Oba! Sexta-cheira!
Ríamos entusiasmados com a perspectiva enquanto alguém arrumava
as carreiras cuidadosamente sobre a mesa de vidro.
No canto da sala o bar coalhado de todos os sabores alcoólicos possíveis.
Eram muito diversos os gostos da galera: Desde "jararaca", a caipira
feita com álcool 90 graus, preferida por quem vivia ou vivera no mar,
onde a bebida é persona non grata e sempre presente e se faz imperiosa
a criatividade, até um legítimo escocês do Paraguai.
O cheiro da maconha incensava o ar misturado com dezenas de aromas de variadas
procedências que usávamos para disfarçar, ou encobrir o
indisfarçável. Mentíamos para nós mesmos, mas este
era nosso mais íntimo comportamento.
Todos os preâmbulos de um teatro já muito vivenciado e a peça
decorada em detalhes por todos nós, personagens calejados.Como no teatro
alguém gritou:
- Merda!
Todos retribuíram o bordão de boa sorte. Neste palco a boa sorte
seria não implodir numa overdose.
A fila formou-se rapidamente sem necessária chamada. Todos sabiam quando
as carreiras, soldados mercenários de farda branca, apresentavam armas.
Baionetas caladas com a qual nos suicidávamos lentamente. Uma estocada
por dia, às vezes, como hoje, muitas, de todas as profundidades.
Os baseados cessaram. Chegara ao fim o tempo do "aperitivo". Agora
era a vez do prato principal.
A mesa era baixa, nos ajoelhávamos diante dela para penetrarmos no mundo
do poder. Nós, super homens enquanto abraçados ao pó, naufragados
na criptonita branca quando o efeito se esvaía.
Saí dali entusiasmado, berrando minha desconexão com a realidade
como uma bandeira de vitória e também para sobrepujar os berros
e gargalhadas dos parceiros.
Aos poucos o grupo se desfazia, cada um tomando seu rumo.
Na esquina Tomás abaixa as calças e balança a bunda para
uma despedida criativa e hilária. Os que ainda seguiriam juntos abaixaram
suas calças e retribuíram o tchau-tchau sensacional. Tomás
era mesmo o cara. E fomos falando sobre ele até que nos esquecêssemos
do que estávamos falando.
Abri a porta devagar. Encharcado de álcool, calibrado pela cocaína
era meio complicado encontrar a fechadura rapidamente.
Com a garrafa na mão acendi a luz para certificar-me que era minha casa.
Nem olhei para o conhecido sofá azul, mais urgente certificar-me da quantidade
de líquido que restara a garrafa.
- Pouca, meiota apenas.
Fechei a porta novamente e voltei à rua. Não sobre os passos que
me trouxeram, já me perdera deles. Não marcavam uma linha possível
de ser repetida, andariam conforme a vontade dos pés que tropeçavam
sobre si mesmos.
As lojas 24 horas dos postos de gasolina foram um lance de marketing espetacular.
Um CVV de primeira necessidade numa sigla um tanto diferente da original: Centro
de Valorização do Vício. Eu era mesmo brilhante em minhas
filosofias dedutivas. As noções se clareavam na mente e as ideias
surgiam magistrais.
Antes de entrar na loja dei outra fungada. Já estavam mostrando suas
garras afiadas os pensamentos soturnos dos quais eu fugia. Fora de cogitação
permitir que eles se sobrepusessem à minha vontade. Eu, o centro do mundo.
Não, do Universo.
Comprei logo duas garrafas, me economizaria caminhadas que, eu sabia, se tornariam
cada vez mais difíceis.
Em casa outra vez. Que coisa indecifrável o caminho da casa, nunca o
esquecia.
Todos dormiam, já não se preocupavam com tragédias, ela
viria de qualquer maneira, uma questão de tempo ou sorte. Também
não me procuravam nos lugares que eu frequentava. Não eram
bem vindos e tinham sido enxotados dezenas de vezes.
Eu não tinha muita certeza se ainda existia para eles, mas isso também
perdera a importância desde que me deixassem em paz e não retomassem
a chorumela de conscientização babaca e o faticínio de
catástrofe iminente.
- Que se fodam, panacas! - desejei enquanto bebia no gargalo para ser mais rápido
o plá, ou zuim que eu buscava com sofreguidão.
Fiz várias carreiras, assim economizaria trabalho posterior.
