A Garganta da Serpente
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Encruzilhada

(Rodrigo Emanoel Fernandes)

As cavernas mais inferiores não são para a compreensão dos olhos que veem; pois suas maravilhas são estranhas e terríveis. Amaldiçoado o chão onde pensamentos mortos vivem em novos e estranhos corpos, e maligna a mente que é mantida por nenhuma cabeça. Como Ibn Schacabao sabiamente disse, feliz é a tumba onde ne-nhum mago foi sepultado, e feliz é a cidade onde, à noite, todos os seus magos são cinzas. Pois é um velho rumor que as almas dos levados pelo demônio não se preci-pita dos restos de sua carne, mas engorda e instrui o próprio verme que a mastiga; até que da decomposição surge uma vida horrenda, e os estúpidos escavadores da ce-ra da terra astutamente se mobilizam para criar monstros para nos afligir. Grandes buracos são cavados secretamente onde os poros da Terra deveriam bastar e as coi-sas que deviam rastejar aprendem a andar.
(ABDUL AL-HAZRED; NECRONOMICON)

Creio que é importante para um escritor saber que tem o potencial para ser tão no-jento quanto qualquer um
(SARAH; DO SERIADO DE TV "THE MAXX")

Nada é verdade; tudo é permitido.
(HASSAN I SABBAH)

1. RIDERS ON THE STORM

Há ideias que só ocorrem quando se está chapado.

Nenhum dos quatro bebeu pouco e a fumaça nas cabeças era bem maior do que o razoável. Um estado de espírito mais adequado a impulsos do que raciocínio. Deve ter sido por isso que ninguém questionou a ideia de Normando. A festa estava mesmo chata. A noite ainda prometia muito.

Desciam a rua desvairadamente, gritando, cantando, tropeçando nos próprios pés. Apenas Normando guardava silêncio, caminhando sempre em frente o mais firme que podia, ignorando as risadas dos outros, por vezes deixando-os para trás até que corressem para acompanhar seus passos. Cana considerava Normando seu amigo, mas era difícil não se irritar com o ar de superioridade com que ele sempre acabava controlando a todos. Não estava afim de conhecer nenhuma sobreloja abandonada. Se tivessem perguntado sua opinião ele sugeriria que fossem para a república que dividia com Normando, onde poderiam tocar violão, encher a cara de vinho, fumar mais uns beques e terminar a noite trepando muito... e muito... e muito! Era só isso que Cana queria, nada de sobreloja abandonada do outro lado da cidade, nada complicado, apenas trepar. Seria pedir demais?

Mas não. Bastou Normando dar a ideia para que Luana e Camile empolgassem. Claro, estavam chapadas. Luana iria para qualquer lugar aonde Normando fosse. Não conseguia desgrudar os olhos dele. Adorava tudo nele. Os cabelos longos e embaraçados, a barba mal feita, a cara de cafajeste assumido. Deus, ela pensava, ele era um cafajeste, mas como era gostoso. Não via a hora de, finalmente, ficar a sós com ele. Estava claro pra todo mundo que aquela noite iria terminar em sexo. Estava predestinada. A Camile que se contentasse com o Cana, pensava, Normando é meu.

– Aí está – declarou Normando, parando em frente a uma porta de feitio antiquado, entre um açougue e uma pet shop.

– É aqui, então? O tal lugar estranho que você tanto fala? – perguntou Camile, aproveitando a chance para apoiar-se nos ombros dele. Luana notou, mas não se importou. Sua irmã tinha todo direito de estar afim também, mas que iria ter de se contentar com Cana, iria.

– É... esse é o lugar – respondeu Normando – lá em cima, a sobreloja sobre o açougue. Já foi uma república, mas está abandonada a anos. Vamos entrar?

Adiantou-se, sem esperar resposta, e começou a trabalhar na fechadura gasta com dois ganchos de arame.

– Cara, você é um marginal – disse Cana, depois começou a rir como se a ideia o divertisse. Luana riu também. Estava tão chapada que riria até do catálogo telefônico.

– Cala a boca! – gritou Normando, repentinamente ríspido – Estou me concentrando.

Chacoalhou os ombros, fazendo Camile larga-lo. Ela afastou o cabelo castanho do rosto e olhou para cima, para as janelas fechadas com tábuas, não por um interesse real, apenas para evitar o olhar de Luana. Amava a irmã mais nova e sabia o quanto ela estava interessada em Normando, mas não iria perder essa chance, de jeito nenhum. Ela que se contentasse com o Cana, ele também era bonito, não teria do que reclamar.

– Isso não é invasão de domicílio? Dá cadeia, sabia? – perguntou em tom de sarro. Com ou sem cadeia iria onde Normando fosse.

Ocupado com a fechadura, Normando trincou os dentes, mas achou melhor ignorar a pergunta.

– Só se vai pra cadeia se alguém der queixa – disse Cana – e quem daria?

– Eu não – disse Luana. E riu.

Um estalo. A porta abriu com um ranger de dobradiças enferrujadas, revelando uma escada suja de poeira que desaparecia na escuridão lá em cima.

– Sinto-me num filme de terror – falou Camile.

Normando olhou pra eles por cima do ombro e, sem uma palavra, subiu as escadas.

Camile, Luana e Cana entreolharam-se, aparentemente todos esperando pra ver quem o seguiria. Cana deu de ombros e disse:

– Bom, eu não quero tomar chuva.

Verdade. Estava começando a chover. A tempestade foi se formando enquanto atravessavam a cidade e não iria esperar nem mais um minuto para desabar. E, afinal, já tinham chegado até ali, não tinham?

Luana e Camile subiram na frente. Cana foi por último, fechando a porta atrás de si. Estava muito escuro para ver bem as paredes, mas era possível notar que estavam cobertas de pichações, desde a porta até o topo das escadas, que terminavam num pequeno hall. Havia duas portas, lado a lado, que davam acesso aos quartos cujas janelas podiam ser vistas da rua. No lado oposto havia uma passagem para um pequeno corredor que conduzia até o que deveria ter sido uma sala de estar. Encontraram Normando lá, sentado no chão imundo, de pernas cruzadas, mexendo distraidamente na mochila surrada.

Um silêncio estranho formou-se entre eles. Constrangido. A situação toda era muito estranha. Afinal, o que vieram fazer ali?

Pelo menos, o que vieram fazer que não poderiam ter feito em outro lugar?

Normando ergueu bruscamente a cabeça, num movimento que fez seus cabelos longos serem jogados pra trás, revelando os olhos negros brilhantes e convidativos.

– E então? – perguntou, como que adivinhando as dúvidas dos outros – Não é incrível?

“Incrível!? Uma merda!” pensou Cana. Ia dizer em voz alta, mas uma olhadela para os rostos das meninas o fez mudar de ideia. Elas caminhavam pelo cômodo admirando cada pequeno detalhe. Pareciam fascinadas. Olhou para Normando e viu que ele, aparentemente, havia se esquecido deles outra vez. Continuava esvaziando sua mochila metodicamente.

Luana e Camile estavam mesmo fascinadas. O lugar era feio, horroroso, mas sedutor. Na meia luz que conseguia entrar pela janela quebrada elas exploravam cada detalhe macabro das marcas que o tempo deixara ali. As paredes traziam centenas de pichações, desenhos, símbolos, alguns bastante antigos, outros mais recentes. Eram como um mosaico. Palavrões, declarações de amor, nomes, rabiscos sem sentido, obscenidades, era impossível perceber os detalhes numa primeira vistoria, tudo o que viam era uma massa heterogênea de cores e formas inúmeras. Era feio. Profano. Sujo.

– Adorável! – disse Luana.

– Você acha? – perguntou Cana.

– Esse lugar é muito louco – retrucou ela – Você não acha?

(Acho o que você quiser, gostosa, desde que abra essas pernas pra mim)

– É, acho que é – respondeu Cana.

– Ei, meu irmão – chamou Normando, ainda sentado no chão – Não acha que isso aqui está muito seco?

Cana ficou estático, com cara de interrogação. Então se tocou do peso em seu braço direito e lembrou do garrafão de vinho que carregara até ali. Colocou-o no chão, meio sem jeito, e agachou-se para abri-lo. Normando jogou o saca-rolha, antes mesmo que ele pedisse.

– Vamos sentar, mulherada – falou Normando – A noite é uma criança.

Havia duas esteiras gastas jogadas num dos cantos da sala. Luana as pegou e estendeu no chão. Deitou-se sobre uma delas, espreguiçando-se como uma gata. Camile sentou, de pernas cruzadas, sobre a outra esteira. Cana estava concentrado no esforço de arrancar a rolha do garrafão e, por um momento, deixou de prestar atenção nelas. A rolha era teimosa, não queria sair. Finalmente, soltou-se com um estalo e Cana quase caiu pra trás, perdendo o equilíbrio. Foi então que viu o que Normando estava tirando da mochila: um pacote de velas.

– Você trouxe velas? – perguntou Camile, admirada, antes que Cana pudesse dizer qualquer coisa.

– Não sei se notou – disse Normando, resignado, como quem explica algo para uma criança – Mas a eletricidade desse lugar já foi cortada há anos.

– Eu sei disso – retrucou Camile – o que estou dizendo é como é que você pode ter velas aí se vir pra cá foi uma ideia de última hora?

– É – falou Cana – Você já tava armando, não tava, filho da mãe? Pretendia nos trazer pra cá antes mesmo da festa...

– Não pretendia trazer ninguém – explicou Normando, abrindo o pacote de velas – Eu pretendia vir pra cá sim, mas achei que viria sozinho. Felizmente, descobri que tenho amigos legais que curtem as mesmas coisas que eu. E aqui estamos.

Um silêncio estranho voltou a imperar. Normando pôs-se a terminar o que estava fazendo. Acendeu as velas pacientemente, espalhando-as pela sala em intervalos regulares. Enquanto trabalhava, Luana rompeu o silêncio:

– Se ninguém vai querer vinho eu quero.

– Tem copos plásticos na mochila, Cana – declarou Normando sem desviar a atenção do que fazia.

Cana apanhou o pacote e rompeu o lacre com os dedos. Camile adiantou-se para pegar o seu. Luana, esparramada no chão, parecia não estar disposta a se mexer e aguardava ser servida.

– Você sempre pensa em tudo não é? – disse ela para Normando. Ele não se dignou a responder.

A luminosidade bruxuleante das velas ia aumentando de intensidade conforme Normando as acendia e os copos de plástico eram preenchidos com vinho. Só depois de acender cerca de doze velas, espalhadas pela sala, Normando sentou-se para beber também. Passaram o tempo que se seguiu bebendo, falando bobagens e devorando com os olhos cada detalhe dos corpos uns dos outros. Aguardando o vinho subir à cabeça, aquecendo corações e mentes, aguardando o momento limite... quando apenas olhar não seria mais suficiente.

São momentos em que a memória é falha e o tempo não faz sentido. Ainda mais ali, naquele lugar exótico, onde os desenhos das paredes pareciam mover-se sob a luz das velas. Onde o som da tempestade formava uma redoma protetora sobre eles, isolando-os do mundo exterior, com suas regras e leis estúpidas. Ali dentro tudo seria permitido. Tudo.

O vento uiva pelas frestas das janelas quebradas. Um vento frio e cortante. Mas não há frio que eles possam sentir esta noite. Nenhum frio.

Segurando o copo plástico vazio entre seus dedos preguiçosos, Normando deixava sua mente vagar enquanto os observava cuidadosamente. Será que eles se davam conta do quanto eram belos? Não apenas a aparência, mas o estado em que se encontravam agora: as mentes livres das inibições pelo efeito libertador do vinho, os reflexos alterados, as frases provocantes, os risos fáceis, a sensualidade pungente em cada simples gesto, o cheiro de suor misturado ao vinho. O momento limite se aproxima. De sua mochila surrada, Normando revela a erva que havia trazido. Com paciência ritualística, começa a preparar os beques. Sem pressa. A noite ainda é uma criança. Em silêncio, Normando permite que sua atenção vague de um para outro, saboreando a euforia etílica que os dominava. Deitada preguiçosamente na esteira suja, com os cabelos longos e negros jogados ao alcance de suas mãos se ele os quisesse tocar, Luana ria descontroladamente, as faces vermelhas de sangue e vinho. Normando deixou seus olhos deslizarem pelo corpo delicioso, desde o rosto arredondado e suave, passando pelo pescoço convidativo, os seios grandes e perfeitos que a blusinha decotada mal recobria, o umbigo exposto ao toque, até as pernas generosas em curvas. Ela tirara os sapatos e os jogara para um canto. Esfregava os pés delicados um no outro num pequeno espetáculo de volúpia. O short curto implorava para ser arrancado. Talvez até com os dentes.

Por que não? Talvez mais tarde.

Camile estava deitada na outra esteira, formando um “L” com a esteira de Luana. Seguindo o exemplo dela, também havia tirado os tênis, deixando que o saiote jeans fosse a única roupa da cintura pra baixo. Por vezes, seus pés encontravam os da irmã, tocando-se e esfregando-se numa alegoria exótica de graça e beleza. Camile apoiava-se no braço esquerdo, mantendo erguida a cabeça emoldurada pelos cachos castanhos. Seus olhos não se desviavam dos de Normando nem por um momento. Olhos mais profundos e provocantes do que os de Luana, olhos que abrigavam mistérios.

Lindíssimas individualmente. Juntas, porém, eram uma visão celestial incomparável.

Cana estava entretido falando besteiras para Luana rir como louca, enquanto devorava com os olhos cada detalhe de seu corpo. Normando às vezes esquecia o quanto Cana era atraente: forte, corpo moldado por uma disciplina de exercícios muito rígida. Usava uma camiseta preta que expunha boa parte de suas tatuagens. Não tinha um rosto maravilhoso, mas os traços completavam-se harmoniosamente. Cana era um bom amigo. Às vezes Normando gostaria de lhe dizer isso, mas ele acharia viadagem. Sabia que havia ocasiões, como agora, em que Cana o odiava. Estava claro que nenhuma das duas tinha o menor interesse nele. Ambas queriam Normando. Se pudesse, Normando explicaria, mas Cana não iria entender. O mal é sedutor. O mal é sexy. Não era seu corpo que realmente as atraía. Num nível inconsciente, elas podiam sentir o cheiro da maldade em sua alma. Normando sabia: o mal é irresistível.

O ritual se inicia com o acender de um isqueiro. O beque passa de mão em mão, cada vez menor, mãos e bocas experientes demais para desperdiçar uma tragada sequer. Puxar, tragar, soltar, passar. O ritual prolonga-se por minutos intermináveis. A névoa de maconha misturando-se à tênue fumaça das velas, intensificando ainda mais o movimento aparente das figuras nas paredes.

– Essa casa tem uma história – declarou Normando, quebrando o respeitoso silêncio, atraindo a atenção dos outros.

– Conta – pediu Luana. Não que estivesse realmente interessada.

O beque estava nas mãos de Normando agora. Puxou, tragou, soltou, passou para Luana e continuou:

– Essa casa é um bocado antiga. Está abandonada a dois anos. Muita gente já morou aqui. Estudantes principalmente. Foi república várias vezes. A uns cinco anos foi uma república feminina, umas meninas da Geografia. Foram elas que começaram as pichações. Só coisinha boba, na verdade. Foi a última vez que gente decente morou aqui. Desde que foram embora só gente esquisita passou por esse lugar.

Aquilo que Normando considerava “gente esquisita” chegava a dar calafrios em Cana.

– Um Mago morou aqui.

Luana quase começou a rir, mas algo nos olhos de Normando fez o riso morrer em seus lábios. Ele falava sério. De apenas ouvirem por inércia, todos passaram a prestar atenção em cada palavra.

– Talvez dizer “Mago” seja um exagero. Era uma figura estranha, isso sim. Eu cheguei a conhecer. Foi o último a morar aqui e não escolheu esse lugar por acaso, isso não. Ele procurou por muito tempo uma casa assim...

– Assim como? – perguntou Camile.

– Assombrada – respondeu Normando. Camile deixou escapar um riso nervoso que se espatifou contra o rosto frio de Normando. Não havia lugar para humor ali.

– Esse lugar é assombrado? – perguntou Cana, sem disfarçar a irritação na voz. O que diabos Normando queria? Assustar as meninas?

– Se não é, deveria ser – respondeu Normando – Coisas ruins aconteceram aqui. Coisas muito ruins.

