As cavernas mais inferiores não são para a compreensão
dos olhos que veem; pois suas maravilhas são estranhas e terríveis.
Amaldiçoado o chão onde pensamentos mortos vivem em novos e estranhos
corpos, e maligna a mente que é mantida por nenhuma cabeça. Como
Ibn Schacabao sabiamente disse, feliz é a tumba onde ne-nhum mago foi
sepultado, e feliz é a cidade onde, à noite, todos os seus magos
são cinzas. Pois é um velho rumor que as almas dos levados pelo
demônio não se preci-pita dos restos de sua carne, mas engorda
e instrui o próprio verme que a mastiga; até que da decomposição
surge uma vida horrenda, e os estúpidos escavadores da ce-ra da terra
astutamente se mobilizam para criar monstros para nos afligir. Grandes buracos
são cavados secretamente onde os poros da Terra deveriam bastar e as
coi-sas que deviam rastejar aprendem a andar.
(ABDUL AL-HAZRED; NECRONOMICON)
Creio que é importante para um escritor saber que
tem o potencial para ser tão no-jento quanto qualquer um
(SARAH; DO SERIADO
DE TV "THE MAXX")
Nada é verdade; tudo é permitido.
(HASSAN I SABBAH)
1. RIDERS ON THE STORM
Há ideias que só ocorrem quando se está chapado.
Nenhum dos quatro bebeu pouco e a fumaça nas cabeças era bem maior do que o razoável.
Um estado de espírito mais adequado a impulsos do que raciocínio. Deve ter sido
por isso que ninguém questionou a ideia de Normando. A festa estava mesmo
chata. A noite ainda prometia muito.
Desciam a rua desvairadamente, gritando, cantando, tropeçando nos próprios pés. Apenas
Normando guardava silêncio, caminhando sempre em frente o mais firme que podia,
ignorando as risadas dos outros, por vezes deixando-os para trás até que
corressem para acompanhar seus passos. Cana considerava Normando seu amigo, mas
era difícil não se irritar com o ar de superioridade com que ele sempre acabava
controlando a todos. Não estava afim de conhecer nenhuma sobreloja abandonada.
Se tivessem perguntado sua opinião ele sugeriria que fossem para a república
que dividia com Normando, onde poderiam tocar violão, encher a cara de vinho,
fumar mais uns beques e terminar a noite trepando muito... e muito... e muito! Era
só isso que Cana queria, nada de sobreloja abandonada do outro lado da cidade,
nada complicado, apenas trepar. Seria pedir demais?
Mas não. Bastou Normando dar a ideia para que Luana e Camile empolgassem. Claro,
estavam chapadas. Luana iria para qualquer lugar aonde Normando fosse. Não
conseguia desgrudar os olhos dele. Adorava tudo nele. Os cabelos longos e
embaraçados, a barba mal feita, a cara de cafajeste assumido. Deus, ela
pensava, ele era um cafajeste, mas como era gostoso. Não via a hora de,
finalmente, ficar a sós com ele. Estava claro pra todo mundo que aquela noite
iria terminar em sexo. Estava predestinada. A Camile que se contentasse com o
Cana, pensava, Normando é meu.
– Aí está – declarou Normando, parando em frente a uma porta de feitio antiquado,
entre um açougue e uma pet shop.
– É aqui, então? O tal lugar estranho que você tanto fala? – perguntou Camile,
aproveitando a chance para apoiar-se nos ombros dele. Luana notou, mas não se
importou. Sua irmã tinha todo direito de estar afim também, mas que iria ter de
se contentar com Cana, iria.
– É... esse é o lugar – respondeu Normando – lá em cima, a sobreloja sobre o
açougue. Já foi uma república, mas está abandonada a anos. Vamos entrar?
Adiantou-se, sem esperar resposta, e começou a trabalhar na fechadura gasta com dois ganchos
de arame.
– Cara, você é um marginal – disse Cana, depois começou a rir como se a ideia o
divertisse. Luana riu também. Estava tão chapada que riria até do catálogo
telefônico.
– Cala a boca! – gritou Normando, repentinamente ríspido – Estou me concentrando.
Chacoalhou os ombros, fazendo Camile larga-lo. Ela afastou o cabelo castanho do rosto e olhou
para cima, para as janelas fechadas com tábuas, não por um interesse real,
apenas para evitar o olhar de Luana. Amava a irmã mais nova e sabia o quanto
ela estava interessada em Normando, mas não iria perder essa chance, de jeito
nenhum. Ela que se contentasse com o Cana, ele também era bonito, não teria do
que reclamar.
– Isso não é invasão de domicílio? Dá cadeia, sabia? – perguntou em tom de sarro.
Com ou sem cadeia iria onde Normando fosse.
Ocupado com a fechadura, Normando trincou os dentes, mas achou melhor ignorar a pergunta.
– Só se vai pra cadeia se alguém der queixa – disse Cana – e quem daria?
– Eu não – disse Luana. E riu.
Um estalo. A porta abriu com um ranger de dobradiças enferrujadas, revelando uma
escada suja de poeira que desaparecia na escuridão lá em cima.
– Sinto-me num filme de terror – falou Camile.
Normando olhou pra eles por cima do ombro e, sem uma palavra, subiu as escadas.
Camile, Luana e Cana entreolharam-se, aparentemente todos esperando pra ver quem o
seguiria. Cana deu de ombros e disse:
– Bom, eu não quero tomar chuva.
Verdade. Estava começando a chover. A tempestade foi se formando enquanto atravessavam a
cidade e não iria esperar nem mais um minuto para desabar. E, afinal, já tinham
chegado até ali, não tinham?
Luana e Camile subiram na frente. Cana foi por último, fechando a porta atrás de si.
Estava muito escuro para ver bem as paredes, mas era possível notar que estavam
cobertas de pichações, desde a porta até o topo das escadas, que terminavam num
pequeno hall. Havia duas portas, lado a lado, que davam acesso aos
quartos cujas janelas podiam ser vistas da rua. No lado oposto havia uma
passagem para um pequeno corredor que conduzia até o que deveria ter sido uma sala
de estar. Encontraram Normando lá, sentado no chão imundo, de pernas cruzadas,
mexendo distraidamente na mochila surrada.
Um silêncio estranho formou-se entre eles. Constrangido. A situação toda era muito
estranha. Afinal, o que vieram fazer ali?
Pelo menos, o que vieram fazer que não poderiam ter feito em outro lugar?
Normando ergueu bruscamente a cabeça, num movimento que fez seus cabelos longos serem
jogados pra trás, revelando os olhos negros brilhantes e convidativos.
– E então? – perguntou, como que adivinhando as dúvidas dos outros – Não é
incrível?
“Incrível!? Uma merda!” pensou Cana. Ia dizer em voz alta, mas uma olhadela para os rostos
das meninas o fez mudar de ideia. Elas caminhavam pelo cômodo admirando cada
pequeno detalhe. Pareciam fascinadas. Olhou para Normando e viu que ele,
aparentemente, havia se esquecido deles outra vez. Continuava esvaziando sua
mochila metodicamente.
Luana e Camile estavam mesmo fascinadas. O lugar era feio, horroroso, mas sedutor. Na
meia luz que conseguia entrar pela janela quebrada elas exploravam cada detalhe
macabro das marcas que o tempo deixara ali. As paredes traziam centenas de
pichações, desenhos, símbolos, alguns bastante antigos, outros mais recentes.
Eram como um mosaico. Palavrões, declarações de amor, nomes, rabiscos sem
sentido, obscenidades, era impossível perceber os detalhes numa primeira
vistoria, tudo o que viam era uma massa heterogênea de cores e formas inúmeras.
Era feio. Profano. Sujo.
– Adorável! – disse Luana.
– Você acha? – perguntou Cana.
– Esse lugar é muito louco – retrucou ela – Você não acha?
(Acho o que você quiser, gostosa, desde que abra essas pernas pra mim)
– É, acho que é – respondeu Cana.
– Ei, meu irmão – chamou Normando, ainda sentado no chão – Não acha que isso aqui
está muito seco?
Cana ficou estático, com cara de interrogação. Então se tocou do peso em seu braço
direito e lembrou do garrafão de vinho que carregara até ali. Colocou-o no
chão, meio sem jeito, e agachou-se para abri-lo. Normando jogou o saca-rolha,
antes mesmo que ele pedisse.
– Vamos sentar, mulherada – falou Normando – A noite é uma criança.
Havia duas esteiras gastas jogadas num dos cantos da sala. Luana as pegou e estendeu
no chão. Deitou-se sobre uma delas, espreguiçando-se como uma gata. Camile
sentou, de pernas cruzadas, sobre a outra esteira. Cana estava concentrado no
esforço de arrancar a rolha do garrafão e, por um momento, deixou de prestar
atenção nelas. A rolha era teimosa, não queria sair. Finalmente, soltou-se com
um estalo e Cana quase caiu pra trás, perdendo o equilíbrio. Foi então que viu
o que Normando estava tirando da mochila: um pacote de velas.
– Você trouxe velas? – perguntou Camile, admirada, antes que Cana pudesse dizer
qualquer coisa.
– Não sei se notou – disse Normando, resignado, como quem explica algo para uma
criança – Mas a eletricidade desse lugar já foi cortada há anos.
– Eu sei disso – retrucou Camile – o que estou dizendo é como é que você pode ter
velas aí se vir pra cá foi uma ideia de última hora?
– É – falou Cana – Você já tava armando, não tava, filho da mãe? Pretendia nos
trazer pra cá antes mesmo da festa...
– Não pretendia trazer ninguém – explicou Normando, abrindo o pacote de velas –
Eu pretendia vir pra cá sim, mas achei que viria sozinho. Felizmente, descobri
que tenho amigos legais que curtem as mesmas coisas que eu. E aqui estamos.
Um silêncio estranho voltou a imperar. Normando pôs-se a terminar o que estava
fazendo. Acendeu as velas pacientemente, espalhando-as pela sala em intervalos
regulares. Enquanto trabalhava, Luana rompeu o silêncio:
– Se ninguém vai querer vinho eu quero.
– Tem copos plásticos na mochila, Cana – declarou Normando sem desviar a atenção
do que fazia.
Cana apanhou o pacote e rompeu o lacre com os dedos. Camile adiantou-se para pegar o
seu. Luana, esparramada no chão, parecia não estar disposta a se mexer e
aguardava ser servida.
– Você sempre pensa em tudo não é? – disse ela para Normando. Ele não se dignou a
responder.
A luminosidade bruxuleante das velas ia aumentando de intensidade conforme Normando
as acendia e os copos de plástico eram preenchidos com vinho. Só depois de
acender cerca de doze velas, espalhadas pela sala, Normando sentou-se para
beber também. Passaram o tempo que se seguiu bebendo, falando bobagens e
devorando com os olhos cada detalhe dos corpos uns dos outros. Aguardando o
vinho subir à cabeça, aquecendo corações e mentes, aguardando o momento limite...
quando apenas olhar não seria mais suficiente.
São momentos em que a memória é falha e o tempo não faz sentido. Ainda mais ali,
naquele lugar exótico, onde os desenhos das paredes pareciam mover-se sob a luz
das velas. Onde o som da tempestade formava uma redoma protetora sobre eles,
isolando-os do mundo exterior, com suas regras e leis estúpidas. Ali dentro
tudo seria permitido. Tudo.
O vento uiva pelas frestas das janelas quebradas. Um vento frio e cortante. Mas
não há frio que eles possam sentir esta noite. Nenhum frio.
Segurando o copo plástico vazio entre seus dedos preguiçosos, Normando deixava sua mente
vagar enquanto os observava cuidadosamente. Será que eles se davam conta do
quanto eram belos? Não apenas a aparência, mas o estado em que se encontravam
agora: as mentes livres das inibições pelo efeito libertador do vinho, os
reflexos alterados, as frases provocantes, os risos fáceis, a sensualidade
pungente em cada simples gesto, o cheiro de suor misturado ao vinho. O momento
limite se aproxima. De sua mochila surrada, Normando revela a erva que havia
trazido. Com paciência ritualística, começa a preparar os beques. Sem pressa. A
noite ainda é uma criança. Em silêncio, Normando permite que sua atenção vague
de um para outro, saboreando a euforia etílica que os dominava. Deitada
preguiçosamente na esteira suja, com os cabelos longos e negros jogados ao
alcance de suas mãos se ele os quisesse tocar, Luana ria descontroladamente, as
faces vermelhas de sangue e vinho. Normando deixou seus olhos deslizarem pelo
corpo delicioso, desde o rosto arredondado e suave, passando pelo pescoço
convidativo, os seios grandes e perfeitos que a blusinha decotada mal recobria,
o umbigo exposto ao toque, até as pernas generosas em curvas. Ela tirara os
sapatos e os jogara para um canto. Esfregava os pés delicados um no outro num
pequeno espetáculo de volúpia. O short curto implorava para ser arrancado.
Talvez até com os dentes.
Por que não? Talvez mais tarde.
Camile estava deitada na outra esteira, formando um “L” com a esteira de Luana.
Seguindo o exemplo dela, também havia tirado os tênis, deixando que o saiote
jeans fosse a única roupa da cintura pra baixo. Por vezes, seus pés encontravam
os da irmã, tocando-se e esfregando-se numa alegoria exótica de graça e beleza.
Camile apoiava-se no braço esquerdo, mantendo erguida a cabeça emoldurada pelos
cachos castanhos. Seus olhos não se desviavam dos de Normando nem por um
momento. Olhos mais profundos e provocantes do que os de Luana, olhos que
abrigavam mistérios.
Lindíssimas individualmente. Juntas, porém, eram uma visão celestial incomparável.
Cana
estava entretido falando besteiras para Luana rir como louca, enquanto devorava
com os olhos cada detalhe de seu corpo. Normando às vezes esquecia o quanto
Cana era atraente: forte, corpo moldado por uma disciplina de exercícios muito
rígida. Usava uma camiseta preta que expunha boa parte de suas tatuagens. Não
tinha um rosto maravilhoso, mas os traços completavam-se harmoniosamente. Cana
era um bom amigo. Às vezes Normando gostaria de lhe dizer isso, mas ele acharia
viadagem. Sabia que havia ocasiões, como agora, em que Cana o odiava. Estava
claro que nenhuma das duas tinha o menor interesse nele. Ambas queriam
Normando. Se pudesse, Normando explicaria, mas Cana não iria entender. O mal é
sedutor. O mal é sexy. Não era seu corpo que realmente as atraía. Num
nível inconsciente, elas podiam sentir o cheiro da maldade em sua alma.
Normando sabia: o mal é irresistível.
O
ritual se inicia com o acender de um isqueiro. O beque passa de mão em mão,
cada vez menor, mãos e bocas experientes demais para desperdiçar uma tragada
sequer. Puxar, tragar, soltar, passar. O ritual prolonga-se por minutos
intermináveis. A névoa de maconha misturando-se à tênue fumaça das velas, intensificando
ainda mais o movimento aparente das figuras nas paredes.
–
Essa casa tem uma história – declarou Normando, quebrando o respeitoso silêncio,
atraindo a atenção dos outros.
–
Conta – pediu Luana. Não que estivesse realmente interessada.
O
beque estava nas mãos de Normando agora. Puxou, tragou, soltou, passou para
Luana e continuou:
–
Essa casa é um bocado antiga. Está abandonada a dois anos. Muita gente já morou
aqui. Estudantes principalmente. Foi república várias vezes. A uns cinco anos
foi uma república feminina, umas meninas da Geografia. Foram elas que começaram
as pichações. Só coisinha boba, na verdade. Foi a última vez que gente decente
morou aqui. Desde que foram embora só gente esquisita passou por esse lugar.
Aquilo
que Normando considerava “gente esquisita” chegava a dar calafrios em Cana.
–
Um Mago morou aqui.
Luana
quase começou a rir, mas algo nos olhos de Normando fez o riso morrer em seus
lábios. Ele falava sério. De apenas ouvirem por inércia, todos passaram a
prestar atenção em cada palavra.
–
Talvez dizer “Mago” seja um exagero. Era uma figura estranha, isso sim. Eu
cheguei a conhecer. Foi o último a morar aqui e não escolheu esse lugar por
acaso, isso não. Ele procurou por muito tempo uma casa assim...
–
Assim como? – perguntou Camile.
–
Assombrada – respondeu Normando. Camile deixou escapar um riso nervoso que se
espatifou contra o rosto frio de Normando. Não havia lugar para humor ali.
–
Esse lugar é assombrado? – perguntou Cana, sem disfarçar a irritação na voz. O
que diabos Normando queria? Assustar as meninas?
–
Se não é, deveria ser – respondeu Normando – Coisas ruins aconteceram aqui.
Coisas muito ruins.
Então
Normando contou a história do lugar maldito aonde se abrigavam nessa noite de
tempestade. Falou sobre as pessoas terríveis que ali viveram e os atos
monstruosos que cometeram. Falou sobre o estupro que começou tudo, anos atrás.
