Sempre me orgulhei de ser um juiz severo, porém muito justo. Por isso,
quando sumiu o anel de esmeralda que estava em nossa família há
quase cem anos resolvi dar ao suspeito um julgamento justo, afinal todos sempre
são inocentes até que provem ao contrário.
Nesse caso em especial as suspeitas são muito fortes contra o acusado,
ainda tendo o agravante do acusado já ter sido ajudado por mim o dono
do supracitado anel.
Num processo de furto é preciso se observar três aspectos: o motivo,
a oportunidade e a predisposição. Isso no caso do furto, já
no caso roubo a oportunidade é deixada de lado já que o indivíduo
já sai na intenção de praticar o roubo.
Voltando ao furto do anel, a dita joia, que já havia pertencido
a minha tataravó, estava guardada na caixa de joias de minha mulher,
em nosso quarto, em nossa casa, que se localiza a cerca de cinco quilômetros
do centro do município de Freitas Neto, o que inviabilizaria a entrada
de um assaltante já que a distância da cidade torna o acesso de
pessoas à casa muito difícil, o que nos leva de novo ao suspeito,
seu nome José da Silva, um rapaz que foi acolhido em minha casa à
cerca seis meses, para fazer os serviços de limpeza da casa e da área
externa, já que eu não poderia fazer tal serviço dada a
minha idade avançada e as outras duas pessoas que moram comigo na casa
no caso minha mulher e minha filha não poderiam fazer trabalhos tão
pesados.
O Motivo
Eu mesmo pude perceber que o José andava muito alterado estes últimos
dias. Também tive notícias que ele andou perdendo algum dinheiro
no jogo, coisa pouca, mas nunca se sabe, este vicio é danado. Com o fato
dele ter vindo me pedir dinheiro esta semana uns dias antes do sumiço
da joia, só aumenta as minhas suspeitas. Além disso, ele
sempre dizia que não queria ficar nesta vida de caseiro para sempre,
dizia ele que tinha que arrumar trabalho em que pudesse sustentar uma família,
dar do bom e do melhor para uma esposa. Acho até louvável este
pensamento, mas nunca o vi com nenhuma namorada. Pode ser que os motivos para
José querer melhorar de vida possam ser pura ambição.
A oportunidade
Minha mulher já tinha me informado que as idas do José casa,
tinham se tornado muito mais frequentes nos últimos três meses.
Eu pensei ser só interesse literário, pois possuo uma vasta biblioteca,
local este que José sempre estava.
Como minha filha também está se formando, pedi para ela ensinar
alguma coisa a ele, pois o rapaz mal tinha terminado a quarta série do
primário, e com isso resolvi dois problemas: ocupava Laura minha filha
e ela ficaria de olho no José no período em que ele estava dentro
de casa, já que ele morava na casa dele - a casa do caseiro que fica
perto do portão.
Achei que ele estava gostando das aulas, pois cada dia ele estava mais empolgado,
andava sempre com um livro para lá e para cá, passa suas horas
de folga trancado na biblioteca com a Laura, mas de uns dias para cá
perdeu todo o interesse nos estudos, pude até vê-los discutindo
algumas vezes no quintal. Quer dizer, discutido não: Laura falava algo
que eu não entedia, acho que ela o chamava para voltar aos estudos e
ele dizia não, pois esta era única palavra que consegui entender
da conversa dos dois e as idas do José à casa se tornaram raras.
Por isso, acho se ele pegou mesmo o anel, foi numa dessas agora raras idas a
casa.
Pré-disposição
O que mais torna este caso complicado é o fato de José ser um
ex-presidiário, que por insistência de minha mulher resolvi ajudar
num programa federal de ressocialização de ex-detentos.
Coincidência ou não José foi condenado por tentativa de
furto em um depósito de alimentos, que fica no centro de Freitas Neto.
Eu sempre botei estes pilantras atrás das grades, que é o lugar
deles, mas depois de trinta e cinco anos de poder judiciário resolvi
fazer este sacrifício de tentar ressocializar o detento José da
Silva.