Então Normando contou a história do lugar maldito aonde se abrigavam nessa noite de tempestade. Falou sobre as pessoas terríveis que ali viveram e os atos monstruosos que cometeram. Falou sobre o estupro que começou tudo, anos atrás. O primeiro ato de violência. Falou sobre a garota violentada e sobre a morte horrível com que seu algoz optou encerrar sua agonia. Falou sobre como os seus gritos de desespero foram ignorados pelos vizinhos egoístas e contou os detalhes de cada corte da navalha que o maníaco usava como instrumento de prazer sádico.

– Era um sujeito doente, sem dúvida. Estudante, como nós, mas era barra pesada. Ele e seus amigos. A garota também não era nenhuma inocente, mas ninguém merece nada como aquilo.

Deu mais um tapinha antes de continuar.

– Foi apenas o começo. O assassino foi preso, acho que morreu na prisão. Os caras que moravam com ele foram acusados de cúmplices, mas tiveram sorte, hoje estão livres em algum lugar por aí. A casa ficou vazia por alguns meses, então a imobiliária resolveu oferece-la pra locação de novo. Tudo foi limpo. Nenhum vestígio da sujeira restou. A coisa toda aconteceu num dos quartos lá da frente, não sei em qual, não dá pra saber. No ano seguinte, um novo pessoal se mudou.

– Deus – interrompeu Camile, que havia se sentado e abraçado as pernas contra o corpo, os olhos fixos no rosto de Normando – Isso é mesmo verdade?

Normando não respondeu. Apenas olhou para ela com uma expressão impaciente. Depois continuou:

– Sabem, algumas pessoas acreditam que os lugares às vezes podem ficar... como direi... carregados... infestados... quando altas cargas de emoções violentas são desprendidas neles. Eu acredito que, de alguma forma, aquele crime deixou esse lugar marcado. Energia negativa impregnada nas paredes. O lugar tornou-se infestado, uma casa carregada de dor e violência. Um lugar ruim... que atraía coisas ruins. Todas as pessoas que moraram aqui depois daquilo eram gente da pior espécie. Novos crimes foram cometidos. Era como se nada de bom pudesse acontecer aqui. Ninguém conseguia morar mais do que alguns meses e tudo o que começava aqui, acabava em violência e, às vezes... morte.

– E você achou uma boa ideia nos trazer pra cá? – riu Cana – Jesus, você é um grande filho da puta.

Normando os observou atentamente. Havia um certo receio nos olhos de todos, mas a alegria eufórica do vinho nublava a real compreensão daquilo que ele contava.

(Essa casa atrai coisas ruins: o que viemos fazer aqui?)

Não estavam levando aquilo muito a sério. Ainda bem, pensou.

– Então apareceu esse cara de que falei, o tal Mago. Ele procurava por um lugar assim. Um lugar ruim. Via isso aqui como terreno fértil para as sementes que queria plantar. Era um caro muito maluco, devia ter uns quarenta anos, mas parecia mais velho. Era magro, alquebrado. Não me lembro dos detalhes da cara dele, mas não posso esquecer os olhos escuros que me encaravam quando conversamos uma vez no Sujinho’s bar. Ele não bebia e nem usava drogas, mas adorava a companhia de drogados. Parecia ter prazer em conversar com alguém totalmente chapado. E ele era bom de conversa, você simplesmente não conseguia deixar de prestar atenção. Ele me contou muitas coisas. Eu esqueci boa parte, pois estava muito chapado, mas lembro de que me falou sobre coisas como universos paralelos, outras dimensões, céu, inferno, anjos e demônios.

– “Essas coisas existem, meu caro Normando”, dizia ele, “Demônios são reais, anjos são reais, mas não são nada daquilo que você imagina, esqueça a Bíblia e todas aquelas baboseiras cristãs. Eu falo de mitos e lendas muito mais antigos do que o próprio papa sonha, mais antigos do que nossa civilização, mais antigos do que a raça humana”. Ele me falou sobre como essas entidades vivem entre nós, muito próximas de nós, porém em outros planos e dimensões, invisíveis, porém presentes, sempre presentes. Elas afetam nossas vidas, alimentam-se de nossas emoções, conhecem segredos insondáveis sobre os grandes mistérios que sempre atormentaram a alma humana.

– Ele me disse que existem lugares que servem como passagens para as outras dimensões. Lugares que permitem ver e entrever outros mundos e realidades. Lugares marcados pela intensidade e poder dos extremos das emoções humanas. Pontos do espaço onde as leis da física não têm validade, onde ângulos e perspectivas que jamais poderiam existir, de fato existem. Ele me disse, por fim, que tinha encontrado um desses lugares.

– Eu não tive chance de conversar muito com ele. Não sei exatamente por que ele queria tanto encontrar um lugar assim, mas sei que ele morou aqui por cerca de três semanas e tinha a intenção de fazer uma espécie de ritual aqui. Acho que fez mesmo. Uma noite ele desapareceu. Na mesma noite em que a polícia recebeu uma denúncia de um vizinho a respeito de sons horríveis que vinham daqui. Sons que pareciam vir do inferno. O Mago desapareceu, como eu disse. Não encontraram nenhum vestígio dele. Nada. A casa está abandonada desde então. Ninguém mais aceitaria aluga-la, a própria imobiliária não tem mais interesse nela. A água e a luz foram cortadas e o lugar entregue às baratas... aos vândalos... mendigos... e drogados... como nós.

Normando matou o beque e não disse mais nada. Ao invés disso pôs-se tranquilamente a acender outro. Sua expressão, como sempre, era indecifrável, mas, dessa vez, era possível notar um ar de quem está se divertindo.

– Porra, cara! – disse Cana, começando a rir – Você tá chapado!

Riu ainda mais, sem se importar com a maneira sombria com que Normando o olhava. Luana e Camile demonstravam certo nervosismo, mas logo começaram a rir também. Normando permaneceu quieto, deixando que a maconha penetrasse profundamente em seus pulmões. Então sorriu, dando de ombros:

– É, acho que estou mesmo, não é?

– O que tava querendo, seu porra? – riu Cana – Nos assustar? Você é foda mesmo!

– Olha, se era isso estava conseguindo – disse Camile, cujo riso era nervoso e inseguro.

– Só estava querendo criar um clima – continuou Normando – é uma história e tanto, não?

– Eu achei muito boa – disse Luana servindo-se de mais um copo de vinho e oferecendo-o à Normando, que aceitou.

Ele bebeu um gole e ficou em silêncio até os risos diminuírem, depois arrematou:

– Tenho uma surpresa pra vocês.

“Lá vem outra”, pensou Cana.

– O que é?

– Mais tarde.

– Ah... Fala logo – queixou-se Luana, atrevendo-se a dar um pequeno empurrão na perna de Normando com o seu pé descalço.

– Mais tarde. Vocês vão gostar.



2. LIGHT MY FIRE

Mais uma hora passou. A tempestade continuava violenta, parecendo aumentar de intensidade conforme o efeito do vinho se tornava mais evidente. Mas talvez fosse só impressão. Não havia mais lugar para inibições. Luana aproximou-se de Normando e começou a roçar o corpo contra o dele, os rostos quase se tocando. O olhar frio de Normando, seu ar falsamente indiferente, excitava-a ainda mais; a vaga lembrança de que havia mais pessoas ali, observando, fazia tudo parecer ainda mais delicioso, sujo, perfeito. Os braços nus de Normando a envolveram com força, rispidamente, quase com violência. Luana riu, um riso estridente, irritante para ouvidos sóbrios; felizmente, não havia ouvidos sóbrios ali.

Camile não conseguia desviar os olhos do delirante espetáculo que se desenrolava a pouco mais de um metro dela. Em seu íntimo, ela se amaldiçoava por não conseguir ser tão atrevida quanto à irmã. Sentia vagamente a mão de Cana acariciando sua perna, subindo pela coxa até invadir a intimidade de sua saia. Sentia a respiração quente e o hálito de vinho barato bem próximos de seu rosto, sentia dedos habilidosos brincando com os pêlos úmidos entre suas pernas. Mas não era o toque que a excitava ou os beijos molhados em seu pescoço, mas sim a visão de Normando e Luana entrelaçados à sua frente. Aquilo sim era divino. Mesmo quando seus lábios encontraram os de Cana, ela ainda hesitava em fechar os olhos. Não queria perder um segundo sequer do espetáculo. Cana percebia, é claro, e isso o enfurecia, mas não estava bêbado o bastante para demonstrar a raiva. Estava muito claro pra ele que não passava de uma sobra ali e teria que se conformar com isso. Não era hora de ser orgulhoso. Não se quisesse comer ao menos uma das irmãs esta noite.

Nenhuma palavra mais era pronunciada. O som de respirações ofegantes sobressaia o uivo do vento e o jorrar da chuva. O estranho movimento das figuras nas paredes, animadas pelo bruxulear das velas, parecia tornar-se mais nítido. Era como se as próprias paredes arfassem em excitante contentamento. Totalmente incapaz de conter-se ou avaliar-se, Luana ergueu a camisa de Normando, revelando o peito moreno e forte, e começou a lambe-lo com volúpia, deixando que o gosto salgado do suor a estimulasse ainda mais. Camile saboreava cada instante, refletindo em Cana toda a excitação que sentia. Suas mãos agarravam o corpo tatuado com aspereza, quase desespero. Cana respondia a altura, fingindo não notar que não era ele que realmente importava. De qualquer modo, ela estava bêbada. Todos estavam muito bêbados.

A própria casa parecia, de algum modo, estar chapada, quem sabe há quanto tempo.

– Está na hora da surpresa! – declarou Normando, inesperadamente, quebrando o transe coletivo que reinava. Luana ergueu o rosto para ele. Parecia tão apalermada que Normando quase teve vontade de rir. Camile, imediatamente, desgrudou os lábios dos de Cana e começou a prestar atenção no que Normando teria a dizer. Cana teve vontade de segura-la à força, mas se conteve. Tinha que se conformar. Estavam ali para fazer o que Normando queria. Não era sempre assim?

Normando esticou-se em direção à mochila, tentando não desvencilhar suas pernas das de Luana. Encontrou um pequeno recipiente de metal, do tipo que se usa como embalagem de pastilhas de menta. Havia vários pequenos comprimidos brancos em seu interior, menores do que aspirinas. Normando apanhou um deles entre o polegar e o indicador:

– Esse é pra você, menininha ...

– O que é isso? – perguntou Luana, ainda incapaz de controlar o próprio riso.

– É um presente – respondeu ele, enquanto colocava o comprimido em sua boca.

Voltou-se para Cana e Camile e estendeu a mão com mais dois comprimidos.

– Que diabo é isso, cara? – perguntou Cana.

– Passagem para o paraíso, irmão – brincou Normando, com um sorriso ébrio no rosto.

– Ou para o inferno? – disse Camile.

– Faz diferença?

Normando voltou a estender a mão. Dessa vez Camile pegou um comprimido.

– Coloque sob a língua – explicou Normando. Ela obedeceu.

– Sai dessa, cara – disse Cana – Isso é sujeira!

– Afrodisíaco, meu irmão – sorriu Normando – Não que você precise. Não tenha medo não!

Cana encarou Normando. Havia raiva em seus olhos, mas Normando não notava, ou fingia não notar. Ou não ligava, o que era mais provável. Cana jamais conseguiria explicar, se tivesse tido futuro, por que fez o que fez nessa noite de tempestade. Tudo o que sabe é que pegou um comprimido e colocou na boca.

– Bravo! – disse Normando, voltando a se enlaçar com Luana – É assim que começa.

Tomou um comprimido e beijou novamente os lábios quentes que mal podiam espera-lo.

De todos, Luana era a única que não sabia o que havia tomado. Estava bêbada demais, incapaz do mais rudimentar raciocínio, agindo apenas pelos instintos mais básicos. Sequer se lembrava do comprimido. Tinha vaga consciência de um formigar estranho na língua, mas não ligava. Sua consciência resumia-se a rápidos flashes, quase como o brilho repentino dos relâmpagos. Deu-se conta, até com certo susto, de que seus seios estavam à mostra. Onde foi parar a blusa? Não importa. Nada importa a não ser os dentes de Normando mordiscando os bicos de seus seios. Luana agarrava-se à cabeça dele com força, como se sua vida dependesse disso. Percebeu que ele estava sem camisa. E ela? Estaria nua agora? Aquele nojento do Cana estaria olhando para sua bunda nesse momento? Não importa. Não importa. Camile estaria com ele? Estaria a irmã olhando pra ela, agora? Em circunstâncias diferentes isso a deixaria inibida, mas agora apenas tornava tudo ainda mais excitante. Ela estaria olhando? Não importa, não importa, não iria olhar para trás. Fixou os olhos na janela. Podia ver a chuva escorrendo pelo vidro. Quando um relâmpago surgia podia ver o vulto dos telhados vizinhos. Podia ver a enorme boca escancarada abrindo-se para ela...

(podia ver o que?)

...a boca escancarada, seus dentes podres, distorcida... o que... o que estava vendo... era... era...

Um grafite. Era só mais um grafite em meio às infinitas pichações. Alguém havia desenhado uma enorme boca ao redor da janela, dando a impressão que a própria janela era a garganta, esperando para devorar quem se aproximasse. Não era nada. Não era nada.

Mesmo assim, Luana não podia deixar de olhar.

“Onde estão seus demônios, Normando” sussurrava nos ouvidos dele, deixando que os cabelos longos dos dois se misturassem até se tornarem quase indistinguíveis. Normando puxou-a, de repente, fazendo-a deitar-se sobre a esteira, aconchegando-se sobre ela. “Já estão aqui, menininha” sussurrava ele “Só não pode vê-los ainda”. Ainda mais bruscamente, arrancou o short e a calcinha de uma vez só, jogando-os para o lado, quase atingindo uma das velas. Um calafrio repentino passou pelo corpo dela, Normando pôde sentir como se fosse em seu próprio corpo. Parou, por um momento, para contempla-la. Como era linda. Estonteante. Ela se encolhia diante dele, num rompante de recato involuntário e tardio. Sua face avermelhada pelo vinho e pelo excitamento. Sua respiração ofegante. Em seus olhos havia uma mistura deliciosa de desejo, delírio e... sim, de medo. Também havia medo em seus olhos. Normando podia ver.

– Mas é isso que te excita mais, não é, menininha? – sussurrou.

Perto deles, Camile já assumira as rédeas da situação. Seu rosto era uma máscara inexpressiva aos olhos de Cana, mas o que ela fazia não lhe dava motivos pra reclamar. Quase com desdém, abriu o zíper da calça dele e, com mãos ágeis de alguém que está longe de ser inexperiente, começou a brincar com o membro rígido que saltara prontamente ao seu toque.

“Como um boneco de mola saindo da caixa” pensou ela, sentindo vontade de rir, mas se contendo. Poderia ser humilhante para o pobre Cana provocar risos à primeira visão do pau que tanto o orgulhava. Bastava a frustração de perceber que ela precisava assistir ao desempenho de Normando e Luana para conseguir ficar excitada.

E Cana percebia. Ah... como percebia. E sua raiva aumentava a cada minuto. Por que ela nem ao menos disfarçava? Não tirava os olhos de Normando. Quase não olhava para o que estava fazendo.

Como se tivesse lido seu pensamento, Camile voltou-se para Cana e encarou-o friamente, oferecendo-lhe um fugaz sorriso. Então, enquanto uma das mãos segurava o pênis dele com firmeza, a outra puxava a calcinha de lado revelando o próprio sexo. Lentamente, movendo o corpo com insinuações serpenteantes, começou a aproximar um do outro.

Normando terminou de despir-se, procurando fazer de cada movimento um pequeno número para os olhos famintos de Luana (e de Camile, ele não deixara de notar). Deitou-se sobre ela e começou a penetra-la. Luana continha os gemidos como uma criança que não quer incomodar, movendo-se ritmicamente, acompanhando os movimentos dele. Conforme o ritmo aumentou, Normando começou a notar a luz.

Ela emanava luz! Era incrível! Nunca imaginara nada igual. Estava começando, ele podia sentir. Havia luz emanando dela e aumentava de intensidade a cada sussurro de prazer. Será que ela já podia ver o brilho que, com certeza, emanava dele também, ou seria diferente para cada pessoa?

– Olhe para mim! – gritou Cana, segurando com violência o braço de Camile, praticamente tirando-a de um transe. Ela obedeceu, instintivamente. Olhou para o rosto suado, para o peito ofegante coberto de tatuagens. Havia corações, dragões, serpentes, medalhas, símbolos, inúmeros desenhos de todas as cores.

