáusica de mamãe do que por qualquer outra razão.

Belinha passava os dias me atordoando com canções nebulosas que eu jamais ouvira, berravam amores de fogo e paixões descabeladas. Saía do banho com os cabelos pingando sobre a camiseta branca e tinha a péssima mania de não usar sutiã, a transparência de bicos e redondezas espalhava-se pela casa junto com o perfume doce e enjoativo que usava. Arrebanhava as saias já curtas para carregar suas tralhas de manicura e outros que tais tão desimportantes quanto estes.

Eu me esforçava ao máximo para ensinar-lhe o recolhimento que uma menina deveria ter: a elegância do pudor e a sensualidade existente num equilibrado cobrir-se. És uma velha ultrapassada, cheia de preconceitos e bobices, me insultava.

Meu marido Hugo, me ajudava a corrigi-la. Cobria seus peitos expostos até com as próprias mãos, se não houvesse um casaco ao alcance. Enlaçava seus ombros vestindo-os em abraços paternais. Até espremer seus cabelos deixando a água pingar nos ladrilhos brancos de minha cozinha, ele fez. A desgraçada respondia com retorcer-se e dar risadinhas que reconheci sacanas.

Por esses fatos é que lembro bem quando a delicadeza de Hugo começou a mudar e, as implicâncias apareceram. Minha comida tornou-se, insossa ou salgada demais, para ele. Percebia cada grão de pó escapado de minha vassoura distraída. Reclamava dos lençóis engomados que lhe picavam a bunda, das camisas que nunca mais estiveram bem passadas. Por fim, descambou para os ensinamentos de que eu precisava fazer as coisas deste ou daquele jeito: eu fazia tudo errado.

Belinha ria do cunhado, franca ou sorrateira, porque muitas vezes a vi espiando as reprimendas com seu olho ardido. Tive certeza que se divertia às minhas custas.

Uma coisa estranha nasceu no meu peito. Numa manhã de verão, quando estávamos os três prontos para curtir um domingo na praia, o olhar de meu marido escorregou no biquíni indecente de minha irmã que nem se dava ao trabalho de revelar, já mostrava tudo, seios e bunda. Não pude criticá-lo, só um cego não enxergaria, embora, tenho certeza, sentiria seu cheiro de cio.

Achei que era um mal-estar passageiro e que eu estava exagerando. Na porta de casa, Hugo puxou a alça de meu maiô que voltou, num estalo, ao ombro. Denise, belo maiô, disfarça bem a barriguinha e deu-me um tapa no traseiro. Tremi como gelatina.

O parto continuou a cada dia. Algo apertava meus órgãos a partir do coração, espremia meu estômago, mastigava o fígado. Fui ao médico, poderia ser um câncer, melhor prevenir do que remediar, eu pensei. O dito doutor de merda disse que estava estressada. Esgotamento nervoso. Toma pílula, dorme bem, toma pílula dorme mais, atravessa o dia numa zonzeira, mas depois tudo passa, não é nada, logo sara.

Hugo e Belinha criavam mais e mais afinidades. Passavam horas jogando xadrez, este jogo idiota e difícil que só os desocupados têm tempo para aprender. Quando ela ganhava, nem sei como, meu marido cultivava as pedrinhas brancas e negras há muitos anos, seu riso se espalhava alto e gargalheante pela casa. Tinha um estoque infindável de riso, a desgraçada. Hugo, para comemorar, a girava no colo e ela gritava ais parecidos com os dos gatos nas noites de caça às gatas desavergonhadas.

Durante uma dessas comemorações senti a primeira agulhada de dentro para fora e surgiu um ponto verde e doloroso do lado do pescoço. Uma espinha inflamada diagnosticou o tal médico idiota, não é nada, logo sara. Todos os dias eu examinava o verde que vicejava. Examinava também a minha raiva, que vicejava. Apareceu a primeira folha, a segunda e um ramo inteiro. Foi um alvoroço, até a sonsa da minha irmã se preocupou.

Quando a ramagem já se espalhava pelo chão e eu não precisava mais de vassoura, meu marido expulsou-me do quarto, fui para a cama de Belinha. Não havia outros quartos na casa, sobrava o meu lugar para ela dormir.

As noites se transformaram numa sucessão de gritos, uivantes meus, orgásticos os deles. Foi nestas noites que planejei tudo. Com paciência me preparei, deixando meus ramos arranharem os móveis e quebrarem os enfeites da casa que eu não precisava mais.

Esperei que mergulhassem no sono da safadeza e entrei na ponta de minhas raízes, as coifas se encarregariam de abafar ruídos denunciatórios. Amarrei os tornozelos de Belinha com o cadarço dos sapatos de Hugo. Ela nem se mexeu. O sono satisfeito é um bom companheiro.

Passei um cinto em torno dela e atei à cabeceira. Ela deve ter pensado que era um abraço amante porque gemeu baixinho e disse, adormecida, mais tarde, meu bem, mais tarde...

Hugo dormia de barriga para cima. Por longos momentos fitei seu membro lasso, lambuzado, nojento... Saudoso.

O sereno cobriu minhas folhas, pingou sobre o ventre de meu homem, do homem de Belinha, que se retorceu sem mudar de posição: estática e maldita. Eu, tão volátil e tão mutável, ali. Ali.

A faca estava bem enfiada nos meus liames, na minha ira, no meu amor desvairado e ardente. Os bicos dos meus olhos cresceram desmesuradamente, em segundos. A faca caiu no chão e enterrei os dois bicos de aço no peito desprotegido. Torturei-me dentro da carne, trilhei caminhos que desaguaram em rios de sangue, espetei o coração, furei o fígado, estraçalhei os miolos, cavei os olhos e assinei, no seu umbigo todo o meu desespero.

Não houve grito. A morte, no sonho, é doce e generosa, não maltrata com dor e consciência. A morte é um alívio quando não sabemos viver. Uma perda, para quem sabe, quem crê como eu.

Adeus. Adeus a tudo.

Sacudi minha irmã, bati nela, cheia de tapas e de horror. Ao se deparar com minha verde cabeleira a encobrindo, uivou como lobo nas estepes geladas do prenúncio do mal. Eu não gosto de lobos, eles são maus. Minha risada enroscou-se em meus cipós, enredou-se nos pelos pubianos de Belinha, apertou sua garganta branca. Não, eu não estrangulei, era muito pouco.

Os pássaros de chamas de meus olhos afiaram as garras e os bicos, agora curvos como foices, a rasgaram desde os pés até a testa lisa. Fizeram com cuidado e atenção. Eu não queria a morte rápida e compassiva. Eu queria o horror e a penitência.

Esperei a certeza de que Belinha ainda estivesse lúcida para cravar em seu peito todo meu ódio. Não poderia matá-la antes que tivesse assistido sua tortura merecida. Apenas uma estocada. Tão frágil o meu amor. Encostei-me à parede, senti minha seiva empedrando.

Enterrei-os com grande esforço. Difícil é para as árvores manejar pás e enxadas.

Enchi a banheira e despejei quatro caixas de húmus, ureia e adubo mineral. Deitei-me naquele caldo de cultura, me conservariam em boas condições durante os meses que o adubo orgânico levaria para enriquecer a terra.



Suo. Já há duas horas mourejo sob esta enxada que me enche de bolhas aquosas, enredada em minhas ramagens que vicejam no sol úmido. A profundeza do buraco está a contento, enxergo, no fundo, o resto de adubo com o que enriqueci. Preciso de uma terra gorda e uterina para receber e alimentar.

Desabrocharei em flores e frutos negros e pássaros de rapina encontrarão guarida em meus braços.

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