A Garganta da Serpente
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O bar da esquina paraíso

(Vitor Souza)

Quando ele se sentou pela primeira vez naquele balcão, uma estranha sensação o invadiu. Não era uma estranheza ruim; ao contrário, era uma sensação até boa....

Boa demais. E isso era o mais estranho.

Sentar-se calmamente num balcão de bar não parecia ser a atividade mais relaxante para ele. Sua vida sempre fora agitada. Sempre foi envolta em confusões, brigas, muita luta. De fato, sua vida nunca foi fácil. Nasceu em um lar nada harmonioso, filho de pais que se odiavam mortalmente, a tal ponto em que ele, quando atingiu certa idade - algo em torno de dez ou onze anos - perguntava-se constantemente como é que eles um dia conseguiram manter uma única relação sexual. Chegou certa vez a pensar que essa relação sexual nunca existiu, e aí a única explicação para a sua existência seria obra divina ou então ele seria filho de outros pais. Foi pensando nisso que, aos doze anos, fugiu de casa para procurar seus verdadeiros pais. Desistiu após passar alguns meses dormindo na rua, comendo restos no lixo e roubando - só um pouquinho, dizia ele, o que o incomodava profundamente. Acabou voltando para aquele inferno que ele era obrigado a chamar de "lar".

E os seus dias se passavam como se não passassem nunca. Aos quinze anos, o fato mais consolador que lhe aconteceu foi a morte de seu pai. Um assassinato não resolvido. Caso arquivado. Isso para a polícia. Porque ele.... ele teve trabalho para esconder a faca e limpar as evidências que o ligavam à morte do pai.

Nos primeiros dias após o ocorrido, ele se sentiu um tanto incomodado - não muito, na verdade. Somente temia "pegar gosto" pela coisa. Roubar e agredir já eram atitudes corriqueiras nesse momento, mas matar....

Matar tornou-se algo mais frequente em sua vida após sua mãe ir embora. Quando ele tinha dezesseis anos, estuprou-a, num acesso de fúria. Encarou aquilo como uma pequena retribuição pelos anos de espancamento, humilhação, violência sexual e psicológica e tudo o mais a que ela ajudou seu pai a submetê-lo durante tantos anos. Mas o que mais o enfurecia foi o descaso com que sua mãe tratou sua fuga de casa aos doze anos. Após voltar para casa, depois de meses ausente, ela lamentou seu retorno. Aquilo o feriu profundamente. E quando ele se sentiu forte o bastante para fazer algo além de matar (castigo dado ao seu pai), estuprou sua mãe, espancou-a, feriu-a demais, deixando-a irreconhecível. Ele a fez chorar sangue, literalmente. Humilhou-a o máximo que pôde, torturando-a durante vários dias..... até que sentiu pena e a deixou fugir.

Depois disso, voltou a matar. Matou para roubar, para defender-se.... mas sentia-se mal com isso. Ele não queria ser assim, mas não conseguia evitar.

Ele sabia que podia ser diferente, mas por mais que tentasse, esse monstro dentro de si falava mais alto. Começou então a beber e a se drogar. Aos vinte e três anos, mal parava em pé. Nos raros momentos de lucidez, violentava mulheres e roubava para garantir o próximo gole, a próxima picada. Uma de suas vítimas foi sua mãe. O reencontro aconteceu anos depois da sessão de torturas a que ele a submeteu. Mas dessa última vez foi tudo muito rápido: uma facada no pescoço daquela mulher encerrou sua história nesse mundo.

Um dia ele dormiu num terreno baldio e acordou sentindo-se diferente. Não sentiu, naquele dia, vontade de beber ou de se drogar. Não quis matar. Não se sentiu mal.

Andou sem rumo, somente guiado por uma forte intuição. Andou por um tempo que não soube precisar; as pessoas que encontrou pelas ruas durante o trajeto eram simpáticas, sorridentes. Viu vários rostos desconhecidos, mas que lhe passavam um forte sentimento de amizade.

Sentiu-se feliz. Ele achou que aquilo era a tal felicidade.

Até que encontrou o bar. Estranho bar. Silencioso. Fechado. Com vidros escuros que não deixavam olhar para dentro. Achou que era um lugar selecionado, proibido para gente como ele. Mas assim que ele parou na porta, uma linda mulher abriu a porta. Sorrindo (como todos naquele dia), ela disse para ele entrar.

Ele olhou para si mesmo. Suas roupas sujas e rasgadas deixaram-no com vergonha. Como se estivesse adivinhando seus pensamentos, a mulher disse para ele não se preocupar com as aparências. Todos ali eram bem-vindos.