– Você está no lugar certo – disse ela.

– O quê?

– Essa casa combina com você.

A expressão no rosto dele exprimia bem o asco que a ideia lhe provocou. Era hora de terminar com isso.

Os dois se encaixaram um no outro. Camile abraçou-o quando sentiu a penetração. Então relaxou e deixou que Cana a conduzisse para onde quisesse.

O pequeno e arruinado cômodo, iluminado por velas e relâmpagos, viu-se repentinamente tomado pelo som de gemidos ecoantes, sussurros de êxtase e emoções intensas e reverberantes. As paredes tatuadas pareciam prender a respiração, atentas a cada detalhe. Normando podia sentir: estavam sendo observados, quem sabe por quantos olhos diferentes? Luana agarrava-se a ele, arranhava suas costas, estava quase lá. Sua luz ofuscava Normando, obrigando-o a fechar os olhos. Um instante de soberbo júbilo e estava tudo acabado. Normando deixou-se cair sobre ela, respirando profundamente, recuperando o fôlego. No mesmo instante, a luz desapareceu. De algum modo, Normando sabia que parte dessa luz havia penetrado nele... e nunca mais o abandonaria.

– Você é puro fogo, garanhão – repetia ela em meio aos risos etílicos – Puro fogo!

Fire walk with me, baby – disse Normando, achando que a citação soaria apropriada. Começou a rir alto, satisfeito com as visões que salteavam diante de seus olhos. Ficou de joelhos, olhando ao redor. Os desenhos nas paredes se moviam, não era apenas impressão agora. Era fato. Os desenhos se moviam, remisturando-se entre si, ganhando novos e bizarros sentidos, deslizavam pela parede como grandes insetos, brigando uns com os outros, trepando uns com os outros... caóticos... enlouquecidos... alguns pareciam tentar falar com ele. As palavras, pichadas ao acaso, os garranchos quase ininteligíveis, recombinavam-se em novas frases dos mais variados significados. Era engraçado. Era muito engraçado e Normando ria. Era tão bom estar vivo!

– Você está vendo? – perguntou para Luana – Está vendo, menininha? Está vendo?

– Estou – murmurou ela no momento em que o sorriso ébrio, pela primeira vez, apagou-se de seus lábios. Sim, ela podia ver, mas não era o que Normando pensava. Ela olhava para um ponto no teto, logo acima da cabeça dele, onde uma grande mancha de mofo crescia e se movimentava, pulsando num ritmo constante e monótono, como uma respiração. Luana tentava focalizar melhor, mas sua visão estava embaçada como se uma nuvem pairasse diante dela. Notava agora que não era a mancha de mofo que se movia, era o próprio teto que pulsava como se tivesse vida. Olhando mais atentamente ela pôde distinguir veias saltadas, nervos e volumes que se assemelhavam a alguma forma grotesca de musculatura dando forma orgânica ao reboco do teto. Logo seus ouvidos captaram um som abafado, o som de um grande animal respirando.

– A casa está viva – murmurou, mas sua voz soou débil demais. Normando continuava olhando ao redor, fascinado com os detalhes novos que conseguia perceber e parecia ter esquecido dela. Luana continuou no chão, imóvel. Se sua mente não estivesse tão nublada pelo efeito do vinho e das drogas com certeza estaria em pânico, mas sua consciência e seu raciocínio estavam comprometidos demais para que ela compreendesse o que via a ponto de obter uma resposta emocional. Olhava para a massa de tecido vivo que o teto havia se tornado como quem olha nuvens no céu, deixando que a respiração da casa determinasse o ritmo de sua própria respiração.

– Está vendo, não está, menininha? – dizia Normando – Está começando... não é como as outras viagens. Aqui é diferente... aqui é diferente...

Asas! Normando tinha asas! Luana podia ver asas brancas e resplandecentes brotando das costas dele. Enormes, abertas e voltadas para o alto como se estivesse prestes a voar. Era inacreditável.

– Aqui é diferente... expansão da mente... outros mundos... o Mago tinha razão... tinha razão...

Num impulso, Normando ofereceu a mão para ajuda-la a sentar:

– Veja, menininha – Olhe pra eles, Cana e sua irmã. Preste atenção. Você está vendo? Está?

Abraçou os ombros dela com firmeza. Sentados lado a lado na esteira suja, os dois assistiam às evoluções do casal em êxtase. Cana e Camile estavam encaixados um no outro, frente a frente, testas encostadas, os braços segurando um ao outro com um misto de paixão e desespero. Cana penetrava-a repetidas vezes, adiando ao máximo o momento final, tentando prolongar o ato o quanto pudesse. O suor dos dois misturava-se e refulgia à luz das velas, dando aos seus corpos um colorido avermelhado. Quente. Camile gemia alto. O ressonar de seu prazer era tão angustiante quanto gritos de dor.

– Preste atenção – dizia Normando segurando a cabeça de Luana com uma das mãos e acariciando seu seio com a outra – Preste muita atenção. Consegue ver? Consegue?

– Sim – sussurrou Luana. Sim, ela podia ver. Eles emanavam luz. Uma luz branca e forte que parecia brotar do interior dos dois e pulsava ao sabor de seus movimentos ritmados. Luana estava fascinada. Era lindo. Nunca havia se dado conta de como Camile era linda. E Cana, aquele nojento, era lindo. Tudo era lindo. Luana queria dizer alguma coisa, dar voz ao que sentia, mas as palavras faltavam.

– Aquilo é vida, minha menininha – dizia Normando em seu ouvido – A luz da vida. Energia. Energia pura se misturando, reproduzindo, queimando. Não é incrível, menininha? Não é incrível?

Tudo o que Luana conseguiu fazer foi mover os lábios formando a palavra “sim”, sem emitir nenhum som.

Camile sentiu uma leve fisgada na perna direita. Tentou ignorar, mas a dor aumentou, uma pontada de ardor incandescente em sua coxa. Olhou para ver o que era: uma das serpentes tatuadas no corpo de Cana estava mordendo sua perna.

Camile gritou. Um grito estridente de puro terror. Saltou para trás, desvencilhando-se dos braços dele ao mesmo tempo em que chutava a esmo com ambos os pés. Com o impulso bateu as costas contra a parede. Começou a chorar, histérica, segurando a perna. Havia um filete de sangue escorrendo de duas minúsculas feridas na parte interna da coxa direita, poucos centímetros abaixo da virilha.

– Veneno! Deus! Meu Deus do Céu! Eu vou morrer! Ele me envenenou! Ele me envenenou! – gritava sem parar, com lágrimas escorrendo abundantemente dos olhos avermelhados. Cana arfava agachado no chão tentando se recuperar dos chutes no estômago, xingando sempre que conseguia emitir algum som além de grunhidos de dor. Luana e Normando assistiam tudo, estupefatos. Luana olhava para a irmã com os olhos arregalados. Não entendia o que havia acontecido, a não ser que Camile estava chorando. Normando começou a rir baixinho, tentando conter o som.

– Porra, Camile! – gritou Cana, ficando de pé – O que deu em você? Quase acabou comigo!

Ela parara de gritar, mas não conseguia conter os soluços. Olhava ensandecidamente para a ferida na perna. Não podia ser verdade. Olhou para Cana e quase guinchou de pânico: as tatuagens estavam vivas! As serpentes agitavam-se enlouquecidas como os cabelos da Medusa no corpo musculoso. Camile podia ouvir seu sibilar.

– A cobra me picou... me picou... – balbuciava em meio aos soluços.

– Cobra? – gritou Cana – Você tá chapada, mulher! Raciocina! Você tomou LSD, porra! Está vendo coisas!

Mas Camile não entendia uma palavra, nem poderia, não enquanto continuasse a ver as serpentes rastejando pelos braços dele, enrolando-se e desenrolando-se, como se quisessem fazer carícias em seu dono. Estava quase louca de pavor e repulsa. Soluçava descontroladamente. Abria a boca para gritar, mas não encontrava voz, emitindo apenas um esganiçar angustiante.

– A culpa é sua, seu filho da puta! – vociferou Cana voltando-se para Normando – não ficou contente enquanto não chapou todo mundo, não é? Do que está rindo, desgraçado?

– Desculpa, cara – riu Normando – mas você tá muito engraçado todo nervosinho, com o pau duro apontando pra lá e pra cá.

Começou a gargalhar, quase caindo no chão. Cana ficou paralisado por alguns instantes, encarando Normando com a face transformada numa máscara de ódio. Cerrou as mãos com tanta força que as palmas quase sangraram sob a pressão das unhas.

– Foda-se, cara – repetia sem parar. Valeria a pena esmurrar aquela cara sarcástica? Claro que valeria – Foda-se você...

– Não chore.

Era Luana falando com a irmã. Com tamanha suavidade e ternura que o contraste atraiu imediatamente a atenção dos dois homens. Engatinhou até Camile, ajoelhando-se na frente dela.

– Não chore, Camile. Por favor.

– Veneno, Lu – balbuciava Camile. Parecia infantilizada, uma criança em pânico.

Luana olhou para onde ela indicava. Viu as feridas vermelhas e o sangue escorrendo.

– Temos que tirar o veneno, Camile.

– Eu vou morrer.

Normando observava tudo. Fascinado. Estava ficando cada vez melhor.

– Não vai morrer, Camile. Eu sei como fazer. Eu vi nos filmes.

Luana sorriu para encoraja-la. Então se abaixou, lentamente, até encostar os lábios na ferida. Com suavidade, começou a morder e sugar. Camile aspirou o ar com força, segurando os cabelos dela, deixando escapar um gemido agudo e alongado. Fechou os olhos e recostou-se na parede. Sua respiração tornara-se uma sucessão de soluços entrecortados. Luana mordia e lambia o sangue voluptuosamente. Camile debruçou-se sobre ela, envolvendo-a com os braços.

De pé, ainda paralisado, Cana olhava a cena com uma expressão de repulsa. Era demais. Aquilo era demais.

– Porra, cara... – disse, voltando-se para Normando, que assistia tudo com o rosto impassível, a fascinação expressa apenas pelos olhos que brilhavam na penumbra.

– São lindas, não são? – murmurou Normando. Para Cana foi a gota d’água. Sentiu-se mal. Cambaleou vítima de uma tontura repentina. Avançou em direção aos cômodos internos e entrou pela porta que mais lhe pareceu um banheiro, batendo-a atrás de si.

Luana ignorou o estrondo. Camile, entretanto, estremeceu e pareceu despertar como que de um sonho. Quase inconscientemente, acariciava as costas nuas da irmã, que ocultava o rosto entre suas pernas, a língua trabalhando freneticamente. Camile viu Normando sentado no chão olhando para elas. Não lembrava onde estavam. Entorpecida pelas drogas e pela adrenalina tinha dificuldade em processar o que estava acontecendo e as alucinações (se é que eram mesmo alucinações) só tornavam as coisas mais complicadas. LSD, foi o que Cana disse? Sim, é verdade, tinha tomado LSD. Normando havia oferecido. Os olhos dele brilhavam no escuro como estrelas gêmeas e havia coisas se movendo nas sombras atrás dele. Era difícil ver, havia poucas velas acesas agora. Quando tempo teria passado? Que horas eram? Tão difícil pensar. Sentia o corpo se arrepiar a cada nova evolução da língua esperta de Luana. Tão bom... Tudo tão bom... As paredes... as paredes não estão certas... os ângulos... não estão certos... onde estão os ângulos retos?... tudo estranho... torto... errado...

Estava tudo errado! O que aconteceu? O que estava fazendo ali com Luana? O que ela estava fazendo? Era... delicioso... absurdo... sujo... era tão... perverso... tão bom... era bom demais...

Camile segurou a cabeça de Luana e, com suavidade, forçou-a a se erguer. As duas irmãs ficaram sentadas, de pernas cruzadas, uma em frente à outra, bem próximas. As mãos de Camile envolviam o rosto de Luana, que tinha uma expressão vazia, um ar abobado, o vermelho róseo do sangue tingindo sua boca e queixo como uma vampira. Ela parecia tão frágil, tão pequena, tão bonita. Camile não se lembrava mais do que pretendia fazer ou dizer. Ao invés disso inclinou-se e uniu sua boca a da irmã, sentindo o gosto salgado de seu próprio sangue nos lábios dela.

O beijo pareceu durar uma eternidade, as línguas unidas entrelaçavam-se como se jamais fossem se separar. Finalmente, quando Camile abriu os olhos e afastou-se, viu o rosto de Luana banhado em lágrimas. Ela chorava e movia a cabeça em sinal de negação sem desviar os olhos dos da irmã. Então levantou e correu para longe, sem sequer pensar para onde iria, o instinto levando-a a fugir para o corredor que levava ao hall por onde haviam entrado. Camile estendeu os braços, tentando dizer algo para faze-la parar de chorar, mas não pôde. Luana correu até sumir de vista, desaparecendo num corredor escuro e grotesco onde não havia sequer um ângulo reto, onde a própria lógica da perspectiva havia sido banida. Um corredor que antes não tinha mais do que dois metros de comprimento, mas que agora alongava-se infinitamente na escuridão. Camile tentou gritar para que ela voltasse, mas sua voz não se propagava. Tudo que lhe restava era sentar-se na esteira suja, vendo as sombras se adensarem ao seu redor, enquanto suas próprias lágrimas começavam a verter.



3. STONED IMMACULATE

Escuro. Cana não se deu conta de que não haveria velas no banheiro. Pensou em voltar para pegar uma, mas afastou logo a ideia. Não queria voltar pra lá. Ainda não.

Encostou-se na porta e esperou que os olhos se acostumassem à escuridão. Uma pequena janela com os vidros quebrados permitia a entrada dos rápidos flashes dos relâmpagos, além do vento frio e sibilante carregado de água de chuva. Como numa câmara estroboscópica, a luz intermitente lhe permitia ir montando mentalmente as características do banheiro arruinado. Não havia muita coisa. Um vaso sanitário, uma pia trincada, um espelho partido. Anos de sujeira acumulada sob a sola de seus pés. Desagradável. Tanto quanto as pichações, também presentes, ainda mais obscenas do que nos outros cômodos, como se fosse possível.

Caminhou com cuidado até o vaso, temendo pisar em cacos de vidro ou outras coisas indesejáveis. Não sentia nenhum cheiro. Devia estar seco. Com certeza já fazia muito tempo desde que alguém mijara ali. Mas Cana não se sentia muito honrado pelo privilégio.

O odor de sua própria urina incendiou o ambiente. Vinho e cerveja eliminados num jorro que parecia eterno, mas Cana agradeceu pela duração. Quanto mais demorava mais a excitação diminuía. Era um alívio sentir o pênis murchar entre os dedos. Não queria se sentir excitado com nada daquilo. Não queria participar dos jogos doentes de Normando. E aquelas duas então? Quem imaginaria?

Ajoelhou-se diante do vaso, respirou fundo, utilizando o cheiro como um incentivo adicional. Enfiou os dedos na garganta até ativar o reflexo. Foi fácil. O vômito, líquido e avermelhado, pareceu igualmente interminável. Quando acabou, fechou os olhos e descansou alguns minutos ali mesmo, apoiado nas bordas da privada. O cheiro agora era azedo. Ainda se sentia mal. Abriu os olhos quando um ruído borbulhante lhe chamou a atenção. Vinha do interior do vaso, mas no escuro não via mais do que uma mancha negra. Um relâmpago estalou e Cana distinguiu uma mão manchada de vômito emergindo em sua direção.

O grito de surpresa soou como um guincho, mais feminino do que gostaria. Cana saltou pra trás, pondo-se em pé, respirando rápido, ofegante. Na abertura negra do vaso não havia mais nada visível. “Deus”, pensou, “Por que tomei aquela porcaria?”. Já tinha tomado ácido antes. Sabia que aquilo caía direto na corrente sanguínea, não adiantava nada forçar vômito. Não estava pensando direito. Camile tinha dito que tinha visto cobras? Pois iria ver muitas mais quando resolvesse parar de trepar com a irmã. “Deus do Céu!”.

Ouviu um riso abafado atrás de si, sentiu algo movendo-se no limiar de sua visão. Voltou-se rápido, mas mesmo que houvesse algo não podia ver. O movimento causou-lhe tontura. Apoiou-se nas bordas da pia imunda e fechou os olhos. Não era nada, é claro, só alucinações. Seria uma viagem ruim, sem dúvida. Uma viagem muito ruim.