O primeiro ato de violência. Falou sobre a garota violentada e sobre a morte
horrível com que seu algoz optou encerrar sua agonia. Falou sobre como os seus
gritos de desespero foram ignorados pelos vizinhos egoístas e contou os
detalhes de cada corte da navalha que o maníaco usava como instrumento de
prazer sádico.
–
Era um sujeito doente, sem dúvida. Estudante, como nós, mas era barra pesada.
Ele e seus amigos. A garota também não era nenhuma inocente, mas ninguém merece
nada como aquilo.
Deu
mais um tapinha antes de continuar.
–
Foi apenas o começo. O assassino foi preso, acho que morreu na prisão. Os caras
que moravam com ele foram acusados de cúmplices, mas tiveram sorte, hoje estão
livres em algum lugar por aí. A casa ficou vazia por alguns meses, então a
imobiliária resolveu oferece-la pra locação de novo. Tudo foi limpo. Nenhum
vestígio da sujeira restou. A coisa toda aconteceu num dos quartos lá da
frente, não sei em qual, não dá pra saber. No ano seguinte, um novo pessoal se
mudou.
–
Deus – interrompeu Camile, que havia se sentado e abraçado as pernas contra o
corpo, os olhos fixos no rosto de Normando – Isso é mesmo verdade?
Normando
não respondeu. Apenas olhou para ela com uma expressão impaciente. Depois continuou:
–
Sabem, algumas pessoas acreditam que os lugares às vezes podem ficar... como
direi... carregados... infestados... quando altas cargas de emoções violentas são
desprendidas neles. Eu acredito que, de alguma forma, aquele crime deixou esse
lugar marcado. Energia negativa impregnada nas paredes. O lugar tornou-se
infestado, uma casa carregada de dor e violência. Um lugar ruim... que atraía
coisas ruins. Todas as pessoas que moraram aqui depois daquilo eram gente da
pior espécie. Novos crimes foram cometidos. Era como se nada de bom pudesse
acontecer aqui. Ninguém conseguia morar mais do que alguns meses e tudo o que
começava aqui, acabava em violência e, às vezes... morte.
–
E você achou uma boa ideia nos trazer pra cá? – riu Cana – Jesus, você é um
grande filho da puta.
Normando
os observou atentamente. Havia um certo receio nos olhos de todos, mas a
alegria eufórica do vinho nublava a real compreensão daquilo que ele contava.
(Essa
casa atrai coisas ruins: o que viemos fazer aqui?)
Não
estavam levando aquilo muito a sério. Ainda bem, pensou.
–
Então apareceu esse cara de que falei, o tal Mago. Ele procurava por um lugar
assim. Um lugar ruim. Via isso aqui como terreno fértil para as sementes que
queria plantar. Era um caro muito maluco, devia ter uns quarenta anos, mas
parecia mais velho. Era magro, alquebrado. Não me lembro dos detalhes da cara dele,
mas não posso esquecer os olhos escuros que me encaravam quando conversamos uma
vez no Sujinho’s bar. Ele não bebia e nem usava drogas, mas adorava a companhia
de drogados. Parecia ter prazer em conversar com alguém totalmente chapado. E
ele era bom de conversa, você simplesmente não conseguia deixar de prestar
atenção. Ele me contou muitas coisas. Eu esqueci boa parte, pois estava muito
chapado, mas lembro de que me falou sobre coisas como universos paralelos,
outras dimensões, céu, inferno, anjos e demônios.
–
“Essas coisas existem, meu caro Normando”, dizia ele, “Demônios são reais, anjos são reais, mas não são nada daquilo
que você imagina, esqueça a Bíblia e todas aquelas baboseiras cristãs. Eu falo
de mitos e lendas muito mais antigos do que o próprio papa sonha, mais antigos
do que nossa civilização, mais antigos do que a raça humana”. Ele me falou
sobre como essas entidades vivem entre nós, muito próximas de nós, porém em
outros planos e dimensões, invisíveis, porém presentes, sempre presentes. Elas
afetam nossas vidas, alimentam-se de nossas emoções, conhecem segredos
insondáveis sobre os grandes mistérios que sempre atormentaram a alma humana.
–
Ele me disse que existem lugares que servem como passagens para as outras
dimensões. Lugares que permitem ver e entrever outros mundos e realidades.
Lugares marcados pela intensidade e poder dos extremos das emoções humanas.
Pontos do espaço onde as leis da física não têm validade, onde ângulos e
perspectivas que jamais poderiam existir, de fato existem. Ele me disse, por
fim, que tinha encontrado um desses lugares.
–
Eu não tive chance de conversar muito com ele. Não sei exatamente por que ele
queria tanto encontrar um lugar assim, mas sei que ele morou aqui por cerca de
três semanas e tinha a intenção de fazer uma espécie de ritual aqui. Acho que
fez mesmo. Uma noite ele desapareceu. Na mesma noite em que a polícia recebeu
uma denúncia de um vizinho a respeito de sons horríveis que vinham daqui. Sons
que pareciam vir do inferno. O Mago desapareceu, como eu disse. Não encontraram
nenhum vestígio dele. Nada. A casa está abandonada desde então. Ninguém mais
aceitaria aluga-la, a própria imobiliária não tem mais interesse nela. A água e
a luz foram cortadas e o lugar entregue às baratas... aos vândalos... mendigos... e
drogados... como nós.
Normando
matou o beque e não disse mais nada. Ao invés disso pôs-se tranquilamente a
acender outro. Sua expressão, como sempre, era indecifrável, mas, dessa vez,
era possível notar um ar de quem está se divertindo.
–
Porra, cara! – disse Cana, começando a rir – Você tá chapado!
Riu
ainda mais, sem se importar com a maneira sombria com que Normando o olhava.
Luana e Camile demonstravam certo nervosismo, mas logo começaram a rir também.
Normando permaneceu quieto, deixando que a maconha penetrasse profundamente em
seus pulmões. Então sorriu, dando de ombros:
–
É, acho que estou mesmo, não é?
–
O que tava querendo, seu porra? – riu Cana – Nos assustar? Você é foda mesmo!
–
Olha, se era isso estava conseguindo – disse Camile, cujo riso era nervoso e
inseguro.
–
Só estava querendo criar um clima – continuou Normando – é uma história e
tanto, não?
–
Eu achei muito boa – disse Luana servindo-se de mais um copo de vinho e
oferecendo-o à Normando, que aceitou.
Ele
bebeu um gole e ficou em silêncio até os risos diminuírem, depois arrematou:
–
Tenho uma surpresa pra vocês.
“Lá
vem outra”, pensou Cana.
–
O que é?
–
Mais tarde.
–
Ah... Fala logo – queixou-se Luana, atrevendo-se a dar um pequeno empurrão na
perna de Normando com o seu pé descalço.
–
Mais tarde. Vocês vão gostar.
2. LIGHT MY FIRE
Mais
uma hora passou. A tempestade continuava violenta, parecendo aumentar de
intensidade conforme o efeito do vinho se tornava mais evidente. Mas talvez
fosse só impressão. Não havia mais lugar para inibições. Luana aproximou-se de
Normando e começou a roçar o corpo contra o dele, os rostos quase se tocando. O
olhar frio de Normando, seu ar falsamente indiferente, excitava-a ainda mais; a
vaga lembrança de que havia mais pessoas ali, observando, fazia tudo parecer
ainda mais delicioso, sujo, perfeito. Os braços nus de Normando a envolveram
com força, rispidamente, quase com violência. Luana riu, um riso estridente,
irritante para ouvidos sóbrios; felizmente, não havia ouvidos sóbrios ali.
Camile
não conseguia desviar os olhos do delirante espetáculo que se desenrolava a
pouco mais de um metro dela. Em seu íntimo, ela se amaldiçoava por não
conseguir ser tão atrevida quanto à irmã. Sentia vagamente a mão de Cana
acariciando sua perna, subindo pela coxa até invadir a intimidade de sua saia.
Sentia a respiração quente e o hálito de vinho barato bem próximos de seu
rosto, sentia dedos habilidosos brincando com os pêlos úmidos entre suas
pernas. Mas não era o toque que a excitava ou os beijos molhados em seu pescoço,
mas sim a visão de Normando e Luana entrelaçados à sua frente. Aquilo sim era
divino. Mesmo quando seus lábios encontraram os de Cana, ela ainda hesitava em
fechar os olhos. Não queria perder um segundo sequer do espetáculo. Cana
percebia, é claro, e isso o enfurecia, mas não estava bêbado o bastante para
demonstrar a raiva. Estava muito claro pra ele que não passava de uma sobra ali
e teria que se conformar com isso. Não era hora de ser orgulhoso. Não se quisesse
comer ao menos uma das irmãs esta noite.
Nenhuma
palavra mais era pronunciada. O som de respirações ofegantes sobressaia o uivo
do vento e o jorrar da chuva. O estranho movimento das figuras nas paredes,
animadas pelo bruxulear das velas, parecia tornar-se mais nítido. Era como se
as próprias paredes arfassem em excitante contentamento. Totalmente incapaz de
conter-se ou avaliar-se, Luana ergueu a camisa de Normando, revelando o peito moreno
e forte, e começou a lambe-lo com volúpia, deixando que o gosto salgado do suor
a estimulasse ainda mais. Camile saboreava cada instante, refletindo em Cana
toda a excitação que sentia. Suas mãos agarravam o corpo tatuado com aspereza,
quase desespero. Cana respondia a altura, fingindo não notar que não era ele
que realmente importava. De qualquer modo, ela estava bêbada. Todos estavam
muito bêbados.
A
própria casa parecia, de algum modo, estar chapada, quem sabe há quanto tempo.
–
Está na hora da surpresa! – declarou Normando, inesperadamente, quebrando o
transe coletivo que reinava. Luana ergueu o rosto para ele. Parecia tão
apalermada que Normando quase teve vontade de rir. Camile, imediatamente,
desgrudou os lábios dos de Cana e começou a prestar atenção no que Normando teria
a dizer. Cana teve vontade de segura-la à força, mas se conteve. Tinha que se
conformar. Estavam ali para fazer o que Normando queria. Não era sempre assim?
Normando
esticou-se em direção à mochila, tentando não desvencilhar suas pernas das de
Luana. Encontrou um pequeno recipiente de metal, do tipo que se usa como
embalagem de pastilhas de menta. Havia vários pequenos comprimidos brancos em
seu interior, menores do que aspirinas. Normando apanhou um deles entre o
polegar e o indicador:
–
Esse é pra você, menininha ...
–
O que é isso? – perguntou Luana, ainda incapaz de controlar o próprio riso.
–
É um presente – respondeu ele, enquanto colocava o comprimido em sua boca.
Voltou-se
para Cana e Camile e estendeu a mão com mais dois comprimidos.
–
Que diabo é isso, cara? – perguntou Cana.
–
Passagem para o paraíso, irmão – brincou Normando, com um sorriso ébrio no
rosto.
–
Ou para o inferno? – disse Camile.
–
Faz diferença?
Normando
voltou a estender a mão. Dessa vez Camile pegou um comprimido.
–
Coloque sob a língua – explicou Normando. Ela obedeceu.
–
Sai dessa, cara – disse Cana – Isso é sujeira!
–
Afrodisíaco, meu irmão – sorriu Normando – Não que você precise. Não tenha medo
não!
Cana
encarou Normando. Havia raiva em seus olhos, mas Normando não notava, ou fingia
não notar. Ou não ligava, o que era mais provável. Cana jamais conseguiria
explicar, se tivesse tido futuro, por que fez o que fez nessa noite de
tempestade. Tudo o que sabe é que pegou um comprimido e colocou na boca.
–
Bravo! – disse Normando, voltando a se enlaçar com Luana – É assim que começa.
Tomou
um comprimido e beijou novamente os lábios quentes que mal podiam espera-lo.
De
todos, Luana era a única que não sabia o que havia tomado. Estava bêbada
demais, incapaz do mais rudimentar raciocínio, agindo apenas pelos instintos
mais básicos. Sequer se lembrava do comprimido. Tinha vaga consciência de um
formigar estranho na língua, mas não ligava. Sua consciência resumia-se a rápidos
flashes, quase como o brilho repentino dos relâmpagos. Deu-se conta, até com
certo susto, de que seus seios estavam à mostra. Onde foi parar a blusa? Não
importa. Nada importa a não ser os dentes de Normando mordiscando os bicos de
seus seios. Luana agarrava-se à cabeça dele com força, como se sua vida dependesse
disso. Percebeu que ele estava sem camisa. E ela? Estaria nua agora? Aquele
nojento do Cana estaria olhando para sua bunda nesse momento? Não importa. Não
importa. Camile estaria com ele? Estaria a irmã olhando pra ela, agora? Em
circunstâncias diferentes isso a deixaria inibida, mas agora apenas tornava
tudo ainda mais excitante. Ela estaria olhando? Não importa, não importa, não
iria olhar para trás. Fixou os olhos na janela. Podia ver a chuva escorrendo
pelo vidro. Quando um relâmpago surgia podia ver o vulto dos telhados vizinhos.
Podia ver a enorme boca escancarada abrindo-se para ela...
(podia
ver o que?)
...a
boca escancarada, seus dentes podres, distorcida... o que... o que estava vendo...
era... era...
Um
grafite. Era só mais um grafite em meio às infinitas pichações. Alguém havia
desenhado uma enorme boca ao redor da janela, dando a impressão que a própria
janela era a garganta, esperando para devorar quem se aproximasse. Não era
nada. Não era nada.
Mesmo
assim, Luana não podia deixar de olhar.
“Onde
estão seus demônios, Normando” sussurrava nos ouvidos dele, deixando que os
cabelos longos dos dois se misturassem até se tornarem quase indistinguíveis.
Normando puxou-a, de repente, fazendo-a deitar-se sobre a esteira,
aconchegando-se sobre ela. “Já estão aqui, menininha” sussurrava ele “Só não pode
vê-los ainda”. Ainda mais bruscamente, arrancou o short e a calcinha de
uma vez só, jogando-os para o lado, quase atingindo uma das velas. Um calafrio
repentino passou pelo corpo dela, Normando pôde sentir como se fosse em seu
próprio corpo. Parou, por um momento, para contempla-la. Como era linda. Estonteante.
Ela se encolhia diante dele, num rompante de recato involuntário e tardio. Sua
face avermelhada pelo vinho e pelo excitamento. Sua respiração ofegante. Em
seus olhos havia uma mistura deliciosa de desejo, delírio e... sim, de medo.
Também havia medo em seus olhos. Normando podia ver.
–
Mas é isso que te excita mais, não é, menininha? – sussurrou.
Perto
deles, Camile já assumira as rédeas da situação. Seu rosto era uma máscara
inexpressiva aos olhos de Cana, mas o que ela fazia não lhe dava motivos pra reclamar.
Quase com desdém, abriu o zíper da calça dele e, com mãos ágeis de alguém que
está longe de ser inexperiente, começou a brincar com o membro rígido que saltara
prontamente ao seu toque.
“Como
um boneco de mola saindo da caixa” pensou ela, sentindo vontade de rir, mas se
contendo. Poderia ser humilhante para o pobre Cana provocar risos à primeira
visão do pau que tanto o orgulhava. Bastava a frustração de perceber que ela
precisava assistir ao desempenho de Normando e Luana para conseguir ficar excitada.
E
Cana percebia. Ah... como percebia. E sua raiva aumentava a cada minuto. Por que
ela nem ao menos disfarçava? Não tirava os olhos de Normando. Quase não olhava
para o que estava fazendo.
Como
se tivesse lido seu pensamento, Camile voltou-se para Cana e encarou-o
friamente, oferecendo-lhe um fugaz sorriso. Então, enquanto uma das mãos
segurava o pênis dele com firmeza, a outra puxava a calcinha de lado revelando
o próprio sexo. Lentamente, movendo o corpo com insinuações serpenteantes,
começou a aproximar um do outro.
Normando
terminou de despir-se, procurando fazer de cada movimento um pequeno número
para os olhos famintos de Luana (e de Camile, ele não deixara de notar).
Deitou-se sobre ela e começou a penetra-la. Luana continha os gemidos como uma
criança que não quer incomodar, movendo-se ritmicamente, acompanhando os
movimentos dele. Conforme o ritmo aumentou, Normando começou a notar a luz.
Ela
emanava luz! Era incrível! Nunca imaginara nada igual. Estava começando, ele
podia sentir. Havia luz emanando dela e aumentava de intensidade a cada
sussurro de prazer. Será que ela já podia ver o brilho que, com certeza,
emanava dele também, ou seria diferente para cada pessoa?
–
Olhe para mim! – gritou Cana, segurando com violência o braço de Camile,
praticamente tirando-a de um transe. Ela obedeceu, instintivamente. Olhou para
o rosto suado, para o peito ofegante coberto de tatuagens. Havia corações,
dragões, serpentes, medalhas, símbolos, inúmeros desenhos de todas as cores.