E foi assim que ele conheceu o "Bar da Esquina Paraíso". Era assim que seus frequentadores chamavam o lugar. Um lugar que deixava a pessoa tomada por uma indescritível sensação de bem-estar.... uma sensação tão boa que provocava nele um estranho sentimento.

Passou, na primeira visita ao "Bar da Esquina Paraíso", não sabe quantas horas. Riu muito, divertiu-se bastante. Conheceu gente boa, gente que o fez sentir-se feliz. Quando saiu, prometeu a si mesmo não afastar-se muito, para saber voltar ali dentro de poucas horas.

E assim ele fez. Caminhou mais um pouco, não sabe por quanto tempo. Não quis se afastar muito. Sentou-se em um banco numa praça que ele desconhecia. Esperou ali. Todo mundo que passava cumprimentava-o com um sorriso acolhedor.

Aos poucos, ele foi esquecendo seu passado. Lembrava-se vagamente do que se passou e do que ele foi. E chorou. Chorou arrependido. Quis se desculpar com as pessoas que ele feriu, roubou, estuprou, matou.

Voltou várias outras vezes ao "Bar da esquina Paraíso". Sua sensação de bem-estar só aumentava. Conheceu muita gente amiga.

Até que se tornou mais íntimo da dona do bar, a bonita mulher que o convidou a entrar na primeira vez em que ele apareceu. A amizade logo se transformou em namoro e, depois, em casamento. Ela o quis, mesmo quando ele revelou tudo o que já fez, tudo o que já foi. E quando ele disse que não tinha emprego, ela o convidou para administrar o bar.

Ele se sentiu como nunca antes se sentira. O tempo foi passando sem que ele se preocupasse com nada. Teve um filho com a bonita mulher. Um garoto que, ele não sabia como definir, era parecido com ele.

Foram anos de completa felicidade. Ele se lembrava um pouco de seu passado, mas já se sentia outra pessoa. A angústia não o atormentava mais. Sentiu-se limpo, purificado. No auge de sua felicidade, sentiu vontade de pedir perdão ao seu pai e à sua mãe. Apesar de todos os maus tratos, ele queria se desculpar por tê-los matado

Foi aí que tudo mudou. Uma manhã, ao dirigir-se feliz de seu quarto para a porta de entrada do "Bar da Esquina Paraíso", a luz se acendeu. Antes que o bar fosse aberto, todos os habituais frequentadores estavam lá dentro. Dentre eles, que carregavam uma expressão pesada no rosto, surgiu sua amada esposa.

Ele perguntou o que estava acontecendo. Ela, lentamente, disse que havia chegado o momento "da volta". Aproximou-se do marido e perguntou-lhe se ele não a reconhecia. Ele não entendeu a pergunta. Ela o fitou nos olhos. Foi um olhar tão profundo que os olhos da mulher começaram a sangrar. Ele então a reconheceu: era sua mãe.

A sensação que se apoderou dele foi novamente indescritível. Mas, agora, era ruim. Sua mãe o agarrou, deu-lhe um profundo beijo e, após alguns segundos, deixou que ele se desvencilhasse, mas não sem antes ficar com a língua do filho presa entre os dentes.

Ele caiu no chão, chorando. A multidão de frequentadores do "Bar da Esquina Paraíso" formou um círculo ao seu redor. Aos poucos, ele foi reconhecendo naqueles rostos algumas das pessoas que ele roubou, agrediu, estuprou, matou.

Mas o pior foi quando seu amado filho se aproximou. Pôde reconhecer naquela criança o rosto do seu pai. O menino ria como um louco. Um rosto de adulto num corpo de criança. Trazia em uma das mãos uma faca. Com essa arma, a amada criança o atingiu no pescoço.

A dor foi lancinante. Ele pensou que fosse morrer, mas permaneceu vivo. Vivo e sentindo uma dor infernal. Novas facadas foram desferidas e as dores, aumentando. Mas a dor interna era tão grande quanto a dor física.

Como se estivesse adivinhando seus pensamentos, uma voz no grupo disse que no "Bar da Esquina Paraíso" não havia lugar para arrependimento. Não havia lugar para a paz. Para o amor. Para a felicidade.... ali era lugar para a vida, para a vida de alguns. Vida vivida de forma diferente por cada alma ali presente. Mas ele era mais que uma alma. Era uma alma arrependida que havia encontrado a felicidade que agora já estava enterrada em seu passado próximo. Era também um corpo que desejava, sem sucesso, a paz que só a morte poderia lhe trazer.

Mas a morte não veio.

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