Ouviu o riso de novo, dessa vez mais claramente. Decidiu ignorar. Encarou a própria face no que restava do espelho. Não mais do que um vulto escuro na superfície trincada, a não ser quando os relâmpagos lhe mostravam o quanto estava péssimo. Num desses flashes, Cana viu dois rostos atrás de si. Apenas rostos, não podia ver os corpos. Eram máscaras. Aquelas famosas máscaras do teatro: a face que sorri e a face que chora, brancas, fosforescentes, flutuando nas sombras do banheiro.

“Porra!” Estava decidido a não dar atenção a nada estranho que visse, ao menos enquanto pudesse aguentar. Virou-se devagar, imaginando que as máscaras desapareceriam, mas não, lá estavam. Como dois sujeitos vestidos de preto, de modo que apenas as faces brancas eram visíveis no escuro. De que buraco de sua imaginação teria tirado isso?

“Porra! Sumam da minha frente, suas bichas!” resmungou fechando os olhos e esfregando o rosto com as mãos. A cabeça estava muito leve, as pernas fracas. Estava chapado demais, mas conseguiria dar conta de algumas esquisitices. Anos de prática. Felizmente ainda podia pensar.

Por enquanto.

Um relâmpago mais forte, acompanhado de um estrondo violento, o assustou. Abriu os olhos e as máscaras ainda estavam lá. Mister Happy and Mister Sad. Bela dupla. Estranho. Muito constantes para simples alucinações. Muito reais. Começou a sentir-se apreensivo e odiou-se por isso. Queria que aquilo sumisse. Queria apagar e acordar na manhã seguinte, ou na tarde seguinte.

– Sumam... – rosnou agitando o braço como quem espanta uma mosca inconveniente. Uma mão forte agarrou seu pulso. A surpresa o fez estacar, estupefato. As máscaras estavam bem mais próximas. Aparentemente a mão que o segurava pertencia a Mister Sad. Tentou puxar o braço, mas a mão não o largava, firme como uma morsa. Paradoxalmente, Mister Sad começou a emitir o som claro e distinto de uma gargalhada. Um riso agudo e irritante, como uma vitrola velha fora de rotação.

Com um movimento rápido, Mister Sad torce o braço de Cana para trás, imobilizando-o. Cana grita de dor ao sentir o membro ser forçado contra as costas quase além de sua capacidade de dobrar-se. Tenta pedir socorro, mas a mão livre de Mister Sad o amordaça antes que pudesse emitir qualquer outro som.

Impotente, Cana assiste Mister Happy aproximando-se até a máscara ficar imóvel a poucos centímetros de seu rosto. Não sentia ou ouvia nenhuma respiração. Mister Sad apoiou o queixo no ombro esquerdo de Cana, e assim ficaram os três por minutos intermináveis.

Acalme-se... sibilou uma voz.

Incapaz de compreender o absurdo da situação, apenas obedeceu. Parou de tentar soltar-se.

Relaxe...

Cana respirou fundo. A pressão em seu braço diminuiu gradualmente, até que a mão de Mister Sad o largou. O braço voltou à posição normal, formigando. Cana poderia aproveitar a chance para tentar escapar, mas não conseguia desviar a atenção dos buracos negros e profundos dos olhos da máscara de Mister Happy.

Sente-se belo, Cana?

O corpo de Mister Sad encostou-se ao seu, a cabeça mascarada ainda apoiada em seu ombro.

Sente-se sexy?

Pele nua colava-se às suas costas. Pele feminina, estava certo disso. A textura e a conformação do corpo eram inconfundíveis. Podia sentir os seios, os pêlos pubianos roçando suas nádegas. Uma mulher nua esfregava-se em seu corpo. A perna o envolvia, um pé delicado acariciava sua pele. Os braços deslizaram pelos seus até alcançar as mãos, entrelaçando os dedos.

Você é um comedor, não é?

A voz parecia zombar. Estava aparentemente livre, mas não conseguia se mover. Miss Sad continuava esfregando-se em seu corpo. Para cima, para baixo, ritmicamente. Seu coração batia num misto de medo e excitação. O suor empapava-lhe a pele. Sentiu o pênis enrijecendo. Apesar do medo, não podia se controlar.

Por que não me come?

Braços esguios envolveram seu abdome. Cana estremeceu. As mãos de Miss Sad continuavam firmemente entrelaçadas as suas, então de onde vinham esses braços? De repente outros braços surgiram, e mais outros, contorcendo-se de maneiras que nenhum membro humano poderia. Quando se deu conta, estava imobilizado por um grotesco abraço de inúmeros braços serpenteantes. A textura ainda era de pele humana, mas os movimentos eram absurdos, impossíveis. O pavor começou a crescer dentro dele, travando sua garganta e fazendo seu coração disparar ainda mais. Lutando contra o fascínio bizarro que a máscara de Mister Happy exercia, Cana conseguiu virar o rosto, tentando ver a máscara de Miss Sad ainda apoiada sobre seu ombro. No exato instante em que um relâmpago iluminou o banheiro, Cana pôde ver seu reflexo no espelho.

A única coisa vagamente humana no horror que o abraçava era a máscara lacrimosa. Todo o restante era uma horrenda massa grotesca de pústulas pulsantes e tentáculos flexíveis que o envolviam como se jamais pretendessem se separar dele. Cana pôde ver a coisa apenas por uma fração de segundo, mas foi o bastante para que um grito terrível escapasse de seus lábios. Horrorizado, tentou desesperadamente se desvencilhar, mas não pôde mover um músculo sequer, amarrado como estava pelos tentáculos do horror atrás de si, que agora começava a emitir o som repugnante de uma respiração pesada, assobiando pelas frestas da máscara tristonha. Cana gritava, gritava até perder o fôlego, para então respirar e gritar novamente. Onde estava Normando? Será que não ouvia?

Não, Cana, ele não te ouve... Ele nunca te ouviu... nunca ligou pra você... nunca foi seu amigo... você é apenas plateia, seu tolo, nunca percebeu isso?

Uma mão, aparentemente pertencente a Mister Happy, agarrou seu pênis. O espanto foi tanto que Cana silenciou.

Você era o fodão, não era? Com essa porrinha aqui você comia todas, não é? Quantas bocetas essa sua coisa fodeu? Quantas?

A mão deu um puxão violento e torceu. Cana gritou, dessa vez de dor. Imediatamente os tentáculos o soltaram e a coisa desapareceu na escuridão.

E ultimamente? Quantas têm fodido? Como anda a sorte do garanhão tatuado?

Um novo puxão forçou Cana a mover-se. Foi conduzido até a pia, então a mão o largou. Cana apoiou-se, tentando recuperar o fôlego.

Vai responder, garanhão? Sei que quer responder. Pode falar. Aqui você vai ser ouvido.

– O que quer que eu diga? – balbuciou Cana sem se atrever a olhar para trás ou para o espelho.

Diga a verdade...

Um dedo com uma unha comprida demais deslizou por suas costas, provocando um arrepio.

...diga se você é ou não um comedor.

Cana começou a chorar.

– Eu transo bastante sim, se é o que quer saber – disse entre lágrimas.

Oh... jura? Pode dizer isso de novo, garoto?

– As meninas gostam de transar comigo...

Correção : gostam de ser fodidas por você. Com caras como você não se transa... nem se faz amor... nem mesmo se trepa... apenas se fode!

– Eu... eu... eu não entendo... não entendo o que quer dizer...

Nem deve, querido... você é um daqueles infelizes destinados a jamais entender a razão das coisas.

Cana cerrava desesperadamente os olhos. Não queria arriscar ver mais nada, mas era inútil. Imagens de tudo o que acontecia atrás dele invadiam sua mente. “Expande a consciência, cara”, lembrava-se de Normando dizendo, certa vez, “Põe você em sintonia com outros mundos, outras realidades, onde ver é apenas o começo”. Achava tudo aquilo baboseira. Até agora. Sentia-se pequeno, vulnerável. Forças terríveis estavam espreitando e Cana sentia medo. Como nunca antes em sua vida.

O horror de tentáculos estava lá. Sabia disso. Não precisava ver. Mas agora Happy e Sad fundiram-se em um único e grotesco corpo, enorme, mutável, com duas cabeças mascaradas flutuando nas extremidades de tentáculos alongando-se no ar. A massa pulsante espalha-se, recobrindo todo o espaço do pequeno banheiro, deslizando pelo chão, subindo as paredes, escorrendo pelo teto, onde estranhas estalactites de massa gelatinosa começam a se projetar, delineando-se, tomando forma, até se tornarem cópias exatas de cada mulher com quem Cana trepou em sua vida. E eram tantas, tantas mulheres de cabeça pra baixo, rostos vazios, bocas abertas com as línguas pendendo. Perfeitas em cada detalhe, pelo menos até a cintura, onde se fundiam à massa pulsante.

– Eu não engano ninguém... todas que saíram comigo sabiam muito bem o que eu queria...

Queria... ou precisava?

A pergunta o chocou. De início não entendeu por que. Então percebeu que era porque fazia sentido.

– Eu... precisava...

Precisa.

– Sim... eu... eu preciso...

Não suporta ficar muito tempo sem foder. Precisa foder. Sempre com mulheres diferentes...

– Sinto-me... mal... quando fico muito tempo sem transar...

Sem foder, Cana. Deve concordar que é um termo mais apropriado.

– Sem foder.

Você fica mal. Você sofre.

– Sinto ansiedade... angústia...

Abstinência.

– Abstinência...

Cana esconde o rosto com as mãos. O horror ressoa em macabro regozijo. As mulheres sorriem e balançam as cabeças em sinal de aprovação.

Têm se sentido muito ansioso ultimamente, garotão?

Em algum lugar profundo dentro de si mesmo, Cana pôde sentir algo despertando.

Já não têm fodido tanto quanto antigamente, não é?

– Não... não tenho...

A mulherada já não abre as pernas tão fácil?

– Não. Não abrem.

Por que, Cana, meu velho? Por que seu charme irresistível tem falhado tanto?

Silêncio.

Claro que sua fama não é muito boa, mas, como você mesmo disse, você nunca enganou ninguém.

Silêncio.

Que tal se datarmos o começo de seu declínio? Quando seus problemas começaram? Mais ou menos na mesma época em que conheceu Normando?

Os olhos de Cana se abrem, sob as palmas das mãos.

Mais ou menos na época em que se tornou um capacho? A mera sombra de um homem?

As mãos afastam-se do rosto, ainda abaixado, fitando a pia.

Ele controla você. Controla todo mundo. Todos o acham fascinante, ou o temem, ou ambos. As mulheres caem em cima dele. Não há espaço pra você. Não há espaço para um capacho. Você era decidido, orgulhoso. Agora, olhe pra você. Comendo restos. Por que se rebaixa assim? Ele nem mesmo demonstra gostar de você.

Silêncio.

Ah... sim! Eu entendo. É difícil se livrar dele, não é. Ele é magnético. É como uma serpente. Você simplesmente não consegue fugir.

O rosto ergue-se, fitando o espelho.

Mas você sabe que existe um meio.

A face no espelho sorri para ele. Uma face inteiramente branca, com um enorme sorriso estampado e lágrimas frias escorrendo. Mister Happy and Mister Sad.

Não sabe?



4. BREAK ON THROUGH

As presenças estavam por toda parte.

Normando estava maravilhado. Nunca, nem mesmo em seus sonhos mais loucos, ele foi capaz de imaginar tamanho deleite. O Mago tinha razão. Estavam à borda da realidade. Estavam na Encruzilhada dos Mundos. E tudo era... delicioso.

Por um momento havia perdido o controle. Não muito, mas um pouco. Nada que não pudesse compensar, mas, ainda assim, fora preocupante. Não podia se dar ao luxo de distrações, esquecer onde estava e dos perigos potenciais, mas o luxuriante caldo de sensações e sentimentos pegaram-no de surpresa. A mente expandiu-se rápido demais para além dos limites do corpo. Deveria ter imaginado que, naquele lugar, o efeito da droga seria diferente, mais rápido, mais incisivo. Pena não ter conseguido algo mais apropriado, ácido era um produto químico, artificial, moderno demais. Peyote teria sido mais adequado, mas o efeito, no fim das contas, era o mesmo: abrir as portas da percepção e dar uma boa olhada além delas.

E havia muito para ver. Oh... sim! Muito para ver, muito para sentir. As ondas de prazer que atravessavam seu corpo eram inenarráveis. Naquele momento ele sabia que ninguém mais tinha a menor ideia do que era prazer. Sexo? Drogas? Comida? Dinheiro? Bobagens! Prazer era o que estava sentindo agora: a sensação de fazer parte de algo gigantesco, transcendental. Prazer era unir-se de corpo e alma ao cosmos!

Fora fascinante observar o efeito de tudo aquilo nos outros, acompanhar suas reações, suas respostas instintivas. Eles não tinham a menor ideia. O fluxo os estava levando, possuindo, estavam sendo arrastados sem compreender. Seria tão fácil se deixar levar com eles, mas precisava lutar contra isso. Caminhar com o fluxo e não ser arrastado por ele. Sua distração, sua perda momentânea de alto-controle, provocou o rompimento do círculo. Num momento estavam todos ali, juntos, num insinuante e semiconsciente ritual tântrico de copulações ferozes e sentimentos devoradores, um círculo de poder e luxúria, provocando e atraindo as presenças para perto, bem perto, tornando as energias propícias para a queda das barreiras entre os mundos. Então, sem que Normando pudesse fazer nada para evitar: o rompimento, a fúria de Cana, sua saída intempestiva, violenta, arrancando as irmãs de seu inesperado, mas excitante, êxtase incestuoso, forçando-as a encararem seus desejos subconscientes de forma abrupta e traumática. Normando estava sozinho agora. Cana se foi, trancando-se como um menino birrento; Luana, a deliciosa Luana, fugira aos prantos, aterrorizada pelos próprios instintos; e Camile, sentada num canto, era agora apenas uma garota trêmula fitando o vazio, despojada de sua antiga força. Tudo porque Normando se distraiu e deixou as coisas escaparem do controle. Uma pena, mas ninguém pode pensar em tudo. Era tarde demais para restaurar o círculo, agora cada um deles estava sozinho na encruzilhada. “Tudo bem”, pensou, estava mais do que acostumado a fazer as coisas sozinho. Seu caminho era trilhado na solidão. Afinal, quem iria caminhar com ele?

Arrastou-se até o centro da sala, o centro do desenho traçado tão cuidadosamente com as velas sem que ninguém notasse suas intenções. Sentou-se, com as pernas cruzadas, numa posição de relaxamento assimilada de inúmeros livros obscuros e empoeirados, em grande parte indicados pelo Mago. Ele lhe contara tantas coisas naquela noite distante... muito mais do que admitiu aos outros, mas muito menos do que realmente precisava saber. Não importa. As lacunas foram mais do que preenchidas pelos seus próprios estudos. Acreditava estar pronto. Concentrando-se, alterou lentamente o ritmo da respiração, expulsando os pensamentos aleatórios. Tinha que assumir o controle da expansão que o ácido promovera em sua consciência. Entrara em ligação direta com as forças que habitavam aquela velha república. Precisava explorar essa ligação. Foi mais fácil do que pensara. Sentiu a mente entrando em contato com cada fresta, cada centímetro. Podia ver e sentir as presenças. Havia vida ali? Que tipo de vida? Normando olhou ao redor, seguindo os seres que agora eram perfeitamente visíveis. As paredes pulsavam num ritmo atordoante, entidades sobressaiam da massa mutante de pichações, formas que nem mesmo a imaginação do mais desvairado dos loucos poderia conceber, flutuando no ar como peixes num aquário, como protozoários numa gota de sangue. Viu espectros de figuras humanas movimentando-se cegamente pelo espaço, como atores numa peça. Viu um rapaz de físico forte caminhar cambaleante, apertando o cano de um revolver na têmpora. Viu uma forma bizarra, protoplasmática, cheia de finos tentáculos, flutuar abrindo caminho. Viu uma garota chorando sentada num canto escuro, limpando as lágrimas com uma das mãos e acariciando os pêlos pubianos com a outra. Viu um garoto franzino tropeçar nas pernas estendidas da moça ao ser atingido pelo murro de um grandalhão visivelmente alcoolizado. O rapaz grita e implora com a boca cheia de sangue e dentes quebrados, perdendo o equilíbrio e caindo sobre uma criatura de forma indescritível que fecha seus pseudópodes sobre ele e submerge no interior da parede. Sim, Normando podia ver tudo isso, imagens sobrepostas como se todas as pessoas que já moraram ali agora tivessem que compartilhar o mesmo teto.