Sábado. Domingo. Dias iguais. Única diferença o mergulho
que alcançava a cada dia mais profundidade. Águas mais escuras
e densas. Aos poucos a vida naufragava numa sucessão de dias que entraram
as semanas num colar de pedaços de mim até que me arrastassem
para a cama e me atirassem sobre ela desmaiado.
As crianças eram protegidas da infame visão, se é que ainda
era possível ocultar o estado de molambo que me jogava pelas paredes
até acertar o chão. Com uma capacidade incrível, conseguia
sair para buscar mais garrafas. A maninha branca me dava arrimo e força.
O sofá tornara-se incômodo e estreito. Deixa rolar o chão
móvel sob o corpo que se encolhe na falta de sono e alimento. Coisas
quase inúteis e completamente sem sentido nos mareados dias de uso abusivo.
Muito tempo depois me contaram que este tobogã feérico durara
dez dias e se repetira um rosário de vezes. Terminavam com boa sorte,
não me engolfavam definitivamente. Eu sobrevivia.
Todos me olhavam. Eu nada via. Rastejava igual aos vermes brancos, reais de
alucinação, à minha volta. Sabia que era um deles, me comportava
como um deles. Já perdera a firmeza das mãos nesse décimo,
ou décimo quinto, ou centésimo dia. Eu não sabia mais nada
sobre dias.
Desconhecia sol e lua se é que teriam existido ou se haveria diferenças
entre eles. Isso fazia com que derramasse pó, polvilhando o assoalho.
Não era permitido perder um só minúsculo grão invisível.
Para impedir esse crime imperdoável eu lambia o chão enquanto
rosnares simiescos saíam de minha garganta queimada pelo álcool
e o nariz a arder cocaína.
Os odores sumiram. Sorte minha, não sentia o empesteado de minhas secreções
já desmanchadas. Uma tentativa falida do corpo expelir os diabos com
que eu o presenteava. Satã fazia cama na minha cabeça, na minha
vontade e no excremento de gente em que eu me tornara: sucursal do inferno.
O corpo me derrotava era o último pensamento robotizado que transitava
pelo meu cérebro como estrela cadente e me lançava na noite suada
e mórbida do desfalecimento. Meu corpo me salvava.
Voltava, comia, me disfarçava de gente, aliviava o desgaste que se tornara
insuportável e corrosivo. Ácido sulfúrico pastando e ruminando
meus neurônios que apodreciam.
Tão logo recuperado a lembrança da primeira viagem com a deusa
branca seduzia. A fascinação de revivê-la. Sentir-se acima
e além do mundo ridículo e cruel. Sem imaginação.
Esse delírio, impossível de ser revivido me tangia para outras
festas, novas e tão conhecidas orgias dos sentidos pagãos.
Recomeçar, desfalecer. Apodrecer arfar em busca do caminho de volta.
Ciranda que de roda só tem o pó, o álcool e o abandono.
Nenhuma cantiga de criança, nenhum gesto ou toque, nem sexo me envolvia
mais. Apenas com a cocaína eu me deitava.
Até hoje não sei como atravessei essa ponte para o inferno sem
me estatelar no abismo de pedras agudas que me esperavam para o empalamento.
Internações, fugas, recaídas. Nova ciranda, novo rio dos
mortos para navegar.
Aos poucos, muito lentamente, agora com amparo dos companheiros, irmãos
de desgraça que conseguiram se libertar, a minha consciência emergia
ainda abalada, mas respirou através de mim.
Descer ao reino de Vulcano é fácil, o próprio peso do propósito
ajuda a afundar. Voltar e escalar trezentos Everest, atravessar seiscentos Triângulos
das Bermudas e milhares de ondas encapaladas, isso não era nem um pouco
fácil e às vezes, o desânimo quase me fazia submergir de
novo.
Hoje me sento aqui e seguro tua mão para te dizer que é possível,
que este casamento que trazes nos olhos alucinados, na dificuldade de te manter
sentado, não é indissolúvel. Este casamento foi sagrado
pelo diabo que podes vomitar sabendo que o divórcio só será
consolidado se for renovado dia a dia pelo resto de tua vida.
Falo-te vida com entonação maiúscula porque, como eu, esqueceste
o significado dela. Por amor doentio e cruel, louco como estive, tu vegetas
e perdeste o sentido do que é viver.
Estendo-te a mão por que alguém a estendeu para mim num dia em
que a única saída era a morte. Não sou anjo, nem uma alma
iluminada. Eu apenas já andei abraçado com o mesmo desespero que
abraças agora.