–
Você está no lugar certo – disse ela.
–
O quê?
–
Essa casa combina com você.
A
expressão no rosto dele exprimia bem o asco que a ideia lhe provocou. Era hora
de terminar com isso.
Os
dois se encaixaram um no outro. Camile abraçou-o quando sentiu a penetração.
Então relaxou e deixou que Cana a conduzisse para onde quisesse.
O
pequeno e arruinado cômodo, iluminado por velas e relâmpagos, viu-se repentinamente
tomado pelo som de gemidos ecoantes, sussurros de êxtase e emoções intensas e
reverberantes. As paredes tatuadas pareciam prender a respiração, atentas a
cada detalhe. Normando podia sentir: estavam sendo observados, quem sabe por
quantos olhos diferentes? Luana agarrava-se a ele, arranhava suas costas,
estava quase lá. Sua luz ofuscava Normando, obrigando-o a fechar os olhos. Um
instante de soberbo júbilo e estava tudo acabado. Normando deixou-se cair sobre
ela, respirando profundamente, recuperando o fôlego. No mesmo instante, a luz
desapareceu. De algum modo, Normando sabia que parte dessa luz havia penetrado
nele... e nunca mais o abandonaria.
–
Você é puro fogo, garanhão – repetia ela em meio aos risos etílicos – Puro
fogo!
–
Fire walk with me, baby –
disse Normando, achando que a citação soaria apropriada. Começou a rir alto,
satisfeito com as visões que salteavam diante de seus olhos. Ficou de joelhos,
olhando ao redor. Os desenhos nas paredes se moviam, não era apenas impressão
agora. Era fato. Os desenhos se moviam, remisturando-se entre si, ganhando
novos e bizarros sentidos, deslizavam pela parede como grandes insetos,
brigando uns com os outros, trepando uns com os outros... caóticos...
enlouquecidos... alguns pareciam tentar falar com ele. As palavras, pichadas ao
acaso, os garranchos quase ininteligíveis, recombinavam-se em novas frases dos
mais variados significados. Era engraçado. Era muito engraçado e Normando ria.
Era tão bom estar vivo!
–
Você está vendo? – perguntou para Luana – Está vendo, menininha? Está vendo?
–
Estou – murmurou ela no momento em que o sorriso ébrio, pela primeira vez,
apagou-se de seus lábios. Sim, ela podia ver, mas não era o que Normando
pensava. Ela olhava para um ponto no teto, logo acima da cabeça dele, onde uma
grande mancha de mofo crescia e se movimentava, pulsando num ritmo constante e
monótono, como uma respiração. Luana tentava focalizar melhor, mas sua visão
estava embaçada como se uma nuvem pairasse diante dela. Notava agora que não
era a mancha de mofo que se movia, era o próprio teto que pulsava como se
tivesse vida. Olhando mais atentamente ela pôde distinguir veias saltadas,
nervos e volumes que se assemelhavam a alguma forma grotesca de musculatura
dando forma orgânica ao reboco do teto. Logo seus ouvidos captaram um som
abafado, o som de um grande animal respirando.
–
A casa está viva – murmurou, mas sua voz soou débil demais. Normando continuava
olhando ao redor, fascinado com os detalhes novos que conseguia perceber e
parecia ter esquecido dela. Luana continuou no chão, imóvel. Se sua mente não
estivesse tão nublada pelo efeito do vinho e das drogas com certeza estaria em
pânico, mas sua consciência e seu raciocínio estavam comprometidos demais para
que ela compreendesse o que via a ponto de obter uma resposta emocional. Olhava
para a massa de tecido vivo que o teto havia se tornado como quem olha nuvens
no céu, deixando que a respiração da casa determinasse o ritmo de sua própria
respiração.
–
Está vendo, não está, menininha? – dizia Normando – Está começando... não é como
as outras viagens. Aqui é diferente... aqui é diferente...
Asas!
Normando tinha asas! Luana podia ver asas brancas e resplandecentes brotando
das costas dele. Enormes, abertas e voltadas para o alto como se estivesse
prestes a voar. Era inacreditável.
–
Aqui é diferente... expansão da mente... outros mundos... o Mago tinha razão... tinha
razão...
Num
impulso, Normando ofereceu a mão para ajuda-la a sentar:
–
Veja, menininha – Olhe pra eles, Cana e sua irmã. Preste atenção. Você está
vendo? Está?
Abraçou
os ombros dela com firmeza. Sentados lado a lado na esteira suja, os dois
assistiam às evoluções do casal em êxtase. Cana e Camile estavam encaixados um
no outro, frente a frente, testas encostadas, os braços segurando um ao outro
com um misto de paixão e desespero. Cana penetrava-a repetidas vezes, adiando
ao máximo o momento final, tentando prolongar o ato o quanto pudesse. O suor
dos dois misturava-se e refulgia à luz das velas, dando aos seus corpos um
colorido avermelhado. Quente. Camile gemia alto. O ressonar de seu prazer era
tão angustiante quanto gritos de dor.
–
Preste atenção – dizia Normando segurando a cabeça de Luana com uma das mãos e
acariciando seu seio com a outra – Preste muita atenção. Consegue ver?
Consegue?
–
Sim – sussurrou Luana. Sim, ela podia ver. Eles emanavam luz. Uma luz branca e
forte que parecia brotar do interior dos dois e pulsava ao sabor de seus
movimentos ritmados. Luana estava fascinada. Era lindo. Nunca havia se dado
conta de como Camile era linda. E Cana, aquele nojento, era lindo. Tudo era lindo.
Luana queria dizer alguma coisa, dar voz ao que sentia, mas as palavras
faltavam.
–
Aquilo é vida, minha menininha – dizia Normando em seu ouvido – A luz da vida.
Energia. Energia pura se misturando, reproduzindo, queimando. Não é incrível,
menininha? Não é incrível?
Tudo
o que Luana conseguiu fazer foi mover os lábios formando a palavra “sim”, sem
emitir nenhum som.
Camile
sentiu uma leve fisgada na perna direita. Tentou ignorar, mas a dor aumentou,
uma pontada de ardor incandescente em sua coxa. Olhou para ver o que era: uma
das serpentes tatuadas no corpo de Cana estava mordendo sua perna.
Camile
gritou. Um grito estridente de puro terror. Saltou para trás, desvencilhando-se
dos braços dele ao mesmo tempo em que chutava a esmo com ambos os pés. Com o
impulso bateu as costas contra a parede. Começou a chorar, histérica, segurando
a perna. Havia um filete de sangue escorrendo de duas minúsculas feridas na
parte interna da coxa direita, poucos centímetros abaixo da virilha.
–
Veneno! Deus! Meu Deus do Céu! Eu vou morrer! Ele me envenenou! Ele me
envenenou! – gritava sem parar, com lágrimas escorrendo abundantemente dos
olhos avermelhados. Cana arfava agachado no chão tentando se recuperar dos
chutes no estômago, xingando sempre que conseguia emitir algum som além de
grunhidos de dor. Luana e Normando assistiam tudo, estupefatos. Luana olhava
para a irmã com os olhos arregalados. Não entendia o que havia acontecido, a
não ser que Camile estava chorando. Normando começou a rir baixinho, tentando
conter o som.
–
Porra, Camile! – gritou Cana, ficando de pé – O que deu em você? Quase acabou
comigo!
Ela
parara de gritar, mas não conseguia conter os soluços. Olhava ensandecidamente
para a ferida na perna. Não podia ser verdade. Olhou para Cana e quase guinchou
de pânico: as tatuagens estavam vivas! As serpentes agitavam-se enlouquecidas
como os cabelos da Medusa no corpo musculoso. Camile podia ouvir seu sibilar.
–
A cobra me picou... me picou... – balbuciava em meio aos soluços.
–
Cobra? – gritou Cana – Você tá chapada, mulher! Raciocina! Você tomou LSD,
porra! Está vendo coisas!
Mas
Camile não entendia uma palavra, nem poderia, não enquanto continuasse a ver as
serpentes rastejando pelos braços dele, enrolando-se e desenrolando-se, como se
quisessem fazer carícias em seu dono. Estava quase louca de pavor e repulsa.
Soluçava descontroladamente. Abria a boca para gritar, mas não encontrava voz,
emitindo apenas um esganiçar angustiante.
–
A culpa é sua, seu filho da puta! – vociferou Cana voltando-se para Normando –
não ficou contente enquanto não chapou todo mundo, não é? Do que está rindo,
desgraçado?
–
Desculpa, cara – riu Normando – mas você tá muito engraçado todo nervosinho,
com o pau duro apontando pra lá e pra cá.
Começou
a gargalhar, quase caindo no chão. Cana ficou paralisado por alguns instantes,
encarando Normando com a face transformada numa máscara de ódio. Cerrou as mãos
com tanta força que as palmas quase sangraram sob a pressão das unhas.
–
Foda-se, cara – repetia sem parar. Valeria a pena esmurrar aquela cara
sarcástica? Claro que valeria – Foda-se você...
–
Não chore.
Era
Luana falando com a irmã. Com tamanha suavidade e ternura que o contraste
atraiu imediatamente a atenção dos dois homens. Engatinhou até Camile,
ajoelhando-se na frente dela.
–
Não chore, Camile. Por favor.
–
Veneno, Lu – balbuciava Camile. Parecia infantilizada, uma criança em pânico.
Luana
olhou para onde ela indicava. Viu as feridas vermelhas e o sangue escorrendo.
–
Temos que tirar o veneno, Camile.
–
Eu vou morrer.
Normando
observava tudo. Fascinado. Estava ficando cada vez melhor.
–
Não vai morrer, Camile. Eu sei como fazer. Eu vi nos filmes.
Luana
sorriu para encoraja-la. Então se abaixou, lentamente, até encostar os lábios
na ferida. Com suavidade, começou a morder e sugar. Camile aspirou o ar com
força, segurando os cabelos dela, deixando escapar um gemido agudo e alongado.
Fechou os olhos e recostou-se na parede. Sua respiração tornara-se uma sucessão
de soluços entrecortados. Luana mordia e lambia o sangue voluptuosamente.
Camile debruçou-se sobre ela, envolvendo-a com os braços.
De
pé, ainda paralisado, Cana olhava a cena com uma expressão de repulsa. Era
demais. Aquilo era demais.
–
Porra, cara... – disse, voltando-se para Normando, que assistia tudo com o rosto
impassível, a fascinação expressa apenas pelos olhos que brilhavam na penumbra.
–
São lindas, não são? – murmurou Normando. Para Cana foi a gota d’água.
Sentiu-se mal. Cambaleou vítima de uma tontura repentina. Avançou em direção
aos cômodos internos e entrou pela porta que mais lhe pareceu um banheiro,
batendo-a atrás de si.
Luana
ignorou o estrondo. Camile, entretanto, estremeceu e pareceu despertar como que
de um sonho. Quase inconscientemente, acariciava as costas nuas da irmã, que
ocultava o rosto entre suas pernas, a língua trabalhando freneticamente. Camile
viu Normando sentado no chão olhando para elas. Não lembrava onde estavam. Entorpecida
pelas drogas e pela adrenalina tinha dificuldade em processar o que estava
acontecendo e as alucinações (se é que eram mesmo alucinações) só tornavam as
coisas mais complicadas. LSD, foi o que Cana disse? Sim, é verdade, tinha
tomado LSD. Normando havia oferecido. Os olhos dele brilhavam no escuro como
estrelas gêmeas e havia coisas se movendo nas sombras atrás dele. Era difícil
ver, havia poucas velas acesas agora. Quando tempo teria passado? Que horas
eram? Tão difícil pensar. Sentia o corpo se arrepiar a cada nova evolução da
língua esperta de Luana. Tão bom... Tudo tão bom... As paredes... as paredes não
estão certas... os ângulos... não estão certos... onde estão os ângulos retos?... tudo
estranho... torto... errado...
Estava
tudo errado! O que aconteceu? O que estava fazendo ali com Luana? O que ela
estava fazendo? Era... delicioso... absurdo... sujo... era tão... perverso... tão bom... era
bom demais...
Camile
segurou a cabeça de Luana e, com suavidade, forçou-a a se erguer. As duas irmãs
ficaram sentadas, de pernas cruzadas, uma em frente à outra, bem próximas. As
mãos de Camile envolviam o rosto de Luana, que tinha uma expressão vazia, um ar
abobado, o vermelho róseo do sangue tingindo sua boca e queixo como uma
vampira. Ela parecia tão frágil, tão pequena, tão bonita. Camile não se
lembrava mais do que pretendia fazer ou dizer. Ao invés disso inclinou-se e
uniu sua boca a da irmã, sentindo o gosto salgado de seu próprio sangue nos
lábios dela.
O
beijo pareceu durar uma eternidade, as línguas unidas entrelaçavam-se como se
jamais fossem se separar. Finalmente, quando Camile abriu os olhos e
afastou-se, viu o rosto de Luana banhado em lágrimas. Ela chorava e movia a
cabeça em sinal de negação sem desviar os olhos dos da irmã. Então levantou e
correu para longe, sem sequer pensar para onde iria, o instinto levando-a a
fugir para o corredor que levava ao hall por onde haviam entrado. Camile
estendeu os braços, tentando dizer algo para faze-la parar de chorar, mas não
pôde. Luana correu até sumir de vista, desaparecendo num corredor escuro e
grotesco onde não havia sequer um ângulo reto, onde a própria lógica da
perspectiva havia sido banida. Um corredor que antes não tinha mais do que dois
metros de comprimento, mas que agora alongava-se infinitamente na escuridão.
Camile tentou gritar para que ela voltasse, mas sua voz não se propagava. Tudo
que lhe restava era sentar-se na esteira suja, vendo as sombras se adensarem ao
seu redor, enquanto suas próprias lágrimas começavam a verter.
3. STONED IMMACULATE
Escuro.
Cana não se deu conta de que não haveria velas no banheiro. Pensou em voltar
para pegar uma, mas afastou logo a ideia. Não queria voltar pra lá. Ainda não.
Encostou-se
na porta e esperou que os olhos se acostumassem à escuridão. Uma pequena janela
com os vidros quebrados permitia a entrada dos rápidos flashes dos relâmpagos,
além do vento frio e sibilante carregado de água de chuva. Como numa câmara
estroboscópica, a luz intermitente lhe permitia ir montando mentalmente as
características do banheiro arruinado. Não havia muita coisa. Um vaso sanitário,
uma pia trincada, um espelho partido. Anos de sujeira acumulada sob a sola de
seus pés. Desagradável. Tanto quanto as pichações, também presentes, ainda mais
obscenas do que nos outros cômodos, como se fosse possível.
Caminhou
com cuidado até o vaso, temendo pisar em cacos de vidro ou outras coisas indesejáveis.
Não sentia nenhum cheiro. Devia estar seco. Com certeza já fazia muito tempo
desde que alguém mijara ali. Mas Cana não se sentia muito honrado pelo
privilégio.
O
odor de sua própria urina incendiou o ambiente. Vinho e cerveja eliminados num
jorro que parecia eterno, mas Cana agradeceu pela duração. Quanto mais demorava
mais a excitação diminuía. Era um alívio sentir o pênis murchar entre os dedos.
Não queria se sentir excitado com nada daquilo. Não queria participar dos jogos
doentes de Normando. E aquelas duas então? Quem imaginaria?
Ajoelhou-se
diante do vaso, respirou fundo, utilizando o cheiro como um incentivo adicional.
Enfiou os dedos na garganta até ativar o reflexo. Foi fácil. O vômito, líquido
e avermelhado, pareceu igualmente interminável. Quando acabou, fechou os olhos
e descansou alguns minutos ali mesmo, apoiado nas bordas da privada. O cheiro
agora era azedo. Ainda se sentia mal. Abriu os olhos quando um ruído borbulhante
lhe chamou a atenção. Vinha do interior do vaso, mas no escuro não via mais do
que uma mancha negra. Um relâmpago estalou e Cana distinguiu uma mão manchada
de vômito emergindo em sua direção.
O
grito de surpresa soou como um guincho, mais feminino do que gostaria. Cana
saltou pra trás, pondo-se em pé, respirando rápido, ofegante. Na abertura negra
do vaso não havia mais nada visível. “Deus”, pensou, “Por que tomei aquela
porcaria?”. Já tinha tomado ácido antes. Sabia que aquilo caía direto na corrente
sanguínea, não adiantava nada forçar vômito. Não estava pensando direito.
Camile tinha dito que tinha visto cobras? Pois iria ver muitas mais quando
resolvesse parar de trepar com a irmã. “Deus do Céu!”.
Ouviu
um riso abafado atrás de si, sentiu algo movendo-se no limiar de sua visão.
Voltou-se rápido, mas mesmo que houvesse algo não podia ver. O movimento
causou-lhe tontura. Apoiou-se nas bordas da pia imunda e fechou os olhos. Não
era nada, é claro, só alucinações. Seria uma viagem ruim, sem dúvida. Uma
viagem muito ruim.