Mas não eram pessoas de verdade, é claro. O Mago lhe falou sobre aquilo. Não eram nem mesmo fantasmas. Eram presenças. Resíduos. Impressões marcadas a ferro e sangue no tempo e no espaço, emoções violentas que tinham o poder de moldar a matéria que existia entre nosso mundo e outros. A substância da encruzilhada. O que não as tornava menos perigosas, muito pelo contrário.

Normando fechou os olhos. Sentidos como a visão não tinham utilidade ali. Meros sensores incapazes de ir além de converter estímulos em formas compreensíveis para a mente. Como a interface de um computador, que pode ser facilmente enganada por quem (ou o que) saiba como fazê-lo. Tinha de ir além dos sentidos, permitir que a própria mente atuasse como um sensor. Sim... estava acontecendo, podia sentir. Sabia tudo o que ocorria em toda a sobreloja, em cada cômodo... e além. Os limites do espaço físico já não eram mais facilmente identificáveis, a planta modificava-se continuamente em pequenos detalhes, as medidas variavam, a geometria não fazia sentido. Era fantástico... as presenças espalhavam-se por todos os cantos, todas com uma história para contar... atos de horror e violência... fogo... ódio... paixão... loucura... delírio... tudo girava, contorcia-se, rodopiava... Normando ria, Normando chorava, esbravejava, cantava, ele não tinha ideia de que seria assim... não tinha a menor ideia...

Havia mais!

Havia outros tipos de presenças ali, pairando pouco além dos limites de sua percepção. Não eram espectros de seres humanos vivos ou mortos, não eram as bizarras criaturas sem mente que habitavam a encruzilhada reagindo aos estímulos do mundo físico. Eram algo mais. Não vivos, mas tampouco mortos, no sentido biológico do termo. Normando sentiu o sangue gelar, numa mistura agridoce de medo e fascínio. Eram estrangeiros, alienígenas no sentido mais extremo possível, entidades que habitavam o outro lado, criaturas dos mundos do além. Havia muitos... e mais deles se aproximavam. Claro, seu território havia sido invadido. Normando sabia o que eram. Não tanto por seus estudos, não tanto pelas conversas com o Mago, mas por instinto. Assim como por instinto os homens, a muito, deram nome a esses seres sem nunca compreender realmente o que haviam batizado.

E foi então que, no mesmo instante em que sentiu a presença dos demônios, Normando ouviu Luana gritar.



5. PEOPLE ARE STRANGE

Luana nunca tomara conhecimento de qualquer coisa que extrapolasse a esfera do prosaico. Não havia espaço em sua vida para especulações filosóficas, quanto mais metafísicas. O máximo de misticismo que se permitia era uma vaga crença na igreja católica e algumas supertições pouco significativas. Era uma garota moderna, impulsiva, que se sentiria desenraizada se fizesse qualquer coisa que a deslocasse dos caminhos habituais da maior parte de seus contemporâneos. Seria lícito dizer que Luana estava satisfeita em encaixar-se na maior parte das estatísticas, se alguma vez tivesse se dado conta disso.

Presenças, espectros, magia, dimensões, planos de existência, níveis de realidade, todos esses termos tão caros a Normando não constituíam sequer notas de rodapé no imaginário de Luana. Sua mente era tão simples, tão frágil, como poderia lidar com o que viu quando entrou sozinha naquele quarto escuro?

Nesse contexto, gritar foi um bom começo.

Tinha corrido, sem pensar em nada a não ser fugir, era a única coisa que fazia sentido. A expressão nos olhos de Camile queimava em sua lembrança. Não queria pensar naqueles olhos, não queria lembrar dos lábios dela, do gosto do sangue, do...

Não! Estava pensando demais! Não é bom! Sair... se saísse daquele lugar tudo voltaria ao normal. Sua cabeça estava estranha, mas ela estava certa de que iria melhorar, bastava sair... só isso... bastava sair e tudo ficaria bem como sempre.

Quando colocou o pé descalço no primeiro degrau da escada foi que se deu conta de que estava nua.

Apoiou-se no corrimão, trêmula, soluçando. Onde estava com a cabeça? Ia sair nas ruas, de madrugada, assim?

Sozinha no hall escuro, Luana chorou como há muito tempo não chorava. Uma criança assustada, ansiando por um adulto sábio e forte para lhe indicar o caminho. Tinha ido longe demais dessa vez. Todos tinham ido longe demais. Aquele lugar... era ruim... fazia coisas com a mente dela. Assombrado... não foi isso que Normando disse?

Pouco a pouco acalmou-se. Não podia ficar ali pra sempre. Tinha que reunir suas forças e voltar para pegar suas roupas. Mas não... não queria voltar! Não queria encarar Camile. Deus, como isso pôde acontecer?

Ouviu um ruído baixo à sua esquerda. Um gemido abafado. Estremeceu, tomada por uma aflição repentina. O som vinha dos quartos cujas janelas eram visíveis da rua. Quando entraram, as duas portas estavam fechadas. Lembrava bem disso.

Agora, a porta da esquerda estava aberta.

Escancarada.

Sentiu tontura, teve de se apoiar na parede para não cair. Podia ver o interior do quarto, iluminado pelos relâmpagos. Estava vazio, exceto por uma cama velha sem lençóis.

Novamente pôde ouvir sons vindos do interior do quarto. Gemidos, sem dúvida. Gemidos de prazer, ou de dor, ou ambos.

Deveria estar com medo, normalmente estaria, mas não sentia nada agora, a não ser uma estranha fascinação. Algo estava acontecendo lá dentro. Algo secreto. O assovio do vento através das fendas da janela entaipada soava como um convite. Mais do que isso, uma convocação. Algo acontecia naquele quarto e ela queria ver. Oh, sim, queria sim. Queria muito ver.

Luana aproximou-se da porta. A cada passo uma pequena parte de sua mente gritava mais e mais de puro terror, mas os gemidos eram altos o bastante para abafar os gritos. Havia prazer ali. E dor. Era um lugar secreto, um lugar de coisas proibidas. Normando gostaria disso, não gostaria?

Parou por um instante sob o batente, deu um passo e entrou.

A cama não estava vazia. Decerto nunca esteve. Havia duas pessoas sobre ela: um homem e uma mulher. A mulher estava de quatro, com o rosto voltado para os pés da cama, na direção de Luana, mordendo o forro do colchão como que para abafar os gemidos. O homem, de joelhos, segurava-a firme e penetrava vorazmente, ininterruptamente, com violência. Rosnava como um bicho. Era feio, bruto, cabelo encaracolado crescendo desordenadamente, barba por fazer, corpo forte, mas desproporcional, fora de forma, peludo demais. O suor o cobria por inteiro, fazendo-o resplandecer na penumbra. A mulher não era feia, mas tampouco bela. Rosto comum, nariz um pouco adunco, olhos juntos demais, cabelos compridos castanhos, mechas jogadas sobre as faces. Suas mãos... suas mãos estavam amarradas aos batentes da cama! Era um estupro! Luana estava assistindo um estupro. A mulher chorava de dor, mas havia algo de prazeroso em suas súplicas, algo que excitava o homem ainda mais. Era bom! Era muito bom.

Ele a machucava. Suas unhas enterravam-se nas costas dela, rasgando, arrancando sangue. Ele ria. Babava. Não mais do que um animal. A mulher ergueu um pouco a cabeça e seus olhos encontraram os de Luana. Havia algo de tolo, quase risível, em sua expressão. Dor e descrença. Tais coisas nunca acontecem conosco, não é? Só com os outros? Fascinada, Luana sequer pensava em parar de olhar. Estava hipnotizada, encantada. Aqueles olhos tinham-lhe encantado.

Um sorriso, repentinamente, iluminou o rosto da mulher. Lambeu os lábios voluptuosamente. A presença de Luana, observando tudo, parecia excita-la. De vítima passiva tornou-se provocante. O corpo começou a mover-se seguindo o ritmo imposto pelo homem. Luana ergueu os olhos e viu que ele também a encarava. Seu sorriso era horrível. Obsceno. Grande demais, desproporcional. Luana desviou os olhos dele para a moça e viu que o sorriso dela também era imenso e crescia diante de seus olhos. Estendia-se de uma orelha a outra. Voltou a olhar para o homem. Sua boca enorme estava aberta, tão grande que parecia que a metade de cima da cabeça ia se desprender da de baixo. Uma língua longa e achatada como a de um cão movia-se de um lado para o outro. Ele abaixou-se, emitindo um riso gutural borbulhando do fundo da garganta, e lambeu as feridas nas costas da moça. Ela gemeu, mas agora era claramente um gemido de puro prazer. Seus olhos começaram a emitir uma luminosidade azulada. Sua língua saltou da boca, desenrolando-se. Ela respirava ofegante como um cachorro. O homem ergueu-se, voltando a encarar Luana. Seus olhos também brilhavam na penumbra, porém com uma cor vermelho sangue.

Paralisada e muda, Luana assistiu a uma lenta e inacreditável mutação. Os corpos do homem e da mulher começaram a derreter-se e deformar-se grotescamente. Cada traço de humanidade corrompendo-se como que sob o efeito de uma força implacável. Seus corpos misturaram-se até que Luana não sabia mais dizer onde a mulher terminava e o homem começava. Por fim, uma aberração siamesa contorcia-se em contrações espasmódicas sobre a cama, um enorme verme, em forma de “L”, com uma cabeça em cada extremidade, os olhos incandescentes fitando Luana. A coisa se ergueu na cama com as patas grosseiras que até a pouco eram pernas e braços humanos. A cabeça que ficava na extremidade traseira continuava a emitir a risada rouca, enquanto a outra começou a falar numa língua estranha, sibilante, conversando com Luana como se fossem velhas amigas.

Luana não se moveu. Nem mesmo quando membros vagamente humanos romperam suas amarras e deram um passo em sua direção. Na verdade, não foi nem mesmo o toque das mãos dela em suas pernas que a fez gritar. Não. Nada disso.

O que a fez gritar, foi compreender o significado do brilho fantasmagórico nos olhos da coisa:

Desejo. Simplesmente desejo.



6. STRANGE DAYS

O tempo não fazia sentido.

Camile acabara compreendendo isso, mesmo vagamente. Por alguma estranha razão não parava de pensar nos peixes do aquário que tinha quando criança. Quase podia vê-los, nadando serenamente através de seu pequeno universo aquático. Camile costumava imaginar o que os pequeninos enxergavam com seus olhinhos eternamente vidrados numa cômica expressão de vazio. Será que podiam ver o que havia além das fronteiras de vidro de seu mundo? Será que viam os gigantescos rostos que os observavam com uma curiosidade alienígena e às descomunais mãos que lhes ofereciam alimento? Será que eles a adoravam como se fosse uma deusa?

Um grito horrendo arrancou-a de seu refúgio mental. Era a voz de Cana, vinda de algum lugar que não conseguia discernir. Estremeceu e o reflexo a fez saltar de cócoras, os músculos em alerta. Sua mente clareou de forma repentina e atordoante. Pelo menos na medida do possível num lugar onde a própria realidade não era clara. O que estava acontecendo? Por que tudo estava tão confuso? Por que as paredes não param no lugar?

Normando estava sentado no centro do sala, de pernas cruzadas como um iogue, mãos largadas sobre os joelhos, palmas voltadas para frente, totalmente nu. Nada mais do que um vulto mal iluminado pelo círculo de velas. Uma sombra entre sombras. Olhos perdidos no vazio. Não parecia nota-la, sequer reagiu ao grito de Cana. Parecia sequer ter ouvido.

Camile ergueu-se, lentamente, sem tirar os olhos de Normando. Atrás dele coisas estranhas moviam-se no escuro, cercando-o, celebrando-o, coisas que Camile não conseguia distinguir, mas podia adivinhar suas formas e não gostava nem um pouco.

De algum modo sabia: aquilo não era apenas uma viagem de LSD. Era mais. Muito mais.

Precisava voltar.

Apalpou a coxa onde a serpente picara. A pontada de dor demonstrava que a ferida ainda estava lá. Era real. Tinha de ser. Felizmente, tirando o torpor da cabeça, não sentia nenhum sintoma de envenenamento.

Claro que não. Luana sugara o veneno...

Não!!!

Isso não fazia o menor sentido! Nada ali fazia sentido! Tinha que sair antes que perdesse tudo o que restava de sua capacidade de raciocínio. Ir atrás de Luana enquanto podia. Normando e Cana que se virassem com esse lugar e que fossem pro inferno, os dois!

Súbito, outro grito. Só que agora a voz era de Luana.

– Vá ajuda-la!

Camile girou sobre os calcanhares. Normando olhava diretamente para ela. O som de sua voz assustou-a ainda mais do que o grito da irmã. Não podia ver sua expressão, mas notou uma preocupação legítima no tom de sua voz. A medida que falava, as chamas das velas aumentavam de intensidade e, pela primeira vez, Camile percebeu um padrão. Não havia notado antes, mas agora, da posição em que estava, podia ver que Normando não colocara as velas de forma tão aleatória como parecia. Era um desenho, um símbolo, e Normando estava sentado exatamente no centro dele.

– O que está esperando? Ela está em perigo! Vá ajuda-la!

Por que ele não demonstrou a mesma preocupação quando Cana gritou? Não se importava ou, por algum motivo, não ouvira?

– Vá!

Desta vez Camile obedeceu. Correu através do corredor escuro e do que quer que a aguardava depois dele. Mas não antes de reconhecer o desenho que as velas formavam. Já havia visto aquele símbolo antes, embora não o levasse a sério. Era um pentagrama.



Normando realmente não ouviu o grito de Cana. Desde que captara a presença de um demônio poderoso no banheiro não conseguiu mais sentir a presença do amigo e estava tão confiante de suas novas percepções que não imaginou que aquele poderia ser um motivo de preocupação. Considerou, simplesmente, que Cana devia estar inconsciente... ou morto. Se fosse o caso teria de conviver com isso, mas estava certo que superaria. Porém, quando Luana gritou ele ouviu muito bem. Uma experiência forte, forte o bastante para lhe tirar a concentração por breves instantes. Percebeu, até com certa surpresa, que se importava com ela. Afinal, lhe proporcionara prazer e a energia inicial para que conseguisse chegar aonde chegou. Infelizmente, não acreditava que Camile poderia fazer alguma coisa para ajuda-la. A essa altura ele próprio nada podia fazer, mas... quem sabe? Foi pena o círculo ter quebrado. Não fosse isso poderiam sair todos dali ilesos. Estariam todos seguros no interior do símbolo de proteção. Infelizmente, não se pode pensar em tudo.

De qualquer modo, não podia se permitir mais interrupções e distrações. Estava quase lá, as barreiras caiam uma a uma e a viagem tornava-se mais perigosa a cada minuto. Sua mente expandiu-se a tal ponto que seu corpo físico mal podia conte-la. Uma falha mais grave de concentração e sua consciência se perderia nos abismos entre os mundos. Isso era a única coisa de que tinha medo. Não se importava com os demônios famintos aproximando-se. Não podiam toca-lo. Tornara aquela velha sala arruinada seu local de poder e as presenças não podiam machuca-lo, estava protegido pelo poder de sua própria magia. Iria invadir os mundos do além e roubar seus segredos sem que nada pudesse detê-lo. Ele próprio tornara-se uma encruzilhada: corpo, mente e alma, a perfeita união, agora era verdadeiramente um Mago e isso era só o começo. Os segredos do universo estavam ao seu alcance.

Foi então que uma forma indefinida destacou-se da miríade de entidades fervilhando ao seu redor e caminhou em sua direção, lentamente tomando forma até assumir a aparência de um homem alto e magro. Mais do que magro, esquálido, com a pele lívida como a de um cadáver e feições envelhecidas, porém com um brilho de inesgotável astúcia nos olhos negros. Normando levou alguns segundos para reconhece-lo:

– Você!



