A Garganta da Serpente

Valéria Nogueira Eik

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Aconchego

(Valéria Nogueira Eik)

O homem vivia sozinho em sua pequena casa.

Enviuvara há dez anos.

Os filhos vinham, vez por outra, dar uma espiada no pai.

Mas, o velho Paulo não se importava com as visitas daquela prole desnaturada.

Nem se dava conta do verde desbotado que tomava conta das paredes.

E o jardim, onde o mato crescia mais que o gramado, pouco lhe interessava.

Gostava mesmo das manhãs de sol.

Agarrado à sua bengala, ganhava a calçada do bairro e caminhava devagar e feliz.

A cada passo, reencontrava um buraco conhecido, uma lajota solta, uma flor que brotara sob as estrelas, um cachorro perdido, um bom dia do vizinho.

Na singela caminhada, angariava um pouco de vida para a sua pobre existência.

Saboreava cada raio de sol, na esperança de ludibriar a morte.

Mas, tinha plena consciência de que seus dias estavam contados.

Voltava para casa, despejava o seu cansaço sobre o sofá e perdia-se em lembranças.

Vinha o Pedro, vinha o Roberto e vinha o Januário, todos eles ainda fedendo a suor e cerveja, rindo do parco salário e da vida desgraçada.

Vinha a Ivete, a puta que fazia um amor despudorado, rápido e barato.

E o velho Paulo ria, ainda cheio de vontade, mas, repleto de impossibilidade.

E os amigos riam.

E a puta insistia, mostrando os seus encantos.

Mas, o cochilo senil expulsava as recordações, e entre roncos e fios de baba, Paulo dormitava, num torpor generoso.

A voz estridente da filha atingiu seus ouvidos.

O bom dia áspero foi recebido com indiferença.

Nem as críticas ao fedor do banheiro o atingiram.

Paulo não entendeu, mas, assinou os papéis.

A filha foi embora, deixando atrás de si, pesadas nuvens de chuva, que não demoraram a cair.

E choveu sem parar por vários dias.

A água invadiu a casa através do telhado podre.

O cheiro de mofo contaminou o ar.

E quando o sol voltou, trouxe consigo, sem aviso e sem preparo, a filha de Paulo, acompanhada de um caminhão de mudanças.

Diante do olhar aterrorizado do homem, toda a tralha foi sendo retirada da casa.

E em poucas horas, a velha moradia estava vazia, restando apenas o fedor do banheiro e as lembranças impregnadas nas paredes.

Como um fantoche defeituoso e descorado, Paulo foi jogado num asilo.

Em pouco tempo, seus dias contados chegaram ao fim.

Veio Pedro, veio Roberto e veio Januário; todos eles vestidos em suas melhores roupas, mas, ainda assim, fedendo a suor e cerveja.

Veio Ivete, metida numa vestido preto, muito séria e muito triste.

Veio até Dona Rosinha, a esposa, desfiando o seu interminável terço.

Mas, Paulo afastava as imagens do passado com gestos débeis e descontrolados, pois não desejava ir embora.

Queria de volta os seus passeios ensolarados nas calçadas do velho bairro.

Queria de volta a sensação de aconchego da velha casa.

E enquanto era arrastado pela morte, olhou para a filha, e ainda pediu e implorou.

- Devolve! Devolve!

Muitos anos se passaram.

O terreno vazio passou de mão em mão.

Foi vendido e comprado.

Foi comprado e vendido.

Vive coberto por um matagal muito alto e um enorme ponto de interrogação.

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