Ouviu
o riso de novo, dessa vez mais claramente. Decidiu ignorar. Encarou a própria
face no que restava do espelho. Não mais do que um vulto escuro na superfície
trincada, a não ser quando os relâmpagos lhe mostravam o quanto estava péssimo.
Num desses flashes, Cana viu dois rostos atrás de si. Apenas rostos, não podia
ver os corpos. Eram máscaras. Aquelas famosas máscaras do teatro: a face que
sorri e a face que chora, brancas, fosforescentes, flutuando nas sombras do
banheiro.
“Porra!”
Estava decidido a não dar atenção a nada estranho que visse, ao menos enquanto
pudesse aguentar. Virou-se devagar, imaginando que as máscaras desapareceriam,
mas não, lá estavam. Como dois sujeitos vestidos de preto, de modo que apenas
as faces brancas eram visíveis no escuro. De que buraco de sua imaginação teria
tirado isso?
“Porra!
Sumam da minha frente, suas bichas!” resmungou fechando os olhos e esfregando o
rosto com as mãos. A cabeça estava muito leve, as pernas fracas. Estava chapado
demais, mas conseguiria dar conta de algumas esquisitices. Anos de prática.
Felizmente ainda podia pensar.
Por
enquanto.
Um
relâmpago mais forte, acompanhado de um estrondo violento, o assustou. Abriu os
olhos e as máscaras ainda estavam lá. Mister Happy and Mister Sad. Bela dupla. Estranho. Muito constantes para
simples alucinações. Muito reais. Começou a sentir-se apreensivo e odiou-se por
isso. Queria que aquilo sumisse. Queria apagar e acordar na manhã seguinte, ou
na tarde seguinte.
–
Sumam... – rosnou agitando o braço como quem espanta uma mosca inconveniente. Uma
mão forte agarrou seu pulso. A surpresa o fez estacar, estupefato. As máscaras
estavam bem mais próximas. Aparentemente a mão que o segurava pertencia a Mister
Sad. Tentou puxar o braço, mas a mão não o largava, firme como uma morsa.
Paradoxalmente, Mister Sad começou a emitir o som claro e distinto de
uma gargalhada. Um riso agudo e irritante, como uma vitrola velha fora de
rotação.
Com
um movimento rápido, Mister Sad torce o braço de Cana para trás, imobilizando-o.
Cana grita de dor ao sentir o membro ser forçado contra as costas quase além de
sua capacidade de dobrar-se. Tenta pedir socorro, mas a mão livre de Mister
Sad o amordaça antes que pudesse emitir qualquer outro som.
Impotente,
Cana assiste Mister Happy aproximando-se até a máscara ficar imóvel a
poucos centímetros de seu rosto. Não sentia ou ouvia nenhuma respiração. Mister
Sad apoiou o queixo no ombro esquerdo de Cana, e assim ficaram os três por
minutos intermináveis.
Acalme-se... sibilou uma voz.
Incapaz
de compreender o absurdo da situação, apenas obedeceu. Parou de tentar
soltar-se.
Relaxe...
Cana
respirou fundo. A pressão em seu braço diminuiu gradualmente, até que a mão de Mister
Sad o largou. O braço voltou à posição normal, formigando. Cana poderia
aproveitar a chance para tentar escapar, mas não conseguia desviar a atenção
dos buracos negros e profundos dos olhos da máscara de Mister Happy.
Sente-se belo, Cana?
O
corpo de Mister Sad encostou-se ao seu, a cabeça mascarada ainda apoiada
em seu ombro.
Sente-se sexy?
Pele
nua colava-se às suas costas. Pele feminina, estava certo disso. A textura e a
conformação do corpo eram inconfundíveis. Podia sentir os seios, os pêlos
pubianos roçando suas nádegas. Uma mulher nua esfregava-se em seu corpo. A
perna o envolvia, um pé delicado acariciava sua pele. Os braços deslizaram
pelos seus até alcançar as mãos, entrelaçando os dedos.
Você é um comedor, não é?
A
voz parecia zombar. Estava aparentemente livre, mas não conseguia se mover. Miss
Sad continuava esfregando-se em seu corpo. Para cima, para baixo,
ritmicamente. Seu coração batia num misto de medo e excitação. O suor
empapava-lhe a pele. Sentiu o pênis enrijecendo. Apesar do medo, não podia se
controlar.
Por que não me come?
Braços
esguios envolveram seu abdome. Cana estremeceu. As mãos de Miss Sad
continuavam firmemente entrelaçadas as suas, então de onde vinham esses braços?
De repente outros braços surgiram, e mais outros, contorcendo-se de maneiras
que nenhum membro humano poderia. Quando se deu conta, estava imobilizado por
um grotesco abraço de inúmeros braços serpenteantes. A textura ainda era de
pele humana, mas os movimentos eram absurdos, impossíveis. O pavor começou a
crescer dentro dele, travando sua garganta e fazendo seu coração disparar ainda
mais. Lutando contra o fascínio bizarro que a máscara de Mister Happy
exercia, Cana conseguiu virar o rosto, tentando ver a máscara de Miss Sad
ainda apoiada sobre seu ombro. No exato instante em que um relâmpago iluminou o
banheiro, Cana pôde ver seu reflexo no espelho.
A
única coisa vagamente humana no horror que o abraçava era a máscara lacrimosa.
Todo o restante era uma horrenda massa grotesca de pústulas pulsantes e
tentáculos flexíveis que o envolviam como se jamais pretendessem se separar dele.
Cana pôde ver a coisa apenas por uma fração de segundo, mas foi o bastante para
que um grito terrível escapasse de seus lábios. Horrorizado, tentou
desesperadamente se desvencilhar, mas não pôde mover um músculo sequer,
amarrado como estava pelos tentáculos do horror atrás de si, que agora começava
a emitir o som repugnante de uma respiração pesada, assobiando pelas frestas da
máscara tristonha. Cana gritava, gritava até perder o fôlego, para então respirar
e gritar novamente. Onde estava Normando? Será que não ouvia?
Não, Cana, ele não te ouve... Ele nunca te ouviu... nunca ligou pra você...
nunca foi seu amigo... você é apenas plateia, seu tolo, nunca percebeu isso?
Uma
mão, aparentemente pertencente a Mister Happy, agarrou seu pênis. O espanto
foi tanto que Cana silenciou.
Você era o fodão, não era? Com essa
porrinha aqui você comia todas, não é? Quantas bocetas essa sua coisa fodeu?
Quantas?
A
mão deu um puxão violento e torceu. Cana gritou, dessa vez de dor.
Imediatamente os tentáculos o soltaram e a coisa desapareceu na escuridão.
E ultimamente? Quantas têm fodido? Como
anda a sorte do garanhão tatuado?
Um
novo puxão forçou Cana a mover-se. Foi conduzido até a pia, então a mão o
largou. Cana apoiou-se, tentando recuperar o fôlego.
Vai responder, garanhão? Sei que quer
responder. Pode falar. Aqui você vai ser ouvido.
–
O que quer que eu diga? – balbuciou Cana sem se atrever a olhar para trás ou
para o espelho.
Diga a verdade...
Um
dedo com uma unha comprida demais deslizou por suas costas, provocando um arrepio.
...diga se você é ou não um comedor.
Cana
começou a chorar.
–
Eu transo bastante sim, se é o que quer saber – disse entre lágrimas.
Oh... jura? Pode dizer isso de novo, garoto?
–
As meninas gostam de transar comigo...
Correção : gostam de ser fodidas por você.
Com caras como você não se transa... nem se faz amor... nem mesmo se trepa... apenas
se fode!
–
Eu... eu... eu não entendo... não entendo o que quer dizer...
Nem deve, querido... você é um daqueles
infelizes destinados a jamais entender a razão das coisas.
Cana
cerrava desesperadamente os olhos. Não queria arriscar ver mais nada, mas era
inútil. Imagens de tudo o que acontecia atrás dele invadiam sua mente. “Expande
a consciência, cara”, lembrava-se de Normando dizendo, certa vez, “Põe você em
sintonia com outros mundos, outras realidades, onde ver é apenas o começo”.
Achava tudo aquilo baboseira. Até agora. Sentia-se pequeno, vulnerável. Forças
terríveis estavam espreitando e Cana sentia medo. Como nunca antes em sua vida.
O
horror de tentáculos estava lá. Sabia disso. Não precisava ver. Mas agora Happy
e Sad fundiram-se em um único e grotesco corpo, enorme, mutável, com
duas cabeças mascaradas flutuando nas extremidades de tentáculos alongando-se
no ar. A massa pulsante espalha-se, recobrindo todo o espaço do pequeno banheiro,
deslizando pelo chão, subindo as paredes, escorrendo pelo teto, onde estranhas
estalactites de massa gelatinosa começam a se projetar, delineando-se, tomando
forma, até se tornarem cópias exatas de cada mulher com quem Cana trepou em sua
vida. E eram tantas, tantas mulheres de cabeça pra baixo, rostos vazios, bocas
abertas com as línguas pendendo. Perfeitas em cada detalhe, pelo menos até a
cintura, onde se fundiam à massa pulsante.
–
Eu não engano ninguém... todas que saíram comigo sabiam muito bem o que eu queria...
Queria... ou precisava?
A
pergunta o chocou. De início não entendeu por que. Então percebeu que era
porque fazia sentido.
–
Eu... precisava...
Precisa.
–
Sim... eu... eu preciso...
Não suporta ficar muito tempo sem foder.
Precisa foder. Sempre com mulheres diferentes...
–
Sinto-me... mal... quando fico muito tempo sem transar...
Sem foder, Cana. Deve concordar que é um
termo mais apropriado.
–
Sem foder.
Você fica mal. Você sofre.
–
Sinto ansiedade... angústia...
Abstinência.
–
Abstinência...
Cana
esconde o rosto com as mãos. O horror ressoa em macabro regozijo. As mulheres
sorriem e balançam as cabeças em sinal de aprovação.
Têm se sentido muito ansioso ultimamente,
garotão?
Em
algum lugar profundo dentro de si mesmo, Cana pôde sentir algo despertando.
Já não têm fodido tanto quanto antigamente,
não é?
–
Não... não tenho...
A mulherada já não abre as pernas tão
fácil?
–
Não. Não abrem.
Por que, Cana, meu velho? Por que seu
charme irresistível tem falhado tanto?
Silêncio.
Claro que sua fama não é muito boa, mas,
como você mesmo disse, você nunca enganou ninguém.
Silêncio.
Que tal se datarmos o começo de seu
declínio? Quando seus problemas começaram? Mais ou menos na mesma época em que
conheceu Normando?
Os
olhos de Cana se abrem, sob as palmas das mãos.
Mais ou menos na época em que se tornou um
capacho? A mera sombra de um homem?
As
mãos afastam-se do rosto, ainda abaixado, fitando a pia.
Ele controla você. Controla todo mundo.
Todos o acham fascinante, ou o temem, ou ambos. As mulheres caem em cima dele.
Não há espaço pra você. Não há espaço para um capacho. Você era decidido,
orgulhoso. Agora, olhe pra você. Comendo restos. Por que se rebaixa assim? Ele
nem mesmo demonstra gostar de você.
Silêncio.
Ah... sim! Eu entendo. É difícil se livrar
dele, não é. Ele é magnético. É como uma serpente. Você simplesmente não
consegue fugir.
O
rosto ergue-se, fitando o espelho.
Mas você sabe que existe um meio.
A
face no espelho sorri para ele. Uma face inteiramente branca, com um enorme
sorriso estampado e lágrimas frias escorrendo. Mister Happy and Mister Sad.
Não
sabe?
4.
BREAK ON THROUGH
As
presenças estavam por toda parte.
Normando
estava maravilhado. Nunca, nem mesmo em seus sonhos mais loucos, ele foi capaz
de imaginar tamanho deleite. O Mago tinha razão. Estavam à borda da realidade.
Estavam na Encruzilhada dos Mundos. E tudo era... delicioso.
Por
um momento havia perdido o controle. Não muito, mas um pouco. Nada que não
pudesse compensar, mas, ainda assim, fora preocupante. Não podia se dar ao luxo
de distrações, esquecer onde estava e dos perigos potenciais, mas o luxuriante
caldo de sensações e sentimentos pegaram-no de surpresa. A mente expandiu-se
rápido demais para além dos limites do corpo. Deveria ter imaginado que,
naquele lugar, o efeito da droga seria diferente, mais rápido, mais incisivo.
Pena não ter conseguido algo mais apropriado, ácido era um produto químico,
artificial, moderno demais. Peyote teria sido mais adequado, mas o efeito, no
fim das contas, era o mesmo: abrir as portas da percepção e dar uma boa olhada
além delas.
E
havia muito para ver. Oh... sim! Muito para ver, muito para sentir. As ondas de
prazer que atravessavam seu corpo eram inenarráveis. Naquele momento ele sabia
que ninguém mais tinha a menor ideia do que era prazer. Sexo? Drogas? Comida?
Dinheiro? Bobagens! Prazer era o que estava sentindo agora: a sensação de fazer
parte de algo gigantesco, transcendental. Prazer era unir-se de corpo e alma ao
cosmos!
Fora
fascinante observar o efeito de tudo aquilo nos outros, acompanhar suas
reações, suas respostas instintivas. Eles não tinham a menor ideia. O fluxo os
estava levando, possuindo, estavam sendo arrastados sem compreender. Seria tão
fácil se deixar levar com eles, mas precisava lutar contra isso. Caminhar com o
fluxo e não ser arrastado por ele. Sua distração, sua perda momentânea de
alto-controle, provocou o rompimento do círculo. Num momento estavam todos ali,
juntos, num insinuante e semiconsciente ritual tântrico de copulações ferozes e
sentimentos devoradores, um círculo de poder e luxúria, provocando e atraindo
as presenças para perto, bem perto, tornando as energias propícias para a queda
das barreiras entre os mundos. Então, sem que Normando pudesse fazer nada para
evitar: o rompimento, a fúria de Cana, sua saída intempestiva, violenta,
arrancando as irmãs de seu inesperado, mas excitante, êxtase incestuoso,
forçando-as a encararem seus desejos subconscientes de forma abrupta e
traumática. Normando estava sozinho agora. Cana se foi, trancando-se como um
menino birrento; Luana, a deliciosa Luana, fugira aos prantos, aterrorizada pelos
próprios instintos; e Camile, sentada num canto, era agora apenas uma garota
trêmula fitando o vazio, despojada de sua antiga força. Tudo porque Normando se
distraiu e deixou as coisas escaparem do controle. Uma pena, mas ninguém pode
pensar em tudo. Era tarde demais para restaurar o círculo, agora cada um deles
estava sozinho na encruzilhada. “Tudo bem”, pensou, estava mais do que
acostumado a fazer as coisas sozinho. Seu caminho era trilhado na solidão.
Afinal, quem iria caminhar com ele?
Arrastou-se
até o centro da sala, o centro do desenho traçado tão cuidadosamente com as
velas sem que ninguém notasse suas intenções. Sentou-se, com as pernas
cruzadas, numa posição de relaxamento assimilada de inúmeros livros obscuros e
empoeirados, em grande parte indicados pelo Mago. Ele lhe contara tantas coisas
naquela noite distante... muito mais do que admitiu aos outros, mas muito menos
do que realmente precisava saber. Não importa. As lacunas foram mais do que
preenchidas pelos seus próprios estudos. Acreditava estar pronto.
Concentrando-se, alterou lentamente o ritmo da respiração, expulsando os
pensamentos aleatórios. Tinha que assumir o controle da expansão que o ácido
promovera em sua consciência. Entrara em ligação direta com as forças que
habitavam aquela velha república. Precisava explorar essa ligação. Foi mais
fácil do que pensara. Sentiu a mente entrando em contato com cada fresta, cada
centímetro. Podia ver e sentir as presenças. Havia vida ali? Que tipo de vida?
Normando olhou ao redor, seguindo os seres que agora eram perfeitamente
visíveis. As paredes pulsavam num ritmo atordoante, entidades sobressaiam da
massa mutante de pichações, formas que nem mesmo a imaginação do mais desvairado
dos loucos poderia conceber, flutuando no ar como peixes num aquário, como
protozoários numa gota de sangue. Viu espectros de figuras humanas
movimentando-se cegamente pelo espaço, como atores numa peça. Viu um rapaz de
físico forte caminhar cambaleante, apertando o cano de um revolver na têmpora.
Viu uma forma bizarra, protoplasmática, cheia de finos tentáculos, flutuar
abrindo caminho. Viu uma garota chorando sentada num canto escuro, limpando as
lágrimas com uma das mãos e acariciando os pêlos pubianos com a outra. Viu um
garoto franzino tropeçar nas pernas estendidas da moça ao ser atingido pelo
murro de um grandalhão visivelmente alcoolizado. O rapaz grita e implora com a
boca cheia de sangue e dentes quebrados, perdendo o equilíbrio e caindo sobre
uma criatura de forma indescritível que fecha seus pseudópodes sobre ele e
submerge no interior da parede. Sim, Normando podia ver tudo isso, imagens sobrepostas
como se todas as pessoas que já moraram ali agora tivessem que compartilhar o
mesmo teto.