7. LOVE ME TWO TIMES

Certa vez, durante um passeio numa caverna com um grupo de amigos estudantes de Geologia, Camile se viu afastada dos outros ao entrar por uma passagem estreita. Nunca lhe ocorreu que poderia ter um ataque de claustrofobia, nunca tinha tido nenhum problema assim em toda a sua vida, mas ali, naquele lugar escuro e úmido, eternamente isolado do Sol, onde escuridão não era uma simples ausência de luz, mas algo denso e quase palpável, Camile teve medo. Estava sem lanterna, apenas os geólogos tinham sido prevenidos o bastante e ela não passava de uma “urbanóide” deixada para trás. Seu lado racional dizia que não havia nada com que se preocupar, a caverna não era tão grande e os outros não podiam ter se afastado muito, logo dariam pela falta dela. Mas essa voz tranquilizadora era por demais débil para calar os gritos estridentes do seu lado irracional, primitivo, guiado unicamente pelo instinto básico de autopreservação. Ela estendia os braços para todas as direções tentando encontrar algo sólido para se guiar, mas suas mãos tocavam apenas o vazio. Estava cega num mundo de trevas intermináveis. A única coisa que continha seu medo era o senso de ridículo: não iria fazer papel de tola tendo um ataque de histeria na frente de todo mundo. Mas o limite era tênue e foi logo rompido quando Camile sentiu todo o seu corpo ser envolvido por algo cuja textura era inconfundível: uma enorme teia de aranha.

Agora, tanto tempo depois, a situação causava-lhe uma sensação incômoda de déja vu. Novamente estava perdida num lugar de trevas absolutas estendendo-se ao infinito. Novamente sentia a textura de algo semelhante a teias de aranha contra a pele. Se seus processos mentais não estivessem tão alterados pelo efeito químico do ácido, Camile se entregaria ao pânico tão facilmente quanto naquele dia. Mas, desta vez, tanto a sua razão quanto o seu instinto estavam funcionando de maneira ilógica e Camile compreendeu que não estava mais atravessando um simples corredor. Era um portal. Sua desorientação, a sensação de coisas estranhas roçando sua pele, era resultado de sua travessia para outro plano, talvez outra dimensão. Um outro mundo, como Normando sugeriu ser possível?

Sentia medo, muito medo. Mas estava longe do tipo de pânico que sentira na caverna. Naquele dia, por algum motivo, não conseguiu gritar. Sua voz ficou presa na garganta e o único som que pôde emitir foi um resfolegar longo e abafado, renovado a cada nova inspiração. Por fim viu uma luz se aproximando, uma lanterna. Logo Camile reconheceu Luana. Ao ver o estado em que a irmã se encontrava Luana a abraçou e ficou com ela até que se acalmasse. Depois seguiram adiante até encontrarem os outros e não houve mais incidentes. Camile ficou com um pouco de pena da irmã. Era visível que ela se sentia culpada por tê-la feito passar por aquilo. Luana sempre gostou de se meter em aventuras e convencera a pacata Camile a acompanha-la no passeio. Naquela noite, na barraca que dividiam, prometeu nunca mais arrasta-la para nenhum lugar escuro e perigoso.

Mas promessas são feitas para serem esquecidas. E lá estavam elas de novo perdidas num lugar escuro. Mas agora era sua vez de levar a irmã de volta para a luz.

Camile teve a nítida impressão de que a escuridão rompia-se à sua passagem como se fosse mesmo uma enorme teia de aranha. Um passo a frente e estava no hall, idêntico a quando entrou horas atrás. Luana estava lá, deitada de bruços no chão, gritando sem parar, pois não estava sozinha.

Um gigantesco verme projetava-se do interior de um dos quartos. Um verme com duas cabeças e inúmeros tentáculos recobertos de limo. Sob a tênue luz dos relâmpagos o corpo da criatura resplandecia em asquerosa umidade como se sua pele não pudesse conter por muito tempo os fluidos em seu interior, instável, repleta de pseudópodes, olhos, bocas e outros detalhes repugnantes que apareciam e desapareciam o tempo todo. As únicas coisas constantes eram as cabeças e duas estranhas garras com as quais a coisa agarrava Luana. As pernas e os quadris dela estavam ocultos embaixo do corpo horrendo e o monstro fazia movimentos ritmados e bruscos sobre ela... para frente e para trás...

Penetrando-a.

Novamente apenas o efeito do LSD pôde permitir que Camile agisse sem enlouquecer diante daquela visão. Num ímpeto, agarrou as mãos de Luana e começou a puxa-la. A coisa emitiu algo semelhante a um urro gorgolejante de ódio e pareceu elevar-se como uma onda de imundice ameaçando engolir ambas as irmãs. Camile ignorou e continuou a puxar, mas a coisa não estava disposta a abrir mão de sua presa tão facilmente. Camile fincou os pés descalços o mais firme que podia no assoalho de madeira e puxou até sentir os tendões dos braços vibrando em protesto, mas não ousava parar. As cabeças do verme faziam caretas medonhas e escarravam uma bílis esverdeada em seu rosto forçando-a a fechar os olhos. Sentia aquilo escorrendo pelo seu pescoço e seios, queimando a pele por onde passava. Agora as duas irmãs gritavam juntas e aquela batalha desesperada parecia perdida. Se aquilo era um pesadelo, Camile só podia esperar que acordasse logo, antes que seus braços fossem arrancados. Os pés começaram a deslizar lentamente sobre o assoalho e não havia nada que ela pudesse fazer. Absolutamente nada.

– Deus!!!! Me ajude!!!! – gritou.

– Deus não pode ajuda-la aqui – disse uma das cabeças do verme.

– Eu sou Deus! – disse a outra cabeça.

Os pés de Camile falsearam e a coisa puxou-as para o interior do quarto.



8. GHOST SONG

– Confesso que estou impressionado, meu caro Normando. Nunca imaginei que você chegaria tão longe com tão pouco. Uma grande surpresa, sem dúvida – disse o homem alto, ajoelhando-se diante de Normando, que o encarava estupefato. Não sabia o que dizer ou como reagir. Estava completamente sem ação. Pela primeira vez, naquela noite, via-se incapaz de planejar seu próximo passo. Julgou estar preparado pra tudo, até para o inesperado, mas agora... sentia-se apalermado, de um modo que apenas alguém acostumado a sempre ter o controle de tudo poderia se sentir.

O homem alto riu. Uma gargalhada ecoante e divertida. Soava como noites intermináveis de alegria, canções e embriaguez, descontrole de sentidos, delírios, tormentos e a dor de esperanças perdidas. O som trouxe lembranças à Normando, ajudando-o a recompor-se. Com um suspiro tímido, sorriu para o Mago e disse:

– É bom ver o senhor de novo.

– Eu digo o mesmo, filho – disse o Mago após recuperar o fôlego.

– Eu consegui, não é? – disse Normando – Eu ultrapassei o limiar! Alcancei o senhor! Eu fiz, não fiz?

O sorriso do velho minguou e sumiu, sendo substituído por uma expressão grave e paternal:

– Não, filho. Ainda está muito longe disso. Muito mais do que imagina. Afinal de contas o que pretendia com tudo isso?

Normando hesitou. Não esperava essa pergunta. Não fazia sentido.

– Ora, eu... – engoliu em seco – ora, o senhor seria a última pessoa que eu imaginaria me perguntando isso. Logo o senhor, que sabe...

– Eu sei muitas coisas – interrompeu o Mago – Coisas que a maioria das pessoas sequer sonha, se é o que está tentando dizer. Mas não estou certo se sei o que você está tentando fazer aqui. Por isso, eu repito: o que você quer?

– Eu... – engasgou. Começava a sentir-se irritado. A irritação de um garoto sendo repreendido quando flagrado em meio a uma travessura – Eu queria romper o limite, eu... tentava... tentava entrar em sintonia com a encruzilhada, queria alcançar os outros mundos e ir além. O senhor entende isso, não entende? Atingir o inatingível, compreender o inconcebível...

– O inconcebível! Hum... – o Mago coçou a barba, voltando a sorrir – Muito interessante. Por que?

– Por que?! – exclamou Normando – Mas... eu não estou entendendo? Por que está me perguntando essas coisas? Como assim, por que?

– É uma pergunta simples, meu caro – disse o Mago, voltando a rir – Será possível que não sabe me dizer porque quer atingir o inatingível?

– Eu... – Normando riu, sentindo o rosto ruborizar – Droga, eu... acho que sua aparição me pegou de surpresa... Se qualquer pessoa me perguntasse isso eu saberia exatamente o que responder, mas...

– Mas eu lhe deixo inseguro – completou o Mago. Normando hesitou, mas acabou balançando a cabeça afirmativamente – Por que?

Normando não respondeu.

– Será porque eu sei muito mais do que você? – perguntou o Mago.

Novamente, nenhuma resposta.

– Será porque me considera muito... superior?

– Talvez...

– Você tem medo que eu saque se você falar alguma besteira?

Normando fechou os dentes com força e o encarou intensamente.

– Ei! Calma! – zombou o Mago – Não precisa fazer essa cara. Vamos fazer o seguinte: faça de conta que sou o Cana e explique pra mim por que fez tudo isso.

Normando começou a suar frio, sem saber exatamente porque.

– Eu... já havia experimentado tudo... nada me satisfazia, eu... precisava ir além... eu queria... queria...

Os olhos do Mago o fitavam, frios.

– ...eu queria fazer o que o senhor fez – concluiu Normando.

– Como sabe o que eu queria fazer? – perguntou o Mago. Outra vez Normando ficou sem palavras – Eu nunca lhe disse o que pretendia fazer. Você fez suposições por sua própria conta. Admito que se saiu muito bem até aqui, mas não sabe mais do que a ponta do iceberg. Mesmo assim, para um autodidata, você se saiu muito bem mesmo, mas ainda está longe de conhecer a verdadeira Magia.

– Eu...

– Você celebrou um ritual deveras complicado com habilidade inquestionável. Usou seus parceiros como fonte de energia sem que eles tivessem conhecimento, podendo molda-los da maneira que precisava para suprir suas próprias deficiências. Usou ritos e elementos de diversas fontes com talento excepcional fazendo tudo convergir de acordo com seu objetivo. Você foi muito mais longe do que a maioria dos iniciados jamais sonhou em chegar, muito menos um pobre drogado como você. Por tudo isso, não posso deixar de parabeniza-lo. Mas... falta-lhe o essencial.

– Que quer dizer? O que está faltando?

– O porquê.

– Mas...

– Eu sei! Eu sei que você deve ter dúzias de porquês e de justificativas que são suficientes para você, mas falta-lhe “o” porquê. Você não é um Mago, caro Normando. Não passa de um mero cientista, como tantos outros, sempre preocupados com aquilo que “podem” ou “querem” fazer, para se preocuparem com o “porquê”. E como todo cientista continua a anos-luz da essência do que busca conhecer.

– Eu... não compreendo o que quer dizer...

– Claro que não. É assim com todos os cientistas, meu caro Normando. Estão tão preocupados em conhecer coisas, experimentar coisas e achar respostas... que jamais chegam nem perto de compreender coisa alguma.

Silêncio.

– Magia – continuou o Mago – é muito mais do que fórmulas, encantamentos, rituais ou poderes ocultos, que podem ser aprendidos e utilizados ao seu bel prazer. Magia é o supremo conhecimento da vida, da natureza, do universo e de seu papel nele. É a suprema compreensão. O supremo desafio. Um modo de falar com o universo com palavras que ele não pode ignorar. Você acha que compreende a Magia? Como, se nem ao menos se compreende? Se quer encarar o abismo, Normando, deveria olhar para dentro de si mesmo.

– Pro inferno com você – gritou Normando, deixando explodir toda a sua raiva – Diz que não compreendo a Magia? Bom, eu aprendi o bastante pra chegar aonde cheguei. Estou aqui, não estou? E você? Quem é você pra me julgar? Um Mago que virava as noites nos botecos de pior categoria, na companhia de gente como eu! Como eu, está ouvindo! Tudo o que consegui foi graças às coisas que você me contou. Tudo o que fiz foi seguir os seus passos. Se eu não entendo nada, o que você entende? Porra nenhuma! Só está falando merda!

– Ah! – exclamou o Mago, parecendo se divertir com a situação – agora está tentando me responsabilizar. É como eu disse. Um cientista. Apoiando-se nos ombros de gigantes, seguindo os passos do mestre sem nunca se perguntar se o mestre tinha mesmo razão. Achando que pensa por si mesmo, mas, na verdade, incapaz de dar um passo se os ensinamentos e propósitos do mestre forem colocados em dúvida. Assim pode ficar totalmente à vontade para cometer bobagens, desculpando-se com um “o mestre assim dizia”, não importa quais bobagens fossem.

Normando chegou a abrir a boca, mas parou. Aquilo não podia estar acontecendo, devia ser algum truque dos demônios para acabar com ele. Mas não, não podia ser, estava absolutamente certo da eficácia do círculo mágico, as presenças não podiam se aproximar. Mas será que não podiam mesmo? Agora não estava mais certo de seu controle sobre a situação. Dúvidas o assaltavam, dúvidas demais. Sentia sua força diminuir ao mesmo tempo que sua ansiedade aumentava.

– Não – murmurou, balançando a cabeça – Está querendo me confundir. Não sei porque, mas está. As coisas que me disse não eram bobagens. Tudo o que aprendi foi consequência daquela noite. Foi o que me norteou... As coisas que me contou me trouxeram até aqui. Se fosse besteira eu não estaria aqui.

– Fascinante! – disse o Mago – então nunca lhe passou pela cabeça que eu poderia ter inventado todo aquele papo de Magia pra te convencer a ir pra cama comigo?

Silêncio.

– Bom – continuou o Mago – Com ou sem Magia, aquela foi uma noite inesquecível.

Suor frio escorria pelo corpo de Normando. Nos seus olhos não havia mais o menor sinal de confiança ou frieza, apenas confusão... e medo.

– Quem você pensa que é, meu caro Normando? – havia zombaria mesclada a piedade em seu tom de voz – Jim Morrison? Você andou lendo William Burroughs demais. Ou talvez Carlos Castañeda! Acaso pensou que eu seria seu Don Juan?

– Não... não pode ser verdade... está mentindo... eu estou aqui! Eu cheguei até aqui! Eu consegui! E você... você também conseguiu! Você está aqui, comigo!

– Eu não estou aqui – disse o Mago.

Foi então que Normando se deu conta de que não havia ninguém ali. Estava falando sozinho na escuridão.



9. TOUCH ME

Tudo aconteceu tão rápido que, quando Camile deu por si, estava jogada sobre o assoalho imundo, ainda segurando os braços de Luana como se sua vida dependesse disso. Sentiu um deslocamento de ar seguido pelo som do verme arrastando-se até desaparecer na escuridão. Encolheu-se de encontro à irmã, estremecendo ao ouvir a porta do quarto fechando sozinha com um baque surdo.

Camile olhava para todos os lados, desesperada, acompanhando os sons do verme movimentando-se pelo quarto. Pareciam vir de todas as direções ao mesmo tempo.

Luana começou a chorar como uma criança. Camile fez o possível para esquecer o próprio medo e abraçou-a com força. Depois de minutos intermináveis, pôde perceber uma luminosidade estranha, sem fonte definida. Conseguia enxergar Luana claramente, bem como o próprio corpo, mas o restante do ambiente continuava imerso na escuridão, como se as trevas ali não fossem meramente uma ausência de luz, mas sim algo substancial, palpável, um manto negro que as envolvia e isolava.

E talvez fosse mesmo, talvez não estivessem num quarto fechado afinal. Poderia ser alguma outra coisa, outra dimensão, outro mundo...

O estômago do verme...?

Não... não devia pensar, mas agir. Tentou falar com Luana, mas era inútil, o rosto dela parecia vazio, olhava para Camile mas não dava sinais de realmente vê-la, um filete de saliva escorria do canto da boca. Camile sacudiu-a, chamou-a pelo nome, mas ela não reagia. Apenas movia a cabeça de um lado para o outro, lentamente, gemendo baixinho.

– Não, Lu – disse Camile, em meio às lágrimas – Você tem que ficar comigo, eu preciso de você. Fale comigo, por favor... por favor...

Um sibilar horrendo às suas costas fez Camile gritar esperando ser atacada, mas nada aconteceu. Tremendo, abraçou Luana, escondendo o rosto entre os cabelos da irmã. Talvez por reflexo, Luana correspondeu ao abraço e ficaram ali, nuas, indefesas, encolhidas e agarradas uma a outra enquanto coisas invisíveis moviam-se sorrateiras ao redor, sussurrando obscenidades, ameaçando, zombando, fazendo propostas com vozes grotescas e inumanas. Dedos úmidos e frios roçavam a pele de Camile, que nada podia fazer a não ser chorar e implorar para que parassem, rezando a todos os santos e deuses de que conseguia lembrar.

