A Garganta da Serpente
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Fábula perversa

(Rodrigo Emanoel Fernandes)

(Inspirado numa narrativa oral)

Certa vez, um incêndio terrível devastava a floresta levando ao pânico todos os animais. Num êxodo frenético, os seres da mata lançavam-se ao rio para alcançar a segurança na outra margem. Imponente, um tigre permanecia impassível entre as águas turbulentas e o brilho fantasmagórico das chamas, desafiando orgulhosamente o calor e a morte à espera do último momento antes da inevitável fuga.

Um sibilar repentino fez o felino estacar, apreensivo... um dos poucos sons em toda a criação que conseguia infligir-lhe medo. "Quem está aí?" rugiu ele, imperioso.

A serpente surgiu lentamente, emergindo de um buraco na relva. Aproximou-se cautelosa, evitando encarar o tigre nos olhos. "Eu peço uma audiência, meu senhor, com todo o respeito que lhe é devido..." sibilou ela.

O tigre franziu o sobrolho, mas não recuou. Após uma breve pausa dirigiu-se a serpente: "Minha senhora, meus respeitos... já não deverias, a muito, ter abandonado essas paragens em busca de segurança?"

"De fato, meu senhor", respondeu a serpente, "Mas não possuo entre meus dons a capacidade de enfrentar a violência das correntezas. Se adentrar o rio certamente serei arrastada pelas águas e morrerei. Humildemente, meu senhor, eu lhe peço que me carregue em suas costas quando atravessares o rio para que eu também escape das chamas em margens seguras".

O Tigre encarou a serpente, desconfiado: "Julga-me algum tolo, minha senhora? Suas presas gotejam veneno. Se me picares quando estiver repousando sobre meu pescoço meu fim será certo."
"Admito que minha reputação é preocupante, meu senhor" retrucou a serpente, "Mas, com todo o respeito, não há razão para que tenhas medo de mim. Se eu fizer o que temes acompanhar-te-ei para as profundezas do rio. Tua morte me levará à morte também. Não haveria lógica em tal ato, não haveria sentido, minha existência depende de ti, pois se ficar aqui morrerei. Isso não é o bastante para se sentires seguro em me ajudar?"

O tigre refletiu e achou aceitáveis as palavras da serpente. Decidido a ser magnânimo, permitiu-lhe que subisse suas costas e enlaçasse seu pescoço. Depois mergulhou nas águas torrenciais, tomando o cuidado de manter a serpente na superfície.

Quando estava na metade da travessia, uma fisgada súbita o surpreendeu, uma dor aguda, um torpor pestilento, agonia, seus membros amoleceram, os dentes trincaram num espasmo horrendo... a serpente cravara suas presas peçonhentas diretamente em sua jugular.

"Maldita, maldita", urrou o tigre em seu desespero de morte, "Por que fizeste isso? Irás perecer comigo!"

E a última coisa que o tigre ouviu antes de desaparecer para sempre nas profundezas do rio foi o sibilar da serpente sussurrando em seus ouvidos: "Eu sei... eu sei... me perdoe, não pude evitar... é de minha natureza."

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