Mas
não eram pessoas de verdade, é claro. O Mago lhe falou sobre aquilo. Não eram
nem mesmo fantasmas. Eram presenças. Resíduos. Impressões marcadas a ferro e
sangue no tempo e no espaço, emoções violentas que tinham o poder de moldar a
matéria que existia entre nosso mundo e outros. A substância da encruzilhada. O
que não as tornava menos perigosas, muito pelo contrário.
Normando
fechou os olhos. Sentidos como a visão não tinham utilidade ali. Meros sensores
incapazes de ir além de converter estímulos em formas compreensíveis para a
mente. Como a interface de um computador, que pode ser facilmente enganada por
quem (ou o que) saiba como fazê-lo. Tinha de ir além dos sentidos, permitir que
a própria mente atuasse como um sensor. Sim... estava acontecendo, podia sentir.
Sabia tudo o que ocorria em toda a sobreloja, em cada cômodo... e além. Os
limites do espaço físico já não eram mais facilmente identificáveis, a planta
modificava-se continuamente em pequenos detalhes, as medidas variavam, a
geometria não fazia sentido. Era fantástico... as presenças espalhavam-se por
todos os cantos, todas com uma história para contar... atos de horror e
violência... fogo... ódio... paixão... loucura... delírio... tudo girava, contorcia-se,
rodopiava... Normando ria, Normando chorava, esbravejava, cantava, ele não tinha
ideia de que seria assim... não tinha a menor ideia...
Havia
mais!
Havia
outros tipos de presenças ali, pairando pouco além dos limites de sua
percepção. Não eram espectros de seres humanos vivos ou mortos, não eram as
bizarras criaturas sem mente que habitavam a encruzilhada reagindo aos
estímulos do mundo físico. Eram algo mais. Não vivos, mas tampouco mortos, no
sentido biológico do termo. Normando sentiu o sangue gelar, numa mistura
agridoce de medo e fascínio. Eram estrangeiros, alienígenas no sentido mais
extremo possível, entidades que habitavam o outro lado, criaturas dos mundos do
além. Havia muitos... e mais deles se aproximavam. Claro, seu território havia
sido invadido. Normando sabia o que eram. Não tanto por seus estudos, não tanto
pelas conversas com o Mago, mas por instinto. Assim como por instinto os
homens, a muito, deram nome a esses seres sem nunca compreender realmente o que
haviam batizado.
E
foi então que, no mesmo instante em que sentiu a presença dos demônios,
Normando ouviu Luana gritar.
5. PEOPLE ARE STRANGE
Luana
nunca tomara conhecimento de qualquer coisa que extrapolasse a esfera do
prosaico. Não havia espaço em sua vida para especulações filosóficas, quanto
mais metafísicas. O máximo de misticismo que se permitia era uma vaga crença na
igreja católica e algumas supertições pouco significativas. Era uma garota
moderna, impulsiva, que se sentiria desenraizada se fizesse qualquer coisa que
a deslocasse dos caminhos habituais da maior parte de seus contemporâneos.
Seria lícito dizer que Luana estava satisfeita em encaixar-se na maior parte
das estatísticas, se alguma vez tivesse se dado conta disso.
Presenças,
espectros, magia, dimensões, planos de existência, níveis de realidade, todos
esses termos tão caros a Normando não constituíam sequer notas de rodapé no
imaginário de Luana. Sua mente era tão simples, tão frágil, como poderia lidar
com o que viu quando entrou sozinha naquele quarto escuro?
Nesse
contexto, gritar foi um bom começo.
Tinha
corrido, sem pensar em nada a não ser fugir, era a única coisa que fazia
sentido. A expressão nos olhos de Camile queimava em sua lembrança. Não queria
pensar naqueles olhos, não queria lembrar dos lábios dela, do gosto do sangue,
do...
Não!
Estava pensando demais! Não é bom! Sair... se saísse daquele lugar tudo voltaria
ao normal. Sua cabeça estava estranha, mas ela estava certa de que iria
melhorar, bastava sair... só isso... bastava sair e tudo ficaria bem como sempre.
Quando
colocou o pé descalço no primeiro degrau da escada foi que se deu conta de que
estava nua.
Apoiou-se
no corrimão, trêmula, soluçando. Onde estava com a cabeça? Ia sair nas ruas, de
madrugada, assim?
Sozinha
no hall escuro, Luana chorou como há muito tempo não chorava. Uma
criança assustada, ansiando por um adulto sábio e forte para lhe indicar o
caminho. Tinha ido longe demais dessa vez. Todos tinham ido longe demais.
Aquele lugar... era ruim... fazia coisas com a mente dela. Assombrado... não foi isso
que Normando disse?
Pouco
a pouco acalmou-se. Não podia ficar ali pra sempre. Tinha que reunir suas
forças e voltar para pegar suas roupas. Mas não... não queria voltar! Não queria
encarar Camile. Deus, como isso pôde acontecer?
Ouviu
um ruído baixo à sua esquerda. Um gemido abafado. Estremeceu, tomada por uma
aflição repentina. O som vinha dos quartos cujas janelas eram visíveis da rua.
Quando entraram, as duas portas estavam fechadas. Lembrava bem disso.
Agora,
a porta da esquerda estava aberta.
Escancarada.
Sentiu
tontura, teve de se apoiar na parede para não cair. Podia ver o interior do
quarto, iluminado pelos relâmpagos. Estava vazio, exceto por uma cama velha sem
lençóis.
Novamente
pôde ouvir sons vindos do interior do quarto. Gemidos, sem dúvida. Gemidos de
prazer, ou de dor, ou ambos.
Deveria
estar com medo, normalmente estaria, mas não sentia nada agora, a não ser uma
estranha fascinação. Algo estava acontecendo lá dentro. Algo secreto. O assovio
do vento através das fendas da janela entaipada soava como um convite. Mais do
que isso, uma convocação. Algo acontecia naquele quarto e ela queria ver. Oh,
sim, queria sim. Queria muito ver.
Luana
aproximou-se da porta. A cada passo uma pequena parte de sua mente gritava mais
e mais de puro terror, mas os gemidos eram altos o bastante para abafar os
gritos. Havia prazer ali. E dor. Era um lugar secreto, um lugar de coisas
proibidas. Normando gostaria disso, não gostaria?
Parou
por um instante sob o batente, deu um passo e entrou.
A
cama não estava vazia. Decerto nunca esteve. Havia duas pessoas sobre ela: um
homem e uma mulher. A mulher estava de quatro, com o rosto voltado para os pés
da cama, na direção de Luana, mordendo o forro do colchão como que para abafar
os gemidos. O homem, de joelhos, segurava-a firme e penetrava vorazmente,
ininterruptamente, com violência. Rosnava como um bicho. Era feio, bruto,
cabelo encaracolado crescendo desordenadamente, barba por fazer, corpo forte,
mas desproporcional, fora de forma, peludo demais. O suor o cobria por inteiro,
fazendo-o resplandecer na penumbra. A mulher não era feia, mas tampouco bela.
Rosto comum, nariz um pouco adunco, olhos juntos demais, cabelos compridos
castanhos, mechas jogadas sobre as faces. Suas mãos... suas mãos estavam
amarradas aos batentes da cama! Era um estupro! Luana estava assistindo um
estupro. A mulher chorava de dor, mas havia algo de prazeroso em suas súplicas,
algo que excitava o homem ainda mais. Era bom! Era muito bom.
Ele
a machucava. Suas unhas enterravam-se nas costas dela, rasgando, arrancando
sangue. Ele ria. Babava. Não mais do que um animal. A mulher ergueu um pouco a
cabeça e seus olhos encontraram os de Luana. Havia algo de tolo, quase risível,
em sua expressão. Dor e descrença. Tais coisas nunca acontecem conosco, não é?
Só com os outros? Fascinada, Luana sequer pensava em parar de olhar. Estava
hipnotizada, encantada. Aqueles olhos tinham-lhe encantado.
Um
sorriso, repentinamente, iluminou o rosto da mulher. Lambeu os lábios
voluptuosamente. A presença de Luana, observando tudo, parecia excita-la. De
vítima passiva tornou-se provocante. O corpo começou a mover-se seguindo o
ritmo imposto pelo homem. Luana ergueu os olhos e viu que ele também a encarava.
Seu sorriso era horrível. Obsceno. Grande demais, desproporcional. Luana
desviou os olhos dele para a moça e viu que o sorriso dela também era imenso e
crescia diante de seus olhos. Estendia-se de uma orelha a outra. Voltou a olhar
para o homem. Sua boca enorme estava aberta, tão grande que parecia que a
metade de cima da cabeça ia se desprender da de baixo. Uma língua longa e
achatada como a de um cão movia-se de um lado para o outro. Ele abaixou-se,
emitindo um riso gutural borbulhando do fundo da garganta, e lambeu as feridas
nas costas da moça. Ela gemeu, mas agora era claramente um gemido de puro
prazer. Seus olhos começaram a emitir uma luminosidade azulada. Sua língua
saltou da boca, desenrolando-se. Ela respirava ofegante como um cachorro. O
homem ergueu-se, voltando a encarar Luana. Seus olhos também brilhavam na
penumbra, porém com uma cor vermelho sangue.
Paralisada
e muda, Luana assistiu a uma lenta e inacreditável mutação. Os corpos do homem
e da mulher começaram a derreter-se e deformar-se grotescamente. Cada traço de
humanidade corrompendo-se como que sob o efeito de uma força implacável. Seus
corpos misturaram-se até que Luana não sabia mais dizer onde a mulher terminava
e o homem começava. Por fim, uma aberração siamesa contorcia-se em contrações
espasmódicas sobre a cama, um enorme verme, em forma de “L”, com uma cabeça em
cada extremidade, os olhos incandescentes fitando Luana. A coisa se ergueu na
cama com as patas grosseiras que até a pouco eram pernas e braços humanos. A
cabeça que ficava na extremidade traseira continuava a emitir a risada rouca,
enquanto a outra começou a falar numa língua estranha, sibilante, conversando
com Luana como se fossem velhas amigas.
Luana
não se moveu. Nem mesmo quando membros vagamente humanos romperam suas amarras
e deram um passo em sua direção. Na verdade, não foi nem mesmo o toque das mãos
dela em suas pernas que a fez gritar. Não. Nada disso.
O
que a fez gritar, foi compreender o significado do brilho fantasmagórico nos
olhos da coisa:
Desejo.
Simplesmente desejo.
6. STRANGE DAYS
O
tempo não fazia sentido.
Camile
acabara compreendendo isso, mesmo vagamente. Por alguma estranha razão não
parava de pensar nos peixes do aquário que tinha quando criança. Quase podia
vê-los, nadando serenamente através de seu pequeno universo aquático. Camile
costumava imaginar o que os pequeninos enxergavam com seus olhinhos eternamente
vidrados numa cômica expressão de vazio. Será que podiam ver o que havia além
das fronteiras de vidro de seu mundo? Será que viam os gigantescos rostos que
os observavam com uma curiosidade alienígena e às descomunais mãos que lhes
ofereciam alimento? Será que eles a adoravam como se fosse uma deusa?
Um
grito horrendo arrancou-a de seu refúgio mental. Era a voz de Cana, vinda de
algum lugar que não conseguia discernir. Estremeceu e o reflexo a fez saltar de
cócoras, os músculos em alerta. Sua mente clareou de forma repentina e
atordoante. Pelo menos na medida do possível num lugar onde a própria realidade
não era clara. O que estava acontecendo? Por que tudo estava tão confuso? Por
que as paredes não param no lugar?
Normando
estava sentado no centro do sala, de pernas cruzadas como um iogue, mãos
largadas sobre os joelhos, palmas voltadas para frente, totalmente nu. Nada
mais do que um vulto mal iluminado pelo círculo de velas. Uma sombra entre
sombras. Olhos perdidos no vazio. Não parecia nota-la, sequer reagiu ao grito
de Cana. Parecia sequer ter ouvido.
Camile
ergueu-se, lentamente, sem tirar os olhos de Normando. Atrás dele coisas
estranhas moviam-se no escuro, cercando-o, celebrando-o, coisas que Camile não
conseguia distinguir, mas podia adivinhar suas formas e não gostava nem um
pouco.
De
algum modo sabia: aquilo não era apenas uma viagem de LSD. Era mais. Muito
mais.
Precisava
voltar.
Apalpou
a coxa onde a serpente picara. A pontada de dor demonstrava que a ferida ainda
estava lá. Era real. Tinha de ser. Felizmente, tirando o torpor da cabeça, não
sentia nenhum sintoma de envenenamento.
Claro
que não. Luana sugara o veneno...
Não!!!
Isso
não fazia o menor sentido! Nada ali fazia sentido! Tinha que sair antes que
perdesse tudo o que restava de sua capacidade de raciocínio. Ir atrás de Luana
enquanto podia. Normando e Cana que se virassem com esse lugar e que fossem pro
inferno, os dois!
Súbito,
outro grito. Só que agora a voz era de Luana.
–
Vá ajuda-la!
Camile
girou sobre os calcanhares. Normando olhava diretamente para ela. O som de sua
voz assustou-a ainda mais do que o grito da irmã. Não podia ver sua expressão,
mas notou uma preocupação legítima no tom de sua voz. A medida que falava, as
chamas das velas aumentavam de intensidade e, pela primeira vez, Camile
percebeu um padrão. Não havia notado antes, mas agora, da posição em que estava,
podia ver que Normando não colocara as velas de forma tão aleatória como
parecia. Era um desenho, um símbolo, e Normando estava sentado exatamente no
centro dele.
–
O que está esperando? Ela está em perigo! Vá ajuda-la!
Por
que ele não demonstrou a mesma preocupação quando Cana gritou? Não se importava
ou, por algum motivo, não ouvira?
–
Vá!
Desta
vez Camile obedeceu. Correu através do corredor escuro e do que quer que a
aguardava depois dele. Mas não antes de reconhecer o desenho que as velas formavam.
Já havia visto aquele símbolo antes, embora não o levasse a sério. Era um
pentagrama.
Normando
realmente não ouviu o grito de Cana. Desde que captara a presença de um demônio
poderoso no banheiro não conseguiu mais sentir a presença do amigo e estava tão
confiante de suas novas percepções que não imaginou que aquele poderia ser um
motivo de preocupação. Considerou, simplesmente, que Cana devia estar
inconsciente... ou morto. Se fosse o caso teria de conviver com isso, mas estava
certo que superaria. Porém, quando Luana gritou ele ouviu muito bem. Uma
experiência forte, forte o bastante para lhe tirar a concentração por breves
instantes. Percebeu, até com certa surpresa, que se importava com ela. Afinal,
lhe proporcionara prazer e a energia inicial para que conseguisse chegar aonde
chegou. Infelizmente, não acreditava que Camile poderia fazer alguma coisa para
ajuda-la. A essa altura ele próprio nada podia fazer, mas... quem sabe? Foi pena
o círculo ter quebrado. Não fosse isso poderiam sair todos dali ilesos. Estariam
todos seguros no interior do símbolo de proteção. Infelizmente, não se pode
pensar em tudo.
De
qualquer modo, não podia se permitir mais interrupções e distrações. Estava
quase lá, as barreiras caiam uma a uma e a viagem tornava-se mais perigosa a
cada minuto. Sua mente expandiu-se a tal ponto que seu corpo físico mal podia
conte-la. Uma falha mais grave de concentração e sua consciência se perderia
nos abismos entre os mundos. Isso era a única coisa de que tinha medo. Não se
importava com os demônios famintos aproximando-se. Não podiam toca-lo. Tornara
aquela velha sala arruinada seu local de poder e as presenças não podiam
machuca-lo, estava protegido pelo poder de sua própria magia. Iria invadir os
mundos do além e roubar seus segredos sem que nada pudesse detê-lo. Ele próprio
tornara-se uma encruzilhada: corpo, mente e alma, a perfeita união, agora era
verdadeiramente um Mago e isso era só o começo. Os segredos do universo estavam
ao seu alcance.
Foi
então que uma forma indefinida destacou-se da miríade de entidades fervilhando
ao seu redor e caminhou em sua direção, lentamente tomando forma até assumir a
aparência de um homem alto e magro. Mais do que magro, esquálido, com a pele
lívida como a de um cadáver e feições envelhecidas, porém com um brilho de
inesgotável astúcia nos olhos negros. Normando levou alguns segundos para reconhece-lo:
– Você!
7.