– Pobrezinhas... pobrezinhas... – diziam as vozes – putinhas bonitas... mal sabem onde estão... medo... medo... muito medo... molhadas... com muito medo... devorar... rasgar de alto a baixo... devemos?... não devemos?... vou comer vocês... choram por que?... nada tão mal... por que tanto medo?... acabando... logo... tudo acabando...

– Por favor... murmurava Camile – Por favor, deixa a gente em paz... por favor... por favor...

Uma voz, mais clara do que as outras, elevou-se:

– Ah... sei do que tem mais medo. Sei que não quer ficar sozinha. Lá dentro, um único grande pedido: “Por favor... pooooor favooooooor... não quero ficar sozinha, não tire minha irmã de mim, não me separe de minha irmã”.

Uma pausa.

– Não se preocupe, pequenina. Posso garantir a você... que isso nunca vai acontecer.

Silêncio. Camile sentiu um inesperado e breve ardor no baixo ventre. Um medo súbito, uma premonição mórbida e irracional a assaltou, levando-a a, delicadamente, desvencilhar-se dos braços de Luana e afastar o corpo dela do seu, apenas para descobrir que um grotesco apêndice havia nascido entre as duas, um bizarro pedaço de carne brotando de seus corpos, na região entre o umbigo e a pélvis, unindo-as como irmãs siamesas.

Foi a última coisa que Camile viu antes de desmaiar.



10. THE CELEBRATION OF THE LIZARD

Um contratempo. Nada mais do que um contratempo que seria remediado. Normando nunca havia aberto mão de nada do que quisesse em toda a sua vida e essa não seria a primeira vez.

Sua cabeça latejava. Havia perdido o controle. Tinha que recuperar a concentração antes que perdesse totalmente o contato com a encruzilhada. Tinha ido tão longe, não podia voltar atrás agora. Não sabia se um dia conseguiria repetir toda aquela experiência.

Mas esse era o problema: não saber. Dúvidas demais torturavam sua mente, atrapalhavam sua concentração, sua autoconfiança estava abalada, como poderia re-assumir o controle assim?

E se nada daquilo fosse o que pensava? E se tudo fosse uma fantasia de sua cabeça entupida de LSD? Não. Não podia ser. Até alguns minutos estava absolutamente certo do que fazia e do que estava acontecendo. Como pôde permitir-se tal quebra de fé. Precisava recuperar a confiança perdida ou nunca mais conseguiria alcançar a encruzilhada.

Normando cerrou os olhos e escondeu o rosto com as mãos. Tinha que ignorar tudo ao seu redor. Mergulhar nas profundezas de sua própria mente e recuperar a concentração perdida. Precisava ignorar tudo. Ignorar... ignorar as vozes da legião de demônios famintos aproximando-se cada vez mais rápido – era seu nome que chamavam? – Não!!! Ignorar... ignorar tudo... ignorar as criaturas sem mente que habitam a encruzilhada acumulando-se às centenas no ar sobre sua cabeça em ansiosa antecipação. Ignorar as sombras dos mortos que cessam a repetição de seus padrões de ódio e violência para acercarem-se ao seu redor, com mórbido interesse. Ignorar o regozijo dos incontáveis seres além de qualquer descrição celebrando uma nova tragédia prestes a acontecer. Ignorar o som de dobradiças enferrujadas por anos de abandono, rangendo como num antiquado filme de terror. Ignorar o som de passos de pés descalços cada vez mais próximos. Ignorar uma respiração viva, gerada por alguém parado bem a sua frente.

“Nada tenho a temer. O círculo me protege de tudo que venha do outro lado. Nada tenho a temer. Nada tenho a temer. Nada tenho a temer. Nada...”

Deixou as mãos caírem sobre as coxas. Abriu os olhos, sem pressa. Não havia motivo para pressa. Normando sabia: logo tudo seria consumado. Ergueu o rosto... e o viu.

Cana estava ali, totalmente nu, o rosto branco contrastando com os lábios vermelhos repuxados num enorme sorriso que mais parecia um esgar. A respiração soando pesada e entrecortada, o coração bombeando sangue e adrenalina suficientes para que as veias saltassem, inchadas, como se estivessem prestes a se romper, o pênis ereto denunciando a crescente excitação, o corpo musculoso repleto de tatuagens fazendo-o parecer um sacerdote primitivo de alguma mitologia pagã tomado por espíritos maus.

Tomado... por...

Não houve tempo para reação. Como um réptil dando o bote, os braços de Cana saltaram agarrando Normando, forçando-o, violentamente, a ficar de pé. “Cana, meu irmão, o que está fazendo?” gaguejou ao mesmo tempo em que tentava, inutilmente, afrouxar as mãos que esmagavam seus ombros, mas Cana não estava disposto a ouvir, se é que ainda podia ouvir qualquer coisa. Seu rosto era como uma máscara de mármore, o macabro sorriso não se alterava, os braços pareciam tenazes de aço ante os esforços que Normando fazia para se libertar. Apenas os olhos conservavam-se vivos, iluminados por uma chama enlouquecida de fúria suprema. Quase com desdém, Cana desferiu um potente murro, atingindo Normando bem no meio do rosto, arrancando sangue e lascas de dentes quebrados. Apenas por milagre não foi ao chão.

– Cara... por favor... – tentou dizer, mas a mandíbula deslocada não permitiu. Normando olhou para as mãos cobertas com o sangue que jorrava de sua boca e compreendeu que estava em perigo. Verdadeiro perigo. Cana ia mata-lo. Realmente ia. Isso não podia estar acontecendo. Não era justo. Não podia estar acontecendo com ele.

Desesperadamente tentou defender-se, mas sua tentativa de atingir Cana não foi mais do que patética. O medo e a dor deixaram-no descontrolado, incapaz de pensar na única coisa que poderia salva-lo: fugir. Cana, ao contrário, era a própria imagem da frieza. Saltou sobre Normando e prendeu seus braços num abraço esmagador, antes de atingir-lhe violentamente a virilha com o joelho. Normando urrou e gemeu como um animal apanhado numa armadilha. Pontos vermelhos espalhavam-se diante de seus olhos. Tudo o que queria agora era encolher-se no chão até o amanhecer, mas seu algoz não iria permitir.

Com um movimento brusco, Cana atirou-o contra a parede. O choque quase o fez perder os sentidos. Lágrimas queimavam seus olhos. Tossia e escarrava sangue, tentando de algum modo recuperar fôlego para reagir. Mas já não tinha nenhuma chance. Cana voltou a agarra-lo e jogou-o contra a outra parede. Desta vez Normando não pôde evitar bater a cabeça. Por um instante, tudo ficou negro, mas infelizmente apenas por um instante.

– Por favor – tentava dizer – por favor, cara...

Cana investiu contra ele, prensando-o na parede. Esmurrou-lhe o estômago e não permitiu que se curvasse, acentuando a crueldade. Os golpes começaram a suceder-se numa rapidez estonteante, enchendo o corpo de Normando com enormes hematomas e arranhões, além de costelas partidas. Debilmente, tentou proteger-se com os braços, mesmo sabendo que nada adiantaria. Cana segurou-lhe o antebraço esquerdo e mordeu. Os dentes cravaram profundamente na carne. Normando gritou e gritou até sentir a garganta queimar. Seus olhos expressavam todo o horror que sentia quando Cana arrancou um bom pedaço de carne... e engoliu.

Um som avassalador, como centenas de tambores tocando ao mesmo tempo, ecoava pelos abismos entre os mundos, vozes de legiões malditas de seres sem nome clamavam por sangue novo. Normando foi jogado no chão, gritando e chorando, tentando se arrastar para longe, mas não havia saída. Nunca houve, e apenas agora podia ver. Aquela era a culminação de toda a sua vida. Seu ponto de convergência. Mesmo agora não podia deixar de apreciar a ironia. Cana ajoelhou-se sobre ele e deu verdadeiramente início a demolição.

Sangue esguichava para todos os lados, escorrendo pelo assoalho e maculando o círculo mágico tão habilidosamente preparado. O som dos golpes de punhos poderosos misturava-se ao estraçalhar de ossos e o rasgar de pele. Normando sentia seu corpo sendo destroçado e esmagado como um inseto até que a própria dor já não significava mais nada. Babando como um animal selvagem, Cana entregava-se a seu trabalho de destruição sem diminuir o ritmo um instante sequer. Seus dedos rasgavam a carne flagelada como aguilhões embrutecidos, incapazes de qualquer sutileza.

Quase cego, paralisado, praticamente morto, porém ainda prisioneiro de sua própria carcaça arruinada, Normando sentiu um enorme punho penetrando através de seu peito, abrindo caminho por costelas que não tinham mais condições de oferecer nenhuma resistência. Sentiu os dedos cruéis fechando-se sobre um coração que ainda tentava desesperadamente continuar batendo, até ser arrancado com um som indescritível. A vida, teimosa, inspirada por um espírito inflexível, ainda manteve-se por alguns segundos, o bastante para que Normando visse Cana esmagar seu coração, deixando o sangue escorrer sobre seu corpo, como um sacrifício humano a antigos e famintos deuses.

E foi então que Normando soube que, no fim das contas, iria conhecer os segredos do cosmo esta noite. Estava na Encruzilhada dos Mundos... e seu espírito estava livre. Sentiu-se leve e sereno como nunca antes em sua vida. Não havia mais dúvidas. Nem incertezas. Agora compreendia perfeitamente a essência da Magia. Era tão irônico. Tudo tão irônico.

E assim, morreu.



EPÍLOGO: WHEN THE MUSIC’S OVER

O despertar veio paulatinamente. Os sentidos retornando aos poucos. Sentia a aspereza da madeira velha às suas costas, contrastando com a maciez da pele nua de um corpo encostado ao seu. Sentia a luz do Sol através de suas pálpebras e, por um momento, aquilo pareceu uma impossibilidade, como se aquela sensação prazerosa e corriqueira estivesse por demais distante, inacessível. Abriu os olhos, sem ousar mover nenhum outro músculo do corpo. Estava deitada de costas no chão e a primeira coisa que viu foi a janela, parcialmente entaipada, e os raios de Sol penetrando através das frestas. Camile podia ver o céu azul, tão belo que quase teve vontade de chorar.

Ainda sem se mover, deixou que os olhos vagassem, sem pressa. Tudo o que viu foram paredes pichadas, rachaduras, mofo e teias de aranha. Nenhum verme gigante, nenhuma sombra, nenhuma cobra, nada errado com ângulos e perspectivas. Tudo voltara ao normal. O efeito da droga tinha passado. Mal podia conter-se de tanto alívio. Era como acordar do pior pesadelo de sua vida.

Mas um resquício de medo ainda permanecia. Cautelosamente virou a cabeça. Luana estava deitada ao seu lado, ainda inconsciente, o rosto a alguns centímetros do seu, o braço jogado sobre seu corpo, logo abaixo dos seios. Tudo estava certo. Fora uma viagem ruim, só isso. Ficaram muito doidas, tiveram alucinações e fizeram algumas bobagens, mas estava certa de que, uma vez que tivessem dado o fora dali, seria muito simples pôr uma pedra sobre o assunto. Logo Luana iria acordar, Normando e Cana apareceriam e todos iriam cuidar de suas ressacas, ficariam sem se falar por algumas semanas e, quando voltassem a se encontrar, todos fingiriam que nada aconteceu e nunca mais tocariam no assunto. Com o tempo, aquela noite seria reduzida a uma lembrança distante, ou talvez nem mesmo isso. Nada que alguns anos de análise não resolvessem. Tudo estava bem. Muito bem.

Mas, ainda assim, estava com medo.

– Deus... Deus todo poderoso – murmurava – faça com que tenha sido um sonho. Por favor, não deixe que seja verdade.

Dizendo isso, Camile se ergueu e olhou para o próprio corpo... o apêndice ainda estava lá.

Fechou os olhos, prendendo a respiração. Contou até dez. Murmurou uma prece ou duas. Voltou a abrir os olhos. Continuava lá.

Seu rosto retraiu-se numa expressão de nojo. Não podia ser verdade, mas era. Estava ali. Ela poderia tocar se quisesse (e não queria). Um pedaço de carne ligando-a a Luana, brotando de seu ventre, na região entre o umbigo e os pêlos pubianos, e terminando no ventre de Luana, no mesmo local. Apenas trinta centímetros de comprimento separavam as duas irmãs. Camile já havia visto uma coisa como aquela em sites de curiosidades e aberrações. Aquilo era o que os médicos chamavam de apêndice xifóide. Não por acaso, os gêmeos que tinham a infelicidade de nascerem ligados por uma coisa dessas eram classificados como xifópagos.

Camile forçou-se a superar a repulsa e tocou a coisa. Era quente, viva. A vida que pulsava em seu corpo também pulsava ali, mesclada à vida da irmã. Era flexível, mas firme. Músculos, veias, tendões e sangue, estava tudo ali, não era uma mera pele alongada. Tentou puxa-lo, mas foi inútil, fazia parte dela, fazia parte de ambas e era tão real quanto elas próprias. Sua cabeça rodopiava loucamente. Era absurdo. Absurdo demais.

Sem saber se seria a coisa certa a fazer, mas não tendo muitas alternativas, Camile sacudiu Luana até acorda-la. Tentou falar com ela, mas Luana não a reconhecia, nem dava mostras de perceber o que havia acontecido. Camile conseguiu fazer com que sentasse e, com cuidado, afastou os cabelos da frente de seu rosto. Os olhos de Luana continuavam vazios, como se todo o seu ser tivesse se refugiado profundamente no interior de sua mente na tentativa de fugir da loucura. Talvez para sempre.

Gritou, chamando Normando. Não houve resposta. Gritou por Cana e teve o mesmo resultado. Teria que fazer alguma coisa sozinha. Num impulso, tentou ficar de pé, mas não conseguiu, pois Luana não se moveu. A sensação que teve quando o apêndice atingiu o limite de sua elasticidade e a puxou para baixo foi de uma aflição terrível. Não dor, mas um misto de asco e angústia. Respirou fundo para se controlar e ficou de cócoras, frente a frente com a irmã. Abraçou Luana e forçou-a a levantar-se junto com ela. Por um momento, sentiu o desespero ameaçando toma-la, pois Luana era um peso morto em seus braços, não iria aguentar manter-se em pé assim por muito tempo, quanto mais andar. Será que teria que arrastar a irmã pelo chão? “Deus! Meu Deus, eu quero acordar”.

Para seu alívio, Luana apoiou-se sobre os próprios pés, aparentemente lembrando-se que ainda tinha pernas, ficando imóvel diante de Camile, mexendo no cabelo com uma das mãos enquanto a outra pendia ao lado do corpo. Camile tentou não pensar em como ela parecia uma autista. Passou o braço direito atrás das costas dela, abraçando firme a sua cintura. Felizmente o apêndice era suficientemente flexível para permitir postarem-se lado a lado. Pelo menos não teriam que andar como caranguejos.

Com sua mão livre, Camile segurou a mão direita de Luana como um apoio adicional. Deu um passo à frente, tentando conduzi-la. A princípio, Luana não se moveu e quase perdeu o equilíbrio com o movimento de Camile. Esforçando-se para ser paciente, Camile apertou-a ainda mais junto de si, procurando faze-la acompanhar seus passos. As pernas de Luana tremiam como as de uma criança aprendendo a andar mas, uma vez dado o primeiro passo, o reflexo foi ativado e suas pernas firmaram-se. Passo a passo a seu andar tornou-se mais seguro e, assim, as irmãs caminharam até a porta do quarto.

Camile destrancou a porta que, de algum modo, estava trancada por dentro, e saíram para o hall. Estava exatamente igual a quando o viram pela primeira vez, exceto pelos detalhes que podiam ser notados à luz do dia. O corredor voltara a ser tão corriqueiro como sempre fora, nada de sombras palpáveis, perspectivas distorcidas ou monstros espreitando.

– Então por que essa coisa não some também? – murmurou, controlando-se para não chorar. Continuou caminhando, conduzindo Luana consigo, até chegarem na sala aonde tudo havia começado.

Foi impossível conter o grito.