Não sei o que o levou a tentar roubar aquele depósito, porém
o condenei a um ano e seis meses de prisão de segurança mínima,
pena que podia ser revertida em trabalhos comunitários. José já
cumpriu a pena, porém resolvemos ficar com ele trabalhando na casa pelo
tempo que ele quisesse, até ontem, quando Julia minha esposa veio com
a notícia do sumiço do tão valioso anel.
Depois exposição dos fatos acho que é hora de ouvir o réu,
com a palavra o senhor José da Silva:
- Primeiro, doutor juiz, eu quero te pedir desculpas, por ter abusado da confiança
do senhor e de sua família. O senhor confiou em mim, quando todos só
queriam me escorraçar, me deu uma casa para morar, me tratou como um
filho, me deixou conviver com sua esposa e sua filha e eu não o desrespeitei.
Por isso confesso que fui eu quem roubou o anel. Tinha dívidas de jogo
e precisava do dinheiro, foi isso Juiz
- Então é só esperarmos a viatura da polícia chegar
para levá-lo de volta para a prisão e agora não serei eu
quem o julgará, José. Será julgado por juizinho recém
empossado, doido para fazer sua carreira em cima de ladrõezinhos como
você.
- Pai, o senhor não acha que chamar a polícia é muito radical,
é só um anel pai.
- Minha filha, não é o anel em si e sim o furto, sou um juiz não
posso deixar que se pratique um crime dentro de minha própria casa.
- Pai, o senhor esta sendo intransigente, prepotente e sem coração.
- Calma, minha filha, não fale com o seu pai assim!
- Tudo bem, Julia, não importa o que Laura fale, o fato é que
ele pegou o anel e por isto será preso por bom tempo.
- Pai, você não pode prender o José!
- Por que Laura?
- Por que não foi ele!
- Como pode dizer isso? Ele já fez isso uma vez, foi preso e agora será
preso de novo.
- Não pai, não foi ele! E da primeira vez que ele entrou no depósito
foi por que sua mãe e seu irmão menor estavam em casa morrendo
de fome e ele então tentou pegar algumas sobras, que com certeza estragaram
e foram jogadas no lixo.
- Laura não precisa me defender, eu já confessei é melhor
assim!
- Isto minha filha, admito, que naquela época teria algumas situações
atenuantes, mas agora eu não vejo desculpas para ele ter feito o que
fez Laura!
- Pai eu já disse que não foi ele!
- Então quem foi filha?
- Laura não fale nada para seu pai eu já confessei!
- Pai, fui eu, quem pegou o anel da vovó!
- Filha por que você pegaria o anel de sua avó?
- Por que estou grávida e queria fazer um aborto!
- Aborto! Por que quem é o pai?
- Sou eu Doutor!
- Laura, você vai ter um filho do José, filha!
- É pai, eu sabia que o senhor não iria aprovar por isto resolvi
fazer o aborto.
- Então era isso que você tanto discutia com o José no quintal.
- Sim Doutor, eu não queria que ela tirasse o nosso filho, sou pobre,
mas sou trabalhador e pretendo trabalhar para continuar dando o mesmo nível
de vida, que o senhor dá a ela
- Filha, você quer ter este filho?
- Claro pai! É o que mais quero.
- E o José, você o ama filha?
- Muito pai, o José é um homem honrado, meigo inteligente e me
ama de verdade
- Tenho certeza disso filha, pois apenas um homem que ama uma mulher de verdade,
faria o que ele fez hoje.
Depois de trinta e cinco anos de judiciário, fui descobrir em minha própria
casa, o verdadeiro significado da palavra justiça, porque hoje foi cometido
um crime aqui, mas não pelo José e sim por mim, pois deixei o
preconceito obscurecer minha visão e se minha filha não tivesse
aberto meus olhos, teria feito uma grande injustiça. Os mentores do código
penal brasileiro têm muito o que aprender com a vida, pois na vida real
a somatória de alguns míseros fatores, como motivo, oportunidade
e pré disposição, não são o bastante para
se condenar um ser humano.