LOVE ME TWO TIMES
Certa
vez, durante um passeio numa caverna com um grupo de amigos estudantes de
Geologia, Camile se viu afastada dos outros ao entrar por uma passagem
estreita. Nunca lhe ocorreu que poderia ter um ataque de claustrofobia, nunca
tinha tido nenhum problema assim em toda a sua vida, mas ali, naquele lugar
escuro e úmido, eternamente isolado do Sol, onde escuridão não era uma simples
ausência de luz, mas algo denso e quase palpável, Camile teve medo. Estava sem
lanterna, apenas os geólogos tinham sido prevenidos o bastante e ela não
passava de uma “urbanóide” deixada para trás. Seu lado racional dizia
que não havia nada com que se preocupar, a caverna não era tão grande e os
outros não podiam ter se afastado muito, logo dariam pela falta dela. Mas essa
voz tranquilizadora era por demais débil para calar os gritos estridentes do
seu lado irracional, primitivo, guiado unicamente pelo instinto básico de
autopreservação. Ela estendia os braços para todas as direções tentando
encontrar algo sólido para se guiar, mas suas mãos tocavam apenas o vazio.
Estava cega num mundo de trevas intermináveis. A única coisa que continha seu
medo era o senso de ridículo: não iria fazer papel de tola tendo um ataque de
histeria na frente de todo mundo. Mas o limite era tênue e foi logo rompido
quando Camile sentiu todo o seu corpo ser envolvido por algo cuja textura era inconfundível:
uma enorme teia de aranha.
Agora,
tanto tempo depois, a situação causava-lhe uma sensação incômoda de déja vu. Novamente estava perdida num
lugar de trevas absolutas estendendo-se ao infinito. Novamente sentia a textura
de algo semelhante a teias de aranha contra a pele. Se seus processos mentais
não estivessem tão alterados pelo efeito químico do ácido, Camile se entregaria
ao pânico tão facilmente quanto naquele dia. Mas, desta vez, tanto a sua razão
quanto o seu instinto estavam funcionando de maneira ilógica e Camile compreendeu
que não estava mais atravessando um simples corredor. Era um portal. Sua
desorientação, a sensação de coisas estranhas roçando sua pele, era resultado
de sua travessia para outro plano, talvez outra dimensão. Um outro mundo, como
Normando sugeriu ser possível?
Sentia
medo, muito medo. Mas estava longe do tipo de pânico que sentira na caverna.
Naquele dia, por algum motivo, não conseguiu gritar. Sua voz ficou presa na
garganta e o único som que pôde emitir foi um resfolegar longo e abafado,
renovado a cada nova inspiração. Por fim viu uma luz se aproximando, uma
lanterna. Logo Camile reconheceu Luana. Ao ver o estado em que a irmã se
encontrava Luana a abraçou e ficou com ela até que se acalmasse. Depois
seguiram adiante até encontrarem os outros e não houve mais incidentes. Camile
ficou com um pouco de pena da irmã. Era visível que ela se sentia culpada por
tê-la feito passar por aquilo. Luana sempre gostou de se meter em aventuras e
convencera a pacata Camile a acompanha-la no passeio. Naquela noite, na barraca
que dividiam, prometeu nunca mais arrasta-la para nenhum lugar escuro e perigoso.
Mas
promessas são feitas para serem esquecidas. E lá estavam elas de novo perdidas
num lugar escuro. Mas agora era sua vez de levar a irmã de volta para a luz.
Camile
teve a nítida impressão de que a escuridão rompia-se à sua passagem como se
fosse mesmo uma enorme teia de aranha. Um passo a frente e estava no hall,
idêntico a quando entrou horas atrás. Luana estava lá, deitada de bruços no
chão, gritando sem parar, pois não estava sozinha.
Um
gigantesco verme projetava-se do interior de um dos quartos. Um verme com duas
cabeças e inúmeros tentáculos recobertos de limo. Sob a tênue luz dos relâmpagos
o corpo da criatura resplandecia em asquerosa umidade como se sua pele não
pudesse conter por muito tempo os fluidos em seu interior, instável, repleta de
pseudópodes, olhos, bocas e outros detalhes repugnantes que apareciam e desapareciam
o tempo todo. As únicas coisas constantes eram as cabeças e duas estranhas
garras com as quais a coisa agarrava Luana. As pernas e os quadris dela estavam
ocultos embaixo do corpo horrendo e o monstro fazia movimentos ritmados e
bruscos sobre ela... para frente e para trás...
Penetrando-a.
Novamente
apenas o efeito do LSD pôde permitir que Camile agisse sem enlouquecer diante daquela
visão. Num ímpeto, agarrou as mãos de Luana e começou a puxa-la. A coisa emitiu
algo semelhante a um urro gorgolejante de ódio e pareceu elevar-se como uma
onda de imundice ameaçando engolir ambas as irmãs. Camile ignorou e continuou a
puxar, mas a coisa não estava disposta a abrir mão de sua presa tão facilmente.
Camile fincou os pés descalços o mais firme que podia no assoalho de madeira e
puxou até sentir os tendões dos braços vibrando em protesto, mas não ousava
parar. As cabeças do verme faziam caretas medonhas e escarravam uma bílis
esverdeada em seu rosto forçando-a a fechar os olhos. Sentia aquilo escorrendo
pelo seu pescoço e seios, queimando a pele por onde passava. Agora as duas
irmãs gritavam juntas e aquela batalha desesperada parecia perdida. Se aquilo
era um pesadelo, Camile só podia esperar que acordasse logo, antes que seus
braços fossem arrancados. Os pés começaram a deslizar lentamente sobre o assoalho
e não havia nada que ela pudesse fazer. Absolutamente nada.
–
Deus!!!! Me ajude!!!! – gritou.
–
Deus não pode ajuda-la aqui – disse uma das cabeças do verme.
–
Eu sou Deus! – disse a outra cabeça.
Os
pés de Camile falsearam e a coisa puxou-as para o interior do quarto.
8. GHOST SONG
–
Confesso que estou impressionado, meu caro Normando. Nunca imaginei que você chegaria
tão longe com tão pouco. Uma grande surpresa, sem dúvida – disse o homem alto,
ajoelhando-se diante de Normando, que o encarava estupefato. Não sabia o que
dizer ou como reagir. Estava completamente sem ação. Pela primeira vez, naquela
noite, via-se incapaz de planejar seu próximo passo. Julgou estar preparado pra
tudo, até para o inesperado, mas agora... sentia-se apalermado, de um modo que
apenas alguém acostumado a sempre ter o controle de tudo poderia se sentir.
O
homem alto riu. Uma gargalhada ecoante e divertida. Soava como noites
intermináveis de alegria, canções e embriaguez, descontrole de sentidos,
delírios, tormentos e a dor de esperanças perdidas. O som trouxe lembranças à Normando,
ajudando-o a recompor-se. Com um suspiro tímido, sorriu para o Mago e disse:
–
É bom ver o senhor de novo.
–
Eu digo o mesmo, filho – disse o Mago após recuperar o fôlego.
–
Eu consegui, não é? – disse Normando – Eu ultrapassei o limiar! Alcancei o
senhor! Eu fiz, não fiz?
O
sorriso do velho minguou e sumiu, sendo substituído por uma expressão grave e
paternal:
–
Não, filho. Ainda está muito longe disso. Muito mais do que imagina. Afinal de
contas o que pretendia com tudo isso?
Normando
hesitou. Não esperava essa pergunta. Não fazia sentido.
–
Ora, eu... – engoliu em seco – ora, o senhor seria a última pessoa que eu
imaginaria me perguntando isso. Logo o senhor, que sabe...
–
Eu sei muitas coisas – interrompeu o Mago – Coisas que a maioria das pessoas sequer
sonha, se é o que está tentando dizer. Mas não estou certo se sei o que você
está tentando fazer aqui. Por isso, eu repito: o que você quer?
–
Eu... – engasgou. Começava a sentir-se irritado. A irritação de um garoto sendo
repreendido quando flagrado em meio a uma travessura – Eu queria romper o
limite, eu... tentava... tentava entrar em sintonia com a encruzilhada, queria
alcançar os outros mundos e ir além. O senhor entende isso, não entende? Atingir
o inatingível, compreender o inconcebível...
–
O inconcebível! Hum... – o Mago coçou a barba, voltando a sorrir – Muito
interessante. Por que?
–
Por que?! – exclamou Normando – Mas... eu não estou entendendo? Por que está me
perguntando essas coisas? Como assim, por que?
–
É uma pergunta simples, meu caro – disse o Mago, voltando a rir – Será possível
que não sabe me dizer porque quer atingir o inatingível?
–
Eu... – Normando riu, sentindo o rosto ruborizar – Droga, eu... acho que sua
aparição me pegou de surpresa... Se qualquer pessoa me perguntasse isso eu
saberia exatamente o que responder, mas...
–
Mas eu lhe deixo inseguro – completou o Mago. Normando hesitou, mas acabou
balançando a cabeça afirmativamente – Por que?
Normando
não respondeu.
–
Será porque eu sei muito mais do que você? – perguntou o Mago.
Novamente,
nenhuma resposta.
–
Será porque me considera muito... superior?
–
Talvez...
–
Você tem medo que eu saque se você falar alguma besteira?
Normando
fechou os dentes com força e o encarou intensamente.
–
Ei! Calma! – zombou o Mago – Não precisa fazer essa cara. Vamos fazer o
seguinte: faça de conta que sou o Cana e explique pra mim por que fez tudo
isso.
Normando
começou a suar frio, sem saber exatamente porque.
–
Eu... já havia experimentado tudo... nada me satisfazia, eu... precisava ir além... eu
queria... queria...
Os
olhos do Mago o fitavam, frios.
–
...eu queria fazer o que o senhor fez – concluiu Normando.
–
Como sabe o que eu queria fazer? – perguntou o Mago. Outra vez Normando ficou
sem palavras – Eu nunca lhe disse o que pretendia fazer. Você fez suposições
por sua própria conta. Admito que se saiu muito bem até aqui, mas não sabe mais
do que a ponta do iceberg. Mesmo assim, para um autodidata, você se saiu
muito bem mesmo, mas ainda está longe de conhecer a verdadeira Magia.
–
Eu...
–
Você celebrou um ritual deveras complicado com habilidade inquestionável. Usou
seus parceiros como fonte de energia sem que eles tivessem conhecimento,
podendo molda-los da maneira que precisava para suprir suas próprias
deficiências. Usou ritos e elementos de diversas fontes com talento excepcional
fazendo tudo convergir de acordo com seu objetivo. Você foi muito mais longe do
que a maioria dos iniciados jamais sonhou em chegar, muito menos um pobre drogado
como você. Por tudo isso, não posso deixar de parabeniza-lo. Mas... falta-lhe o
essencial.
–
Que quer dizer? O que está faltando?
–
O porquê.
–
Mas...
–
Eu sei! Eu sei que você deve ter dúzias de porquês e de justificativas que são
suficientes para você, mas falta-lhe “o” porquê. Você não é um Mago, caro
Normando. Não passa de um mero cientista, como tantos outros, sempre
preocupados com aquilo que “podem” ou “querem” fazer, para se preocuparem com o
“porquê”. E como todo cientista continua a anos-luz da essência do que busca conhecer.
–
Eu... não compreendo o que quer dizer...
–
Claro que não. É assim com todos os cientistas, meu caro Normando. Estão tão
preocupados em conhecer coisas, experimentar coisas e achar respostas... que
jamais chegam nem perto de compreender coisa alguma.
Silêncio.
–
Magia – continuou o Mago – é muito mais do que fórmulas, encantamentos, rituais
ou poderes ocultos, que podem ser aprendidos e utilizados ao seu bel prazer.
Magia é o supremo conhecimento da vida, da natureza, do universo e de seu papel
nele. É a suprema compreensão. O supremo desafio. Um modo de falar com o
universo com palavras que ele não pode ignorar. Você acha que compreende a
Magia? Como, se nem ao menos se compreende? Se quer encarar o abismo, Normando,
deveria olhar para dentro de si mesmo.
–
Pro inferno com você – gritou Normando, deixando explodir toda a sua raiva –
Diz que não compreendo a Magia? Bom, eu aprendi o bastante pra chegar aonde
cheguei. Estou aqui, não estou? E você? Quem é você pra me julgar? Um Mago que
virava as noites nos botecos de pior categoria, na companhia de gente como eu!
Como eu, está ouvindo! Tudo o que consegui foi graças às coisas que você me
contou. Tudo o que fiz foi seguir os seus passos. Se eu não entendo nada, o que
você entende? Porra nenhuma! Só está falando merda!
–
Ah! – exclamou o Mago, parecendo se divertir com a situação – agora está
tentando me responsabilizar. É como eu disse. Um cientista. Apoiando-se nos
ombros de gigantes, seguindo os passos do mestre sem nunca se perguntar se o
mestre tinha mesmo razão. Achando que pensa por si mesmo, mas, na verdade, incapaz
de dar um passo se os ensinamentos e propósitos do mestre forem colocados em
dúvida. Assim pode ficar totalmente à vontade para cometer bobagens,
desculpando-se com um “o mestre assim dizia”, não importa quais bobagens fossem.
Normando
chegou a abrir a boca, mas parou. Aquilo não podia estar acontecendo, devia ser
algum truque dos demônios para acabar com ele. Mas não, não podia ser, estava
absolutamente certo da eficácia do círculo mágico, as presenças não podiam se
aproximar. Mas será que não podiam mesmo? Agora não estava mais certo de seu
controle sobre a situação. Dúvidas o assaltavam, dúvidas demais. Sentia sua
força diminuir ao mesmo tempo que sua ansiedade aumentava.
–
Não – murmurou, balançando a cabeça – Está querendo me confundir. Não sei
porque, mas está. As coisas que me disse não eram bobagens. Tudo o que aprendi
foi consequência daquela noite. Foi o que me norteou... As coisas que me contou
me trouxeram até aqui. Se fosse besteira eu não estaria aqui.
–
Fascinante! – disse o Mago – então nunca lhe passou pela cabeça que eu poderia
ter inventado todo aquele papo de Magia pra te convencer a ir pra cama comigo?
Silêncio.
–
Bom – continuou o Mago – Com ou sem Magia, aquela foi uma noite inesquecível.
Suor
frio escorria pelo corpo de Normando. Nos seus olhos não havia mais o menor
sinal de confiança ou frieza, apenas confusão... e medo.
–
Quem você pensa que é, meu caro Normando? – havia zombaria mesclada a piedade
em seu tom de voz – Jim Morrison? Você andou lendo William Burroughs demais. Ou
talvez Carlos Castañeda! Acaso pensou que eu seria seu Don Juan?
–
Não... não pode ser verdade... está mentindo... eu estou aqui! Eu cheguei até aqui!
Eu consegui! E você... você também conseguiu! Você está aqui, comigo!
–
Eu não estou aqui – disse o Mago.
Foi
então que Normando se deu conta de que não havia ninguém ali. Estava falando
sozinho na escuridão.
9. TOUCH ME
Tudo
aconteceu tão rápido que, quando Camile deu por si, estava jogada sobre o
assoalho imundo, ainda segurando os braços de Luana como se sua vida dependesse
disso. Sentiu um deslocamento de ar seguido pelo som do verme arrastando-se até
desaparecer na escuridão. Encolheu-se de encontro à irmã, estremecendo ao ouvir
a porta do quarto fechando sozinha com um baque surdo.
Camile
olhava para todos os lados, desesperada, acompanhando os sons do verme
movimentando-se pelo quarto. Pareciam vir de todas as direções ao mesmo tempo.
Luana
começou a chorar como uma criança. Camile fez o possível para esquecer o
próprio medo e abraçou-a com força. Depois de minutos intermináveis, pôde
perceber uma luminosidade estranha, sem fonte definida. Conseguia enxergar
Luana claramente, bem como o próprio corpo, mas o restante do ambiente
continuava imerso na escuridão, como se as trevas ali não fossem meramente uma
ausência de luz, mas sim algo substancial, palpável, um manto negro que as
envolvia e isolava.
E
talvez fosse mesmo, talvez não estivessem num quarto fechado afinal. Poderia
ser alguma outra coisa, outra dimensão, outro mundo...
O
estômago do verme...?
Não...
não devia pensar, mas agir. Tentou falar com Luana, mas era inútil, o rosto
dela parecia vazio, olhava para Camile mas não dava sinais de realmente vê-la,
um filete de saliva escorria do canto da boca. Camile sacudiu-a, chamou-a pelo
nome, mas ela não reagia. Apenas movia a cabeça de um lado para o outro,
lentamente, gemendo baixinho.
–
Não, Lu – disse Camile, em meio às lágrimas – Você tem que ficar comigo, eu
preciso de você. Fale comigo, por favor... por favor...
Um
sibilar horrendo às suas costas fez Camile gritar esperando ser atacada, mas
nada aconteceu. Tremendo, abraçou Luana, escondendo o rosto entre os cabelos da
irmã. Talvez por reflexo, Luana correspondeu ao abraço e ficaram ali, nuas,
indefesas, encolhidas e agarradas uma a outra enquanto coisas invisíveis
moviam-se sorrateiras ao redor, sussurrando obscenidades, ameaçando, zombando,
fazendo propostas com vozes grotescas e inumanas. Dedos úmidos e frios roçavam
a pele de Camile, que nada podia fazer a não ser chorar e implorar para que
parassem, rezando a todos os santos e deuses de que conseguia lembrar.