Normando estava jogado como um farrapo humano entre os tocos de velas enegrecidas, as esteiras imundas e o garrafão de vinho abandonado. O corpo tão mutilado que Camile mal o reconheceu. Parecia não haver um centímetro de pele que não tivesse sido lacerado. Os intestinos foram arrancados e espalhavam-se ao seu redor. O coração esmagado tinha sido atirado contra a janela e repousava no batente, sob uma mancha de sangue que escorria pelo vidro. Havia sangue por toda parte e nem todo havia coagulado. Os olhos tinham sido vazados e a boca rasgada nas bordas, o que fazia com que parecesse sorrir, um sorriso horrendo de escárnio, como se fosse o guardião de um segredo que nunca poderia revelar.

Todos esses detalhes Camile absorveu em um único segundo e foi muito mais do que ainda conseguia suportar. Cega de horror, medo e repulsa, tudo o que podia pensar era em fugir dali. Tentou recuar e correr mas, em meio ao desespero, esqueceu Luana, que continuava apática. Sentiu o apêndice repuxar sua barriga e perdeu o equilíbrio, puxando a irmã consigo. Ambas acabaram no chão do corredor e Camile começou a chorar, pois no momento era a única coisa sensata a fazer.



Depois do que pareceu uma eternidade, constatou que, simplesmente, não tinha mais lágrimas para continuar e, de qualquer modo, de que adiantava? Por mais absurdo que tudo aquilo fosse uma coisa era certa: precisavam de ajuda. Fechou os olhos, respirando fundo repetidas vezes, tentando recuperar o autocontrole. Ter consciência do olhar apalermado da irmã não ajudava muito, mas era preciso abafar a irritação, Luana não tinha culpa nenhuma. O único que poderia ser responsabilizado estava além de qualquer vingança.

Logo que se sentiu melhor, voltou a repetir a complicada operação para ficar de pé. Foi mais fácil dessa vez, Luana reagia mais prontamente aos estímulos provocados por seus movimentos. Quando Camile abraçou sua cintura, Luana fez o mesmo, instintivamente. Camile cogitou apanhar as roupas abandonadas na sala, mas não! Não ia voltar lá de jeito nenhum. E, afinal, àquela altura, esse era um detalhe de pouca importância. Com muito cuidado começaram a descer as escadas. Luana tropeçou várias vezes e Camile precisava se contorcer para evitar uma queda, rangendo os dentes com o esforço. Felizmente, Luana melhorava a cada novo passo, o que era um alívio. Chegaram à porta arrombada na noite anterior, o Sol brilhava através dela como uma promessa de esperança, convidando-as a sair para sua luz e calor. E assim fizeram.

Esperava ouvir uma freada brusca, talvez até uma batida, uma exclamação de espanto de alguma senhora, um assovio de um engraçadinho, dedos apontados na direção da aberração de circo em que se tornaram, qualquer tipo de reação dos transeuntes à súbita aparição de duas garotas nuas grudadas uma à outra. Mas nada aconteceu. As pessoas continuaram cuidando de seus assuntos como se nada tivesse acontecido. O movimento na rua era frenético, como sempre, carros passando, pedestres circulando de um lado a outro, comerciantes cuidando de suas lojas, ninguém sequer as olhou, as pessoas passavam ao lado delas e não as viam.

– Socorro – balbuciou Camile, perplexa. Será possível que não as viam? Por que ninguém olhava para elas? Alguns metros subindo a rua havia dois homens conversando. Conduzindo Luana, Camile aproximou-se deles pedindo ajuda. Nenhum deles reagiu. Camile estendeu o braço para tocar o mais próximo e quase gritou ao ver sua mão passar através do ombro dele, como se não estivesse ali.

O pavor crescia dentro dela como uma fera incontrolável, prestes a romper-lhe o peito. Seu senso de realidade começava a lhe faltar, achou que ia enlouquecer como Luana. Talvez fosse melhor assim.

Tentou falar com outras pessoas, mas o resultado era o mesmo. Estavam cercadas de gente e movimento, mas eram invisíveis e incapazes de tocar qualquer pessoa. Um rapaz de mochila a tiracolo passou através delas como se fosse um fantasma.

Não, ele não era fantasma, eram elas. Elas eram fantasmas!

Mas estavam vivas. Camile podia sentir o sangue sendo bombeado cada vez mais forte, sentia o ar em seus pulmões, sentia...

Não. Não sentia o chão sob seus pés. Podia sentir que seus pés estavam apoiados em algo, mas a textura não era, absolutamente, a que uma calçada deveria ter. Era como se não fosse real. Tocou um poste e sentiu o mesmo tipo de textura, passou a mão por uma parede e não havia diferença, o mesmo aconteceu com um carro estacionado, era como se tudo tivesse se transformado em alguma substância desconhecida que mantinha apenas a aparência daqueles objetos tão familiares. Porém as outras pessoas... era como se nem estivessem lá.

Subiram a rua em direção ao centro da cidade, sem nenhuma razão em particular, Camile apenas não queria ficar parada. Movia-se tão apaticamente quanto Luana, quase em estado de choque. Procurava, o máximo possível, desviar das pessoas, mesmo obtendo pouco sucesso. Sentia calafrios cada vez que alguém passava através delas.

Ao atravessarem as ruas, Camile considerava a possibilidade de deixar que um carro as atropelasse, mas o instinto de autopreservação, somado ao medo de ficarem apenas feridas e incapazes de obter socorro, ou até coisas piores e menos imagináveis, afastavam essa ideia. Todo tipo de solo por onde passavam, asfalto, cimento, terra, qualquer coisa, tinha a mesma textura estranha sob seus pés descalços, mas ela já não prestava atenção nisso. Sentia-se como numa absurda vertigem, incapaz de pensar corretamente, pois fazer isso seria entregar-se ao desespero. Nesse estado de quase inconsciência chegaram ao Jardim Público e sentaram-se num banco vazio.

Ficaram ali por horas, pois Camile não via sentido em continuarem andando por aquele mundo onde os outros lhes eram proibidos e até o tato era negado. Olhava todas aquelas pessoas apressadas caminhando de um lado para o outro, tão ocupadas em seus assuntos e sentia-se perdida, excluída, ninguém podia vê-la, não havia ninguém com quem falar, ninguém para ficar chocado com o horror que lhe acontecera. Tornara-se um fantasma, uma morta viva eternamente ligada a uma doente mental incapaz de lhe oferecer conforto. E ninguém sabia. Ninguém podia saber.

Luana gemeu e encolheu-se de encontro a Camile. Tinha a cabeça baixa e um olhar perdido que dava pena. Camile falou-lhe algumas palavras, mas ela apenas a olhava sem demonstrar interesse. Camile teve um impulso de raiva, logo substituído por ternura ante seu ar indefeso. Envolveu-a com os braços e deixou que apoiasse a cabeça em seu peito até cair no sono. Recostou-se no banco, sentindo a respiração da irmã. Lembrou, de repente, de um filme estranhíssimo que viu quando criança, sobre gêmeas siamesas, uma boazinha de dar nojo e a outra psicótica, que fazia caretas, babava e parecia sempre à beira de um ataque epiléptico.

Começou a rir. Não era engraçado, mas não podia evitar. Gargalhava até o peito doer, sem se importar se aquilo era um acesso de histeria ou mesmo loucura. Não era isso mesmo que eram? Personagens de filmes de terror? Poderiam até filmar uma continuação se tivessem uma câmera. Ou cobrar ingressos num circo, se pudessem ser vistas. Uma piada... tudo uma grande piada...

Gargalhou até o riso tornar-se lágrimas. Depois adormeceu.



Passaram-se muitos dias até Camile se convencer de que aquilo não era um sonho. Com o tempo, uma melancólica aceitação passou a ser seu estado de espírito na maior parte do tempo, enquanto tentava explorar aquele estranho mundo novo. Não podia fazer longas caminhadas, pois Luana a obrigava a andar lentamente e, além disso, cansava-se muito rápido. Mesmo assim, encontrou forças para visitar os lugares que lhe eram familiares: casa, faculdade, os bares que frequentavam. Mas a experiência de ver os amigos vivendo e cuidando das coisas de sempre sem que ela pudesse falar com eles ou pedir ajuda era demasiado masoquismo. Não demorou muito para que descobrisse que não conseguiam segurar objetos ou qualquer coisa móvel. Não conseguiam alterar o estado das coisas, apenas atravessar os objetos. As únicas coisas que conseguiam tocar eram as que não podiam ser alteradas ou movidas de qualquer forma: paredes, árvores, carros estacionados. Não sentiam fome, nem sede e Camile percebeu que estavam sempre imaculadamente limpas, mesmo as solas dos pés, como se a sujeira e a fumaça não pudessem fixar-se nelas. Em um dia de chuva, notou que a água as atravessava, não se molhavam. Sequer sentiam as mudanças de temperatura, ao menos não como antes: frio ou calor eram sensações vagas, nunca incômodas.

Era como se o mundo inteiro e tudo de que era composto tivesse virado as costas para elas. Por fim, abandonaram o hábito das caminhadas. Adotaram o Jardim Público como uma espécie de lar e passavam a maior parte do tempo entre as árvores, sentadas na grama, fora do caminho das pessoas.

Nunca mais voltaram à sobreloja.



Não muito depois de instalarem-se no Jardim Público, Camile notou as presenças. Havia outros seres invisíveis além delas: criaturas flutuantes que apareciam volta e meia, principalmente durante a noite, sem nunca se aproximarem delas, como se também não as notassem. Pareciam protozoários de diferentes espécies e tamanhos rodopiando ao sabor do vento. Alguns viviam agarrados a pessoas, despercebidamente, sugando-as como parasitas. Camile notou que tais pessoas tinham uma aparência doente ou triste. Algumas vezes tentava aproximar-se desses seres, mas voavam para longe, como moscas assustadas.



Luana tinha breves lapsos de lucidez, às vezes quase chegando a falar. Camile fazia o máximo para provocar alguma melhora, mas os progressos eram poucos. Sentia-se muito só. Desejava tocar e ser tocada por outro ser humano. Às vezes queria morrer, mas não sabia como. Luana era tudo que lhe restava. A irmã tornou-se, pouco a pouco, conforme os tabus foram perdendo todo e qualquer sentido, um receptáculo para sua carência. Porém imperfeito, exasperante, incapaz de retribuir ou demonstrar receptividade. Era como brincar com uma boneca. Um corpo de plástico sem vida.



Numa ocasião, Camile notou que uma mulher olhava diretamente para elas. Seu rosto suava frio, estava apavorada. Camile imediatamente saltou de onde estavam e tentou correr até ela, praticamente carregando Luana consigo. A mulher deu as costas e começou a andar apressadamente, sem correr. Camile a seguia o mais rápido possível.

– Por favor – gritava – você pode nos ver? Precisamos de ajuda.

Mas a mulher não parava, parecia muito perturbada, mas não exatamente surpresa, como se ver coisas como aquilo não fosse algo tão incomum. De repente voltou-se para elas e sussurrou, rispidamente:

– Não posso ajudar vocês! Deixem-me em paz, por favor!

Depois foi embora e Camile desistiu de segui-la. Voltou a vê-la outras vezes, mas ela nunca mais pareceu nota-las, embora sempre desse uma olhada furtiva para o ponto do jardim onde elas estavam naquele dia. Episódios semelhantes chegaram a ocorrer, em diferentes ocasiões, com resultados equivalentes. Camile costumava especular a respeito, sem maiores esperanças.



Numa noite de denso nevoeiro, Camile viu um homem nu caminhando pelo Jardim. Quando o reconheceu mal pôde acreditar:

– Cana! – gritou, correndo com Luana até ele antes que sumisse na névoa. Mas quando chegaram perto, parou assustada. Era Cana sim, mas não era o mesmo. Seu rosto estava branco como leite, deformado por um sorriso exagerado, obsceno. Andava como um zumbi. Não demonstrou reconhece-las mas, sem sombra de dúvida, as viu.

Camile estendeu o braço, o desejo de companhia superando o medo, e o tocou. Quase gemeu ao sentir a textura de pele em seus dedos. Cana estava ali com elas. Parecia um sonho. Camile não se conteve e o abraçou, sentindo o sangue ferver ante o contato do corpo dele com o seu. Mas o prazer foi fugaz, pois Cana foi ainda mais frio do que Luana. Camile recuou.

– Cana, sou eu. Não se lembra?

Por momentos intermináveis, tudo o que ele fez foi olhar para elas com aqueles olhos quase desprovidos de brilho. Então uma voz começou a ecoar de sua garganta sem que a boca se movesse. Não era, em absoluto, a voz de Cana:

– Eu me lembro de você, Camile/Luana – a voz soava como uma vitrola velha fora de rotação, causando-lhe calafrios – É bom vê-la de novo.

Camile não sabia bem o que dizer. Estudava atentamente aquele rosto tentando encontrar algum sinal de humanidade. Um sentimento de opressão apertava-lhe a garganta, fazendo-a suar frio. Até Luana começou a prestar atenção, como se aquela voz tivesse penetrado nas profundezas de sua mente.

– Você está... bem, Cana? – perguntou.

A face branca continuava impassível.

– O vento sopra forte no vazio entre os mundos – nesse ponto a voz mudou, começou a soar com um timbre diferente – Dor, dor, faça parar... faça parar – outra mudança – Não posso descrever o que sinto – depois disso um som gorgolejante substituiu a voz.

Camile aproximou-se um pouco mais, tentando controlar a repulsa crescente.

– Cana, você está mesmo aí?

Depois de uma longa pausa:

– Sim.

Camile pensou um pouco antes de continuar.

– Onde nós estamos, Cana? Por que ninguém nos vê?

Outra pausa ainda mais longa. Então uma voz terrivelmente familiar disse:

– Vocês estão fora de sincronia.

Camile recuou ao som daquela voz, tapando a boca para abafar um grito.

– Não estão nem aqui e nem lá – continuou a voz, a voz de Normando – Vocês estão em lugar nenhum. Estão em entrelugares.

De alguma maneira insana, aquilo fazia sentido.

– Eu lamento muito, meninas. Acreditem. Às vezes, quando se chega muito longe, não dá pra voltar atrás. Pra tudo existe um preço, para justos e injustos. E não há ninguém para quem reclamar.

Outra pausa.

– Ainda há muito para ver – disse a voz de Normando. Então Cana virou-se e começou a ir embora.

– Espere – disse Camile – Fique com a gente. Você é como nós...

Cana voltou-se para responder, com a mesma voz distorcida de antes, porém incrivelmente angustiada:

– Não sou como vocês. Eu não tenho mais alma.

Caminhou para longe até desaparecer na neblina e elas nunca mais o viram.



THE END

Deitadas na terra úmida do jardim, em um dia de primavera particularmente belo, Camile e Luana espreguiçaram-se ao Sol. Camile olhou para a irmã e viu que ela a observava, quase com curiosidade. Estava muito bonita. Camile olhou para o céu azul e permitiu sentir-se bem, pois achava que merecia isso. Pela milionésima vez segurou o apêndice como que para testar sua materialidade, o toque brusco transformando-se numa carícia que lhe causava alguns arrepios. Fechou os olhos, tentando mergulhar em sonhos.

– Camile...

Imediatamente abriu os olhos, voltando-se incrédula. O olhar de Luana não mudara, seu rosto ainda parecia vazio. Mas ela falara seu nome, não havia dúvida. Camile sentia-se a beira de explodir de tanta alegria. Aquele era o mais claro sinal de melhora em muito tempo. Abraçou-a com um misto de alegria, paixão e desespero, como se quisesse misturar-se com ela, completando sua união. Ria descontroladamente e achava que poderia rir para sempre. Passou-lhe pela cabeça que poderia estar perdendo a razão. Mas que importava? Segurou o rosto dela com ambas as mãos e beijou seus lábios com toda a volúpia.

Tinha certeza que logo teria Luana de volta. O Sol brilhava, os pássaros cantavam, o bom Deus estava em seu céu e tudo estava em paz com o mundo. E não seria esse o melhor de todos os mundos possíveis?

Camile não sabia quanto tempo mais teriam e até onde aquilo iria chegar. Vida, morte, loucura, quem poderia dizer? Mas agora se sentia bem, pois não estava sozinha, Luana sempre estaria com ela. Era irônico, mas verdade: não importava o que ainda iria acontecer, nunca estariam sozinhas, sempre teriam uma a outra, sempre estariam juntas, verdadeiramente juntas.

E, no fim das contas, isso era tudo o que importava.

(1999/2006)

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