(Inspirado numa narrativa oral)
Certa vez, um incêndio terrível devastava a floresta levando ao
pânico todos os animais. Num êxodo frenético, os seres da
mata lançavam-se ao rio para alcançar a segurança na outra
margem. Imponente, um tigre permanecia impassível entre as águas
turbulentas e o brilho fantasmagórico das chamas, desafiando orgulhosamente
o calor e a morte à espera do último momento antes da inevitável
fuga.
Um sibilar repentino fez o felino estacar, apreensivo... um dos poucos sons
em toda a criação que conseguia infligir-lhe medo. "Quem
está aí?" rugiu ele, imperioso.
A serpente surgiu lentamente, emergindo de um buraco na relva. Aproximou-se
cautelosa, evitando encarar o tigre nos olhos. "Eu peço uma audiência,
meu senhor, com todo o respeito que lhe é devido..." sibilou ela.
O tigre franziu o sobrolho, mas não recuou. Após uma breve pausa
dirigiu-se a serpente: "Minha senhora, meus respeitos... já não
deverias, a muito, ter abandonado essas paragens em busca de segurança?"
"De fato, meu senhor", respondeu a serpente, "Mas não
possuo entre meus dons a capacidade de enfrentar a violência das correntezas.
Se adentrar o rio certamente serei arrastada pelas águas e morrerei.
Humildemente, meu senhor, eu lhe peço que me carregue em suas costas
quando atravessares o rio para que eu também escape das chamas em margens
seguras".
O Tigre encarou a serpente, desconfiado: "Julga-me algum tolo, minha senhora?
Suas presas gotejam veneno. Se me picares quando estiver repousando sobre meu
pescoço meu fim será certo."
"Admito que minha reputação é preocupante, meu senhor"
retrucou a serpente, "Mas, com todo o respeito, não há razão
para que tenhas medo de mim. Se eu fizer o que temes acompanhar-te-ei para as
profundezas do rio. Tua morte me levará à morte também.
Não haveria lógica em tal ato, não haveria sentido, minha
existência depende de ti, pois se ficar aqui morrerei. Isso não
é o bastante para se sentires seguro em me ajudar?"
O tigre refletiu e achou aceitáveis as palavras da serpente. Decidido
a ser magnânimo, permitiu-lhe que subisse suas costas e enlaçasse
seu pescoço. Depois mergulhou nas águas torrenciais, tomando o
cuidado de manter a serpente na superfície.
Quando estava na metade da travessia, uma fisgada súbita o surpreendeu,
uma dor aguda, um torpor pestilento, agonia, seus membros amoleceram, os dentes
trincaram num espasmo horrendo... a serpente cravara suas presas peçonhentas
diretamente em sua jugular.
"Maldita, maldita", urrou o tigre em seu desespero de morte, "Por
que fizeste isso? Irás perecer comigo!"
E a última coisa que o tigre ouviu antes de desaparecer para sempre
nas profundezas do rio foi o sibilar da serpente sussurrando em seus ouvidos:
"Eu sei... eu sei... me perdoe, não pude evitar... é de minha
natureza."