–
Pobrezinhas... pobrezinhas... – diziam as vozes – putinhas bonitas... mal sabem onde
estão... medo... medo... muito medo... molhadas... com muito medo... devorar... rasgar de
alto a baixo... devemos?... não devemos?... vou comer vocês... choram por que?... nada
tão mal... por que tanto medo?... acabando... logo... tudo acabando...
–
Por favor... murmurava Camile – Por favor, deixa a gente em paz... por favor... por favor...
Uma
voz, mais clara do que as outras, elevou-se:
–
Ah... sei do que tem mais medo. Sei que não quer ficar sozinha. Lá dentro, um
único grande pedido: “Por favor... pooooor favooooooor... não quero ficar sozinha,
não tire minha irmã de mim, não me separe de minha irmã”.
Uma
pausa.
–
Não se preocupe, pequenina. Posso garantir a você... que isso nunca vai acontecer.
Silêncio.
Camile sentiu um inesperado e breve ardor no baixo ventre. Um medo súbito, uma
premonição mórbida e irracional a assaltou, levando-a a, delicadamente,
desvencilhar-se dos braços de Luana e afastar o corpo dela do seu, apenas para
descobrir que um grotesco apêndice havia nascido entre as duas, um bizarro
pedaço de carne brotando de seus corpos, na região entre o umbigo e a pélvis,
unindo-as como irmãs siamesas.
Foi
a última coisa que Camile viu antes de desmaiar.
10.
THE CELEBRATION OF THE LIZARD
Um
contratempo. Nada mais do que um contratempo que seria remediado. Normando
nunca havia aberto mão de nada do que quisesse em toda a sua vida e essa não
seria a primeira vez.
Sua
cabeça latejava. Havia perdido o controle. Tinha que recuperar a concentração
antes que perdesse totalmente o contato com a encruzilhada. Tinha ido tão
longe, não podia voltar atrás agora. Não sabia se um dia conseguiria repetir
toda aquela experiência.
Mas
esse era o problema: não saber. Dúvidas demais torturavam sua mente,
atrapalhavam sua concentração, sua autoconfiança estava abalada, como poderia
re-assumir o controle assim?
E
se nada daquilo fosse o que pensava? E se tudo fosse uma fantasia de sua cabeça
entupida de LSD? Não. Não podia ser. Até alguns minutos estava absolutamente
certo do que fazia e do que estava acontecendo. Como pôde permitir-se tal
quebra de fé. Precisava recuperar a confiança perdida ou nunca mais conseguiria
alcançar a encruzilhada.
Normando
cerrou os olhos e escondeu o rosto com as mãos. Tinha que ignorar tudo ao seu
redor. Mergulhar nas profundezas de sua própria mente e recuperar a
concentração perdida. Precisava ignorar tudo. Ignorar... ignorar as vozes da
legião de demônios famintos aproximando-se cada vez mais rápido – era seu nome
que chamavam? – Não!!! Ignorar... ignorar tudo... ignorar as criaturas sem mente
que habitam a encruzilhada acumulando-se às centenas no ar sobre sua cabeça em
ansiosa antecipação. Ignorar as sombras dos mortos que cessam a repetição de
seus padrões de ódio e violência para acercarem-se ao seu redor, com mórbido
interesse. Ignorar o regozijo dos incontáveis seres além de qualquer descrição
celebrando uma nova tragédia prestes a acontecer. Ignorar o som de dobradiças
enferrujadas por anos de abandono, rangendo como num antiquado filme de terror.
Ignorar o som de passos de pés descalços cada vez mais próximos. Ignorar uma
respiração viva, gerada por alguém parado bem a sua frente.
“Nada
tenho a temer. O círculo me protege de tudo que venha do outro lado. Nada tenho
a temer. Nada tenho a temer. Nada tenho a temer. Nada...”
Deixou
as mãos caírem sobre as coxas. Abriu os olhos, sem pressa. Não havia motivo
para pressa. Normando sabia: logo tudo seria consumado. Ergueu o rosto... e o
viu.
Cana
estava ali, totalmente nu, o rosto branco contrastando com os lábios vermelhos
repuxados num enorme sorriso que mais parecia um esgar. A respiração soando
pesada e entrecortada, o coração bombeando sangue e adrenalina suficientes para
que as veias saltassem, inchadas, como se estivessem prestes a se romper, o
pênis ereto denunciando a crescente excitação, o corpo musculoso repleto de
tatuagens fazendo-o parecer um sacerdote primitivo de alguma mitologia pagã
tomado por espíritos maus.
Tomado...
por...
Não
houve tempo para reação. Como um réptil dando o bote, os braços de Cana
saltaram agarrando Normando, forçando-o, violentamente, a ficar de pé. “Cana,
meu irmão, o que está fazendo?” gaguejou ao mesmo tempo em que tentava,
inutilmente, afrouxar as mãos que esmagavam seus ombros, mas Cana não estava disposto
a ouvir, se é que ainda podia ouvir qualquer coisa. Seu rosto era como uma
máscara de mármore, o macabro sorriso não se alterava, os braços pareciam
tenazes de aço ante os esforços que Normando fazia para se libertar. Apenas os
olhos conservavam-se vivos, iluminados por uma chama enlouquecida de fúria
suprema. Quase com desdém, Cana desferiu um potente murro, atingindo Normando
bem no meio do rosto, arrancando sangue e lascas de dentes quebrados. Apenas
por milagre não foi ao chão.
–
Cara... por favor... – tentou dizer, mas a mandíbula deslocada não permitiu.
Normando olhou para as mãos cobertas com o sangue que jorrava de sua boca e
compreendeu que estava em perigo. Verdadeiro perigo. Cana ia mata-lo. Realmente
ia. Isso não podia estar acontecendo. Não era justo. Não podia estar acontecendo
com ele.
Desesperadamente
tentou defender-se, mas sua tentativa de atingir Cana não foi mais do que patética.
O medo e a dor deixaram-no descontrolado, incapaz de pensar na única coisa que
poderia salva-lo: fugir. Cana, ao contrário, era a própria imagem da frieza.
Saltou sobre Normando e prendeu seus braços num abraço esmagador, antes de
atingir-lhe violentamente a virilha com o joelho. Normando urrou e gemeu como
um animal apanhado numa armadilha. Pontos vermelhos espalhavam-se diante de
seus olhos. Tudo o que queria agora era encolher-se no chão até o amanhecer,
mas seu algoz não iria permitir.
Com
um movimento brusco, Cana atirou-o contra a parede. O choque quase o fez perder
os sentidos. Lágrimas queimavam seus olhos. Tossia e escarrava sangue, tentando
de algum modo recuperar fôlego para reagir. Mas já não tinha nenhuma chance.
Cana voltou a agarra-lo e jogou-o contra a outra parede. Desta vez Normando não
pôde evitar bater a cabeça. Por um instante, tudo ficou negro, mas infelizmente
apenas por um instante.
–
Por favor – tentava dizer – por favor, cara...
Cana
investiu contra ele, prensando-o na parede. Esmurrou-lhe o estômago e não
permitiu que se curvasse, acentuando a crueldade. Os golpes começaram a
suceder-se numa rapidez estonteante, enchendo o corpo de Normando com enormes
hematomas e arranhões, além de costelas partidas. Debilmente, tentou
proteger-se com os braços, mesmo sabendo que nada adiantaria. Cana segurou-lhe
o antebraço esquerdo e mordeu. Os dentes cravaram profundamente na carne.
Normando gritou e gritou até sentir a garganta queimar. Seus olhos expressavam
todo o horror que sentia quando Cana arrancou um bom pedaço de carne... e engoliu.
Um
som avassalador, como centenas de tambores tocando ao mesmo tempo, ecoava pelos
abismos entre os mundos, vozes de legiões malditas de seres sem nome clamavam
por sangue novo. Normando foi jogado no chão, gritando e chorando, tentando se
arrastar para longe, mas não havia saída. Nunca houve, e apenas agora podia
ver. Aquela era a culminação de toda a sua vida. Seu ponto de convergência.
Mesmo agora não podia deixar de apreciar a ironia. Cana ajoelhou-se sobre ele e
deu verdadeiramente início a demolição.
Sangue
esguichava para todos os lados, escorrendo pelo assoalho e maculando o círculo
mágico tão habilidosamente preparado. O som dos golpes de punhos poderosos
misturava-se ao estraçalhar de ossos e o rasgar de pele. Normando sentia seu
corpo sendo destroçado e esmagado como um inseto até que a própria dor já não
significava mais nada. Babando como um animal selvagem, Cana entregava-se a seu
trabalho de destruição sem diminuir o ritmo um instante sequer. Seus dedos
rasgavam a carne flagelada como aguilhões embrutecidos, incapazes de qualquer
sutileza.
Quase
cego, paralisado, praticamente morto, porém ainda prisioneiro de sua própria
carcaça arruinada, Normando sentiu um enorme punho penetrando através de seu
peito, abrindo caminho por costelas que não tinham mais condições de oferecer
nenhuma resistência. Sentiu os dedos cruéis fechando-se sobre um coração que
ainda tentava desesperadamente continuar batendo, até ser arrancado com um som
indescritível. A vida, teimosa, inspirada por um espírito inflexível, ainda
manteve-se por alguns segundos, o bastante para que Normando visse Cana esmagar
seu coração, deixando o sangue escorrer sobre seu corpo, como um sacrifício
humano a antigos e famintos deuses.
E
foi então que Normando soube que, no fim das contas, iria conhecer os segredos
do cosmo esta noite. Estava na Encruzilhada dos Mundos... e seu espírito estava
livre. Sentiu-se leve e sereno como nunca antes em sua vida. Não havia mais
dúvidas. Nem incertezas. Agora compreendia perfeitamente a essência da Magia.
Era tão irônico. Tudo tão irônico.
E
assim, morreu.
EPÍLOGO: WHEN THE MUSIC’S OVER
O
despertar veio paulatinamente. Os sentidos retornando aos poucos. Sentia a
aspereza da madeira velha às suas costas, contrastando com a maciez da pele nua
de um corpo encostado ao seu. Sentia a luz do Sol através de suas pálpebras e,
por um momento, aquilo pareceu uma impossibilidade, como se aquela sensação
prazerosa e corriqueira estivesse por demais distante, inacessível. Abriu os
olhos, sem ousar mover nenhum outro músculo do corpo. Estava deitada de costas
no chão e a primeira coisa que viu foi a janela, parcialmente entaipada, e os
raios de Sol penetrando através das frestas. Camile podia ver o céu azul, tão
belo que quase teve vontade de chorar.
Ainda
sem se mover, deixou que os olhos vagassem, sem pressa. Tudo o que viu foram
paredes pichadas, rachaduras, mofo e teias de aranha. Nenhum verme gigante,
nenhuma sombra, nenhuma cobra, nada errado com ângulos e perspectivas. Tudo
voltara ao normal. O efeito da droga tinha passado. Mal podia conter-se de
tanto alívio. Era como acordar do pior pesadelo de sua vida.
Mas
um resquício de medo ainda permanecia. Cautelosamente virou a cabeça. Luana
estava deitada ao seu lado, ainda inconsciente, o rosto a alguns centímetros do
seu, o braço jogado sobre seu corpo, logo abaixo dos seios. Tudo estava certo.
Fora uma viagem ruim, só isso. Ficaram muito doidas, tiveram alucinações e
fizeram algumas bobagens, mas estava certa de que, uma vez que tivessem dado o
fora dali, seria muito simples pôr uma pedra sobre o assunto. Logo Luana iria
acordar, Normando e Cana apareceriam e todos iriam cuidar de suas ressacas,
ficariam sem se falar por algumas semanas e, quando voltassem a se encontrar,
todos fingiriam que nada aconteceu e nunca mais tocariam no assunto. Com o
tempo, aquela noite seria reduzida a uma lembrança distante, ou talvez nem
mesmo isso. Nada que alguns anos de análise não resolvessem. Tudo estava bem.
Muito bem.
Mas,
ainda assim, estava com medo.
–
Deus... Deus todo poderoso – murmurava – faça com que tenha sido um sonho. Por
favor, não deixe que seja verdade.
Dizendo
isso, Camile se ergueu e olhou para o próprio corpo... o apêndice ainda estava
lá.
Fechou
os olhos, prendendo a respiração. Contou até dez. Murmurou uma prece ou duas.
Voltou a abrir os olhos. Continuava lá.
Seu
rosto retraiu-se numa expressão de nojo. Não podia ser verdade, mas era. Estava
ali. Ela poderia tocar se quisesse (e não queria). Um pedaço de carne ligando-a
a Luana, brotando de seu ventre, na região entre o umbigo e os pêlos pubianos,
e terminando no ventre de Luana, no mesmo local. Apenas trinta centímetros de
comprimento separavam as duas irmãs. Camile já havia visto uma coisa como
aquela em sites de curiosidades e aberrações. Aquilo era o que os médicos
chamavam de apêndice xifóide. Não por acaso, os gêmeos que tinham a infelicidade
de nascerem ligados por uma coisa dessas eram classificados como xifópagos.
Camile
forçou-se a superar a repulsa e tocou a coisa. Era quente, viva. A vida que
pulsava em seu corpo também pulsava ali, mesclada à vida da irmã. Era flexível,
mas firme. Músculos, veias, tendões e sangue, estava tudo ali, não era uma mera
pele alongada. Tentou puxa-lo, mas foi inútil, fazia parte dela, fazia parte de
ambas e era tão real quanto elas próprias. Sua cabeça rodopiava loucamente. Era
absurdo. Absurdo demais.
Sem
saber se seria a coisa certa a fazer, mas não tendo muitas alternativas, Camile
sacudiu Luana até acorda-la. Tentou falar com ela, mas Luana não a reconhecia,
nem dava mostras de perceber o que havia acontecido. Camile conseguiu fazer com
que sentasse e, com cuidado, afastou os cabelos da frente de seu rosto. Os
olhos de Luana continuavam vazios, como se todo o seu ser tivesse se refugiado
profundamente no interior de sua mente na tentativa de fugir da loucura. Talvez
para sempre.
Gritou,
chamando Normando. Não houve resposta. Gritou por Cana e teve o mesmo
resultado. Teria que fazer alguma coisa sozinha. Num impulso, tentou ficar de
pé, mas não conseguiu, pois Luana não se moveu. A sensação que teve quando o
apêndice atingiu o limite de sua elasticidade e a puxou para baixo foi de uma
aflição terrível. Não dor, mas um misto de asco e angústia. Respirou fundo para
se controlar e ficou de cócoras, frente a frente com a irmã. Abraçou Luana e
forçou-a a levantar-se junto com ela. Por um momento, sentiu o desespero
ameaçando toma-la, pois Luana era um peso morto em seus braços, não iria aguentar
manter-se em pé assim por muito tempo, quanto mais andar. Será que teria que
arrastar a irmã pelo chão? “Deus! Meu Deus, eu quero acordar”.
Para
seu alívio, Luana apoiou-se sobre os próprios pés, aparentemente lembrando-se
que ainda tinha pernas, ficando imóvel diante de Camile, mexendo no cabelo com
uma das mãos enquanto a outra pendia ao lado do corpo. Camile tentou não pensar
em como ela parecia uma autista. Passou o braço direito atrás das costas dela,
abraçando firme a sua cintura. Felizmente o apêndice era suficientemente
flexível para permitir postarem-se lado a lado. Pelo menos não teriam que andar
como caranguejos.
Com
sua mão livre, Camile segurou a mão direita de Luana como um apoio adicional.
Deu um passo à frente, tentando conduzi-la. A princípio, Luana não se moveu e
quase perdeu o equilíbrio com o movimento de Camile. Esforçando-se para ser
paciente, Camile apertou-a ainda mais junto de si, procurando faze-la
acompanhar seus passos. As pernas de Luana tremiam como as de uma criança
aprendendo a andar mas, uma vez dado o primeiro passo, o reflexo foi ativado e
suas pernas firmaram-se. Passo a passo a seu andar tornou-se mais seguro e,
assim, as irmãs caminharam até a porta do quarto.
Camile
destrancou a porta que, de algum modo, estava trancada por dentro, e saíram
para o hall. Estava exatamente igual a quando o viram pela primeira vez,
exceto pelos detalhes que podiam ser notados à luz do dia. O corredor voltara a
ser tão corriqueiro como sempre fora, nada de sombras palpáveis, perspectivas
distorcidas ou monstros espreitando.
–
Então por que essa coisa não some também? – murmurou, controlando-se para não
chorar. Continuou caminhando, conduzindo Luana consigo, até chegarem na sala
aonde tudo havia começado.
Foi
impossível conter o grito.
