A Garganta da Serpente
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Superfície imaculada

(Rodrigo Emanoel Fernandes)

Sentou e encarou friamente a folha de papel em branco. Sereno na aparência, em seu íntimo sentia-se como um náufrago abandonado há décadas numa ilha rochosa, sem o menor contato com se-res humanos. Ansiando.

O papel branco o encarava de volta, desafiando-o a macular sua fria homogeneidade. Parecia impossível. Fazia tanto tempo... tanto tempo que era quase inimaginável que uma gota sequer de tinta quebrasse a serenidade daquela superfície que parecia disposta a absorver sua alma como um vampiro espiritual. Foram tantas vezes que estivera sentado antes, na mesma posição, obrigando-se sem sucesso a romper o desagradável impasse entre si mesmo e o papel. Um sentimento de aflição formava-se em seu estômago. As vezes sentia-se mal. Como um homem que se vê incapaz de vomitar o alimento apo-drecido que envenena seu sangue e entorpece a sua mente. Sentia vontade de gritar, amaldiçoar, rasgar, derrubar a mesa, despedaça-la, se matar, matar alguém, qualquer um...

Ele encarava a superfície vazia. A superfície vazia o encarava. Ele pensava em espelhos. Ti-nha medo de espelhos. Sempre teve. Não conseguia compreender por que as pessoas não compartilha-vam desse medo. Provavelmente porque ninguém olhava para um espelho por tempo bastante para per-ceber o seu terrível fascínio... seu sagrado horror. As pessoas olhavam para espelhos apenas para satis-fazer necessidades práticas e imediatas: pentear o cabelo, aprovar uma vestimenta, conferir os deslizes do peso, tomar consciência do que os outros viam em si, coisas assim. Narcisistas gastavam mais de seu tempo a fita-los, claro, mas distraídos demais por seu objeto de desejo para perceberem alguma coisa.

Não. Nunca conhecera ninguém que compartilhava seu horror a espelhos. Apenas ele percebia o quanto eram perturbadores. Procurava evitar os espelhos ou apresar-se diante deles, satisfazendo suas necessidades práticas, como todo mundo, rapidamente, antes que aqueles olhos o apanhassem. Quando tal acontecia, permanecia minutos intermináveis encarando aqueles olhos profundos, aquele rosto per-plexo e vazio, a face daquele estranho que o surpreendia em seus momentos de privacidade, estudando-o como a uma coisa alienígena. Aquela face terrível que o assustava por ser tão transparente, tão legí-vel, porém indizível, inenarrável. Ele compreendia aquele estranho, mas não conseguia explica-lo, tra-duzi-lo. Isso o amedrontava. Isso o enlouquecia. Odiava os espelhos e sua maldita redundância. Odiava ver aquela face que - ele sabia - também podia vê-lo... e vice versa, até o infinito. Ele sabia que quan-do se repete uma palavra muitas e muitas vezes, ela perde o seu significado, torna-se apenas um con-junto de sons, significando nada... vazio. E, por mais furtivamente que espiasse aquele estranho, sem-pre o surpreendia fitando-o direto nos olhos.

O papel era como um espelho. O branco era como um reflexo. A sensação de mau estar e ter-ror era análoga. Sentia-se tão mal. Tinha tanto para dizer. Havia tanta coisa apodrecida dentro de si que queria... que precisava vomitar, mas não conseguia. Era tudo tão intraduzível. As palavras eram insu-ficientes, inadequadas. Como dizer o que é indizível? Quais símbolos seriam apropriados? Por onde começar? Deveria escrever um poema? Contar uma história? Desenhar? Cuspir sobre o papel? Qual-quer coisa era melhor do que suportar por um momento mais aquela folha branca e sua silenciosa zom-baria. O estranho estava ali, a sua frente, ele sabia tudo sobre ele, o compreendia, tudo o que precisava era dizer alguma coisa, escrever alguma coisa, algo que alguém pudesse ler para compreender também. Ele tinha coisas dentro de si que precisavam ser compartilhadas. Tinha que conseguir colocar algo pra fora, qualquer coisa, mesmo que fosse pequena. Uma simples parcela do todo que o torturava já seria algum alívio. Precisava escrever algo ou acabaria enlouquecendo.

Foi então que algo lhe ocorreu: Se não sabia sobre o que escrever, por que não escrever sobre não conseguir escrever? Por que não explicar aquilo que compreendia tão bem? Permitir que outros tivessem acesso ao que, para ele, era muito mais profundo e terrível do que o pior dos pesadelos? O silencioso duelo entre o homem e o papel em branco, quando parece impossível lembrar sequer uma palavra que dê início a uma torrente, imaginar uma personagem em que se possa acreditar, uma ideia concreta que possa ser explicada, uma única história que já não tenha sido contada.

E foi assim que, quase com desdém, tocou com a ponta da caneta a superfície imaculada e começou:

Sentou e encarou friamente a folha de papel em branco. Sereno na aparência, em seu íntimo sentia-se como um náufrago abandonado há décadas numa...

(1998)

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