Normando
estava jogado como um farrapo humano entre os tocos de velas enegrecidas, as
esteiras imundas e o garrafão de vinho abandonado. O corpo tão mutilado que
Camile mal o reconheceu. Parecia não haver um centímetro de pele que não
tivesse sido lacerado. Os intestinos foram arrancados e espalhavam-se ao seu
redor. O coração esmagado tinha sido atirado contra a janela e repousava no
batente, sob uma mancha de sangue que escorria pelo vidro. Havia sangue por
toda parte e nem todo havia coagulado. Os olhos tinham sido vazados e a boca
rasgada nas bordas, o que fazia com que parecesse sorrir, um sorriso horrendo
de escárnio, como se fosse o guardião de um segredo que nunca poderia revelar.
Todos
esses detalhes Camile absorveu em um único segundo e foi muito mais do que
ainda conseguia suportar. Cega de horror, medo e repulsa, tudo o que podia
pensar era em fugir dali. Tentou recuar e correr mas, em meio ao desespero,
esqueceu Luana, que continuava apática. Sentiu o apêndice repuxar sua barriga e
perdeu o equilíbrio, puxando a irmã consigo. Ambas acabaram no chão do corredor
e Camile começou a chorar, pois no momento era a única coisa sensata a fazer.
Depois
do que pareceu uma eternidade, constatou que, simplesmente, não tinha mais
lágrimas para continuar e, de qualquer modo, de que adiantava? Por mais absurdo
que tudo aquilo fosse uma coisa era certa: precisavam de ajuda. Fechou os
olhos, respirando fundo repetidas vezes, tentando recuperar o autocontrole. Ter
consciência do olhar apalermado da irmã não ajudava muito, mas era preciso
abafar a irritação, Luana não tinha culpa nenhuma. O único que poderia ser
responsabilizado estava além de qualquer vingança.
Logo
que se sentiu melhor, voltou a repetir a complicada operação para ficar de pé.
Foi mais fácil dessa vez, Luana reagia mais prontamente aos estímulos
provocados por seus movimentos. Quando Camile abraçou sua cintura, Luana fez o
mesmo, instintivamente. Camile cogitou apanhar as roupas abandonadas na sala,
mas não! Não ia voltar lá de jeito nenhum. E, afinal, àquela altura, esse era
um detalhe de pouca importância. Com muito cuidado começaram a descer as
escadas. Luana tropeçou várias vezes e Camile precisava se contorcer para evitar
uma queda, rangendo os dentes com o esforço. Felizmente, Luana melhorava a cada
novo passo, o que era um alívio. Chegaram à porta arrombada na noite anterior,
o Sol brilhava através dela como uma promessa de esperança, convidando-as a
sair para sua luz e calor. E assim fizeram.
Esperava
ouvir uma freada brusca, talvez até uma batida, uma exclamação de espanto de
alguma senhora, um assovio de um engraçadinho, dedos apontados na direção da
aberração de circo em que se tornaram, qualquer tipo de reação dos transeuntes
à súbita aparição de duas garotas nuas grudadas uma à outra. Mas nada
aconteceu. As pessoas continuaram cuidando de seus assuntos como se nada
tivesse acontecido. O movimento na rua era frenético, como sempre, carros
passando, pedestres circulando de um lado a outro, comerciantes cuidando de
suas lojas, ninguém sequer as olhou, as pessoas passavam ao lado delas e não as
viam.
–
Socorro – balbuciou Camile, perplexa. Será possível que não as viam? Por que
ninguém olhava para elas? Alguns metros subindo a rua havia dois homens
conversando. Conduzindo Luana, Camile aproximou-se deles pedindo ajuda. Nenhum
deles reagiu. Camile estendeu o braço para tocar o mais próximo e quase gritou
ao ver sua mão passar através do ombro dele, como se não estivesse ali.
O
pavor crescia dentro dela como uma fera incontrolável, prestes a romper-lhe o
peito. Seu senso de realidade começava a lhe faltar, achou que ia enlouquecer
como Luana. Talvez fosse melhor assim.
Tentou
falar com outras pessoas, mas o resultado era o mesmo. Estavam cercadas de
gente e movimento, mas eram invisíveis e incapazes de tocar qualquer pessoa. Um
rapaz de mochila a tiracolo passou através delas como se fosse um fantasma.
Não,
ele não era fantasma, eram elas. Elas eram fantasmas!
Mas
estavam vivas. Camile podia sentir o sangue sendo bombeado cada vez mais forte,
sentia o ar em seus pulmões, sentia...
Não.
Não sentia o chão sob seus pés. Podia sentir que seus pés estavam apoiados em
algo, mas a textura não era, absolutamente, a que uma calçada deveria ter. Era
como se não fosse real. Tocou um poste e sentiu o mesmo tipo de textura, passou
a mão por uma parede e não havia diferença, o mesmo aconteceu com um carro
estacionado, era como se tudo tivesse se transformado em alguma substância
desconhecida que mantinha apenas a aparência daqueles objetos tão familiares.
Porém as outras pessoas... era como se nem estivessem lá.
Subiram
a rua em direção ao centro da cidade, sem nenhuma razão em particular, Camile
apenas não queria ficar parada. Movia-se tão apaticamente quanto Luana, quase
em estado de choque. Procurava, o máximo possível, desviar das pessoas, mesmo
obtendo pouco sucesso. Sentia calafrios cada vez que alguém passava através
delas.
Ao
atravessarem as ruas, Camile considerava a possibilidade de deixar que um carro
as atropelasse, mas o instinto de autopreservação, somado ao medo de ficarem
apenas feridas e incapazes de obter socorro, ou até coisas piores e menos
imagináveis, afastavam essa ideia. Todo tipo de solo por onde passavam, asfalto,
cimento, terra, qualquer coisa, tinha a mesma textura estranha sob seus pés
descalços, mas ela já não prestava atenção nisso. Sentia-se como numa absurda
vertigem, incapaz de pensar corretamente, pois fazer isso seria entregar-se ao
desespero. Nesse estado de quase inconsciência chegaram ao Jardim Público e
sentaram-se num banco vazio.
Ficaram
ali por horas, pois Camile não via sentido em continuarem andando por aquele mundo
onde os outros lhes eram proibidos e até o tato era negado. Olhava todas
aquelas pessoas apressadas caminhando de um lado para o outro, tão ocupadas em
seus assuntos e sentia-se perdida, excluída, ninguém podia vê-la, não havia
ninguém com quem falar, ninguém para ficar chocado com o horror que lhe acontecera.
Tornara-se um fantasma, uma morta viva eternamente ligada a uma doente mental
incapaz de lhe oferecer conforto. E ninguém sabia. Ninguém podia saber.
Luana
gemeu e encolheu-se de encontro a Camile. Tinha a cabeça baixa e um olhar
perdido que dava pena. Camile falou-lhe algumas palavras, mas ela apenas a
olhava sem demonstrar interesse. Camile teve um impulso de raiva, logo
substituído por ternura ante seu ar indefeso. Envolveu-a com os braços e deixou
que apoiasse a cabeça em seu peito até cair no sono. Recostou-se no banco,
sentindo a respiração da irmã. Lembrou, de repente, de um filme estranhíssimo
que viu quando criança, sobre gêmeas siamesas, uma boazinha de dar nojo e a
outra psicótica, que fazia caretas, babava e parecia sempre à beira de um
ataque epiléptico.
Começou
a rir. Não era engraçado, mas não podia evitar. Gargalhava até o peito doer,
sem se importar se aquilo era um acesso de histeria ou mesmo loucura. Não era
isso mesmo que eram? Personagens de filmes de terror? Poderiam até filmar uma
continuação se tivessem uma câmera. Ou cobrar ingressos num circo, se pudessem
ser vistas. Uma piada... tudo uma grande piada...
Gargalhou
até o riso tornar-se lágrimas. Depois adormeceu.
Passaram-se
muitos dias até Camile se convencer de que aquilo não era um sonho. Com o
tempo, uma melancólica aceitação passou a ser seu estado de espírito na maior
parte do tempo, enquanto tentava explorar aquele estranho mundo novo. Não podia
fazer longas caminhadas, pois Luana a obrigava a andar lentamente e, além
disso, cansava-se muito rápido. Mesmo assim, encontrou forças para visitar os
lugares que lhe eram familiares: casa, faculdade, os bares que frequentavam.
Mas a experiência de ver os amigos vivendo e cuidando das coisas de sempre sem
que ela pudesse falar com eles ou pedir ajuda era demasiado masoquismo. Não
demorou muito para que descobrisse que não conseguiam segurar objetos ou
qualquer coisa móvel. Não conseguiam alterar o estado das coisas, apenas
atravessar os objetos. As únicas coisas que conseguiam tocar eram as que não
podiam ser alteradas ou movidas de qualquer forma: paredes, árvores, carros
estacionados. Não sentiam fome, nem sede e Camile percebeu que estavam sempre
imaculadamente limpas, mesmo as solas dos pés, como se a sujeira e a fumaça não
pudessem fixar-se nelas. Em um dia de chuva, notou que a água as atravessava,
não se molhavam. Sequer sentiam as mudanças de temperatura, ao menos não como
antes: frio ou calor eram sensações vagas, nunca incômodas.
Era
como se o mundo inteiro e tudo de que era composto tivesse virado as costas
para elas. Por fim, abandonaram o hábito das caminhadas. Adotaram o Jardim
Público como uma espécie de lar e passavam a maior parte do tempo entre as
árvores, sentadas na grama, fora do caminho das pessoas.
Nunca
mais voltaram à sobreloja.
Não
muito depois de instalarem-se no Jardim Público, Camile notou as presenças.
Havia outros seres invisíveis além delas: criaturas flutuantes que apareciam
volta e meia, principalmente durante a noite, sem nunca se aproximarem delas,
como se também não as notassem. Pareciam protozoários de diferentes espécies e
tamanhos rodopiando ao sabor do vento. Alguns viviam agarrados a pessoas,
despercebidamente, sugando-as como parasitas. Camile notou que tais pessoas
tinham uma aparência doente ou triste. Algumas vezes tentava aproximar-se
desses seres, mas voavam para longe, como moscas assustadas.
Luana
tinha breves lapsos de lucidez, às vezes quase chegando a falar. Camile fazia o
máximo para provocar alguma melhora, mas os progressos eram poucos. Sentia-se
muito só. Desejava tocar e ser tocada por outro ser humano. Às vezes queria
morrer, mas não sabia como. Luana era tudo que lhe restava. A irmã tornou-se,
pouco a pouco, conforme os tabus foram perdendo todo e qualquer sentido, um
receptáculo para sua carência. Porém imperfeito, exasperante, incapaz de
retribuir ou demonstrar receptividade. Era como brincar com uma boneca. Um
corpo de plástico sem vida.
Numa
ocasião, Camile notou que uma mulher olhava diretamente para elas. Seu rosto
suava frio, estava apavorada. Camile imediatamente saltou de onde estavam e
tentou correr até ela, praticamente carregando Luana consigo. A mulher deu as
costas e começou a andar apressadamente, sem correr. Camile a seguia o mais
rápido possível.
–
Por favor – gritava – você pode nos ver? Precisamos de ajuda.
Mas
a mulher não parava, parecia muito perturbada, mas não exatamente surpresa,
como se ver coisas como aquilo não fosse algo tão incomum. De repente voltou-se
para elas e sussurrou, rispidamente:
–
Não posso ajudar vocês! Deixem-me em paz, por favor!
Depois
foi embora e Camile desistiu de segui-la. Voltou a vê-la outras vezes, mas ela
nunca mais pareceu nota-las, embora sempre desse uma olhada furtiva para o
ponto do jardim onde elas estavam naquele dia. Episódios semelhantes chegaram a
ocorrer, em diferentes ocasiões, com resultados equivalentes. Camile costumava
especular a respeito, sem maiores esperanças.
Numa
noite de denso nevoeiro, Camile viu um homem nu caminhando pelo Jardim. Quando
o reconheceu mal pôde acreditar:
–
Cana! – gritou, correndo com Luana até ele antes que sumisse na névoa. Mas
quando chegaram perto, parou assustada. Era Cana sim, mas não era o mesmo. Seu
rosto estava branco como leite, deformado por um sorriso exagerado, obsceno.
Andava como um zumbi. Não demonstrou reconhece-las mas, sem sombra de dúvida,
as viu.
Camile
estendeu o braço, o desejo de companhia superando o medo, e o tocou. Quase
gemeu ao sentir a textura de pele em seus dedos. Cana estava ali com elas.
Parecia um sonho. Camile não se conteve e o abraçou, sentindo o sangue ferver
ante o contato do corpo dele com o seu. Mas o prazer foi fugaz, pois Cana foi
ainda mais frio do que Luana. Camile recuou.
–
Cana, sou eu. Não se lembra?
Por
momentos intermináveis, tudo o que ele fez foi olhar para elas com aqueles olhos
quase desprovidos de brilho. Então uma voz começou a ecoar de sua garganta sem
que a boca se movesse. Não era, em absoluto, a voz de Cana:
–
Eu me lembro de você, Camile/Luana – a voz soava como uma vitrola velha fora de
rotação, causando-lhe calafrios – É bom vê-la de novo.
Camile
não sabia bem o que dizer. Estudava atentamente aquele rosto tentando encontrar
algum sinal de humanidade. Um sentimento de opressão apertava-lhe a garganta,
fazendo-a suar frio. Até Luana começou a prestar atenção, como se aquela voz
tivesse penetrado nas profundezas de sua mente.
–
Você está... bem, Cana? – perguntou.
A
face branca continuava impassível.
–
O vento sopra forte no vazio entre os mundos – nesse ponto a voz mudou, começou
a soar com um timbre diferente – Dor, dor, faça parar... faça parar – outra
mudança – Não posso descrever o que sinto – depois disso um som gorgolejante
substituiu a voz.
Camile
aproximou-se um pouco mais, tentando controlar a repulsa crescente.
–
Cana, você está mesmo aí?
Depois
de uma longa pausa:
–
Sim.
Camile
pensou um pouco antes de continuar.
–
Onde nós estamos, Cana? Por que ninguém nos vê?
Outra
pausa ainda mais longa. Então uma voz terrivelmente familiar disse:
–
Vocês estão fora de sincronia.
Camile
recuou ao som daquela voz, tapando a boca para abafar um grito.
–
Não estão nem aqui e nem lá – continuou a voz, a voz de Normando – Vocês estão
em lugar nenhum. Estão em entrelugares.
De
alguma maneira insana, aquilo fazia sentido.
–
Eu lamento muito, meninas. Acreditem. Às vezes, quando se chega muito longe,
não dá pra voltar atrás. Pra tudo existe um preço, para justos e injustos. E
não há ninguém para quem reclamar.
Outra
pausa.
–
Ainda há muito para ver – disse a voz de Normando. Então Cana virou-se e
começou a ir embora.
–
Espere – disse Camile – Fique com a gente. Você é como nós...
Cana
voltou-se para responder, com a mesma voz distorcida de antes, porém
incrivelmente angustiada:
–
Não sou como vocês. Eu não tenho mais alma.
Caminhou
para longe até desaparecer na neblina e elas nunca mais o viram.
THE
END
Deitadas
na terra úmida do jardim, em um dia de primavera particularmente belo, Camile e
Luana espreguiçaram-se ao Sol. Camile olhou para a irmã e viu que ela a
observava, quase com curiosidade. Estava muito bonita. Camile olhou para o céu
azul e permitiu sentir-se bem, pois achava que merecia isso. Pela milionésima
vez segurou o apêndice como que para testar sua materialidade, o toque brusco
transformando-se numa carícia que lhe causava alguns arrepios. Fechou os olhos,
tentando mergulhar em sonhos.
–
Camile...
Imediatamente
abriu os olhos, voltando-se incrédula. O olhar de Luana não mudara, seu rosto
ainda parecia vazio. Mas ela falara seu nome, não havia dúvida. Camile
sentia-se a beira de explodir de tanta alegria. Aquele era o mais claro sinal
de melhora em muito tempo. Abraçou-a com um misto de alegria, paixão e
desespero, como se quisesse misturar-se com ela, completando sua união. Ria
descontroladamente e achava que poderia rir para sempre. Passou-lhe pela cabeça
que poderia estar perdendo a razão. Mas que importava? Segurou o rosto dela com
ambas as mãos e beijou seus lábios com toda a volúpia.
Tinha
certeza que logo teria Luana de volta. O Sol brilhava, os pássaros cantavam, o
bom Deus estava em seu céu e tudo estava em paz com o mundo. E não seria esse o
melhor de todos os mundos possíveis?
Camile
não sabia quanto tempo mais teriam e até onde aquilo iria chegar. Vida, morte,
loucura, quem poderia dizer? Mas agora se sentia bem, pois não estava sozinha,
Luana sempre estaria com ela. Era irônico, mas verdade: não importava o que
ainda iria acontecer, nunca estariam sozinhas, sempre teriam uma a outra,
sempre estariam juntas, verdadeiramente juntas.
E,
no fim das contas, isso era tudo o que importava.
(1999/2006)