A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Folhas caídas

(Victor Schweitzer Cavalieri)

Caem as folhas mortas sobre o lago!
Florbela Espanca

Não consigo dormir. Parece que esta noite é eterna. E as paredes do quarto estão vivas, se aproximam de mim, querem me esmagar. A tinta branca, eu pintei essas paredes com tinta branca... mas tudo escorre num jorro imundo pelas paredes que não tem mais nenhuma brancura. E naquele poema em que li que as paredes da memória são brancas... ah que droga, tudo manchado. Uma grande mancha de sangue sobre o tapete novo que comprei semana passada. E gotas do sangue rebelde sobre a parede que foi branca.

Estão vivas, no escuro tem uma força que tenta me esmagar e usa as paredes. Uma força de loucura que me inquieta e me faz acordar em sobressalto e pior, me sinto sem proteção. Sem os braços quentes que durante as noites me prende e não me deixa sair pelas ruas desertas e frias. Uns braços que afastam essas paredes que tentam de alguma forma me esmagar ainda com vida.

Não consigo mesmo dormir. E a taça de vinho está seca sobre o chão do quarto. Uma outra arma que tenta me assassinar pelos pés. Cacos afiados brotando do chão como plantas carnívoras gigantescas sedentas por carne.

Sempre essa música de água sobre o lago. Um constante brotar de água... Uma eterna tortura da saudade, da falta dos dias, da ausência de tudo, e ao mesmo, tempo necessidade de nada.

Não te amarrei. Não sei nem seu nome direito. E você veio, apareceu na minha vida. Que droga... Não abri portas. Não te convidei. Que merda esse destino todo querendo me comandar. Onde está minha vontade toda nisso tudo... Droga, e agora não tenho mais sono. Não tenho mais paz. Arranhem minha pele toda com estes cacos da taça onde eu bebi o vinho envenenado. Não me deixem morrer com a pele estigmatizada. Cortem meu outro pulso. Não tenho mais coragem de nada.

Que droga, essa corrente de ar frio que vem dançar entre os meus braços vazios. Fechem a droga desta porta... fechem a porra desta janela... sempre aberta e sempre vazia.

Não consigo dormir e as paredes estão me esmagando. Tango argentino? Não, não quero dançar nada agora... Compre algumas entradas para o cinema... Tudo está lotado nesta cidade apodrecida... Esta é a verdadeira grande prostituta apocalíptica... Ponha uma valsa... Minhas mãos estão amarradas... Tem uma caneta jogada sobre o sofá... Tudo está revirado... Foi um vento forte que entrou por aquela porta... Olha os papéis com esboços... Como posso ousar escrever uma carta de sofrimento, ou de saudade.... As palavras que a tinta tenta impregnar de dor não fazem nada... Se repetem em me perdoe... Sempre ecoando na minha mente... me perdoe... me perdoe.. me perdoe... para sempre me perdoe... tum tum tum tum... Vou enlouquecer... Não sai agora.. Segure a parede que tenta me esmagar... Ponha a valsa... Da dor... Tão triste... Uma página da Florbela arrancada, voando pela sala vazia... Todos os sons calados, todas as palavras escritas não servem para nada... Quero escrever sobre a dor... Meu sangue escorrendo pelas paredes brancas... pelas paredes que tem vida agora... Meu pedaço de carne assassinado por um caco da taça de vinho bêbado...

Não consigo dormir... Desliguei o celular... Nunca a voz que desejo ouvir me alcançaria... Tanta tecnologia.. Tanta ponte sobre as cidades desertas... E eu só, sendo esmagado por quatro paredes... quatro paredes imundas...

Onde estão minhas roupas... espalhadas.. junto com meu sangue, e misturadas aos cacos de vidro... A poesia da Florbela manchada em todos os versos. Todas as palavras manchadas. Desacreditadas. Que horas deve ser dentro de mim? Não me lembro mais em que livro li isso... Não dá mais tempo de procurar... Tudo tão rápido... Preciso terminar esta carta... Onde estão meus lápis.. Minhas canetas... a última gota do meu sangue... isso é sangue de homem de verdade... é vermelho... é isso que me faz viver... é isso que pode me causar a morte... meu sangue escorrendo infinito... gota por gota... tingindo a parede com sofrimento mórbido...

Mas dentro do corpo tem a saudade de alguma coisa que não saiu. Uma dor no peito... é saudade... O vento soprando a saudade... Abram de vez estas portas... todas as janelas... O vento soprando a saudade... As poesias voando pela janela... Tente pegar essa página ... Saudades! Sim...talvez... e porque não?... Manchas de sangue sobre o poema... sobre os sons... sobre as paredes brancas...

Paredes brancas da memória. Querendo me esmagar no escuro... E os cacos da taça de vinho... é cristal avermelhado cristal tinto cristal bêbado. E uma enorme foto em pôster na memória... Um grande lago, e um grande deus ao centro. Saindo úmido com todas as águas puras. Com toda a beleza pura do amor. O vento varre a memória. O sangue seca em todas as paredes esmagadoras de mim. Os pulsos e as portas abertas. Os pés descalços sobre os cortantes pedaços da minha saudade.

Não vou sair. Não tenho sono. Se fechar os olhos... o grande lago... um grande monstro pode sair e me engolir. Sair do lago. Prefiro as paredes sujas. Mas eram brancas. Pega a minha caneta no sofá. Que droga não quer mais escrever... as folhas todas manchadas de sangue... sangue de bêbado... Que horas deve ser dentro de mim? De novo esta frase.. Não sei... não tenho relógio... sessenta gotas de sangue sobre o taco antigo desta antiga casa... deve ter passado uma eternidade... Dois anos de gotas de memória sobre o lago povoado pela saudade... se passou toda a alegria da vida...

Não vou dormir... Se fechar os olhos verei o grande lago. Deixe as paredes me esmagarem... Todo o meu corpo manchado de sangue contornado, impresso nas quatro paredes sem vida na manhã.

Toca a valsa agora. Fecha então estas portas com cuidado. As janelas, é preciso fechar as janelas... Mas não acende a luz não... Deixe assim tudo escuro. Não tenho relógio aqui... Uma casca se formou em torno dos meus pulsos. Não tem mais gota vermelha sujando a parede. As paredes não estão branquinhas mais. Tem uma mancha vermelha do tamanho da minha dor. Vou escrever sobre a dor... Me enfia a navalha... Me corta a pele toda... me deixa marcado, com cicatrizes expostas por toda a face. Não vou chorar...Deixa essa valsa tocar... As folhas do livro de poesia daquela poetisa estão todos manchados, um grande monstro sobre o lago vazio.

Não vou dormir. O lago está vazio. O quarto todo vazio. Só as paredes sujas de sangue, do meu sangue... As pontes sobre as cidades vazias. Para que pontes? Que droga de pontes? Para que telefone? Que porra de tecnologia inútil... e essa dor toda me rasgando os pulsos, me fazendo doer todo a ponto de não dormir e ter que ficar procurando uma caneta no escuro entre as paredes inúteis desta casa onde as portas ficam todas abertas, e as janelas nunca ficam fechadas e essa falsa tocando, tocando sempre...

Essa saudade toda dentro de mim, não sai nem com meu sangue... Que horas deve ser então? Mas talvez não dê mais tempo para nada... Nem para comprar a tinta para cobrir essas manchas do meu sangue vermelho, nem pra juntar os cacos da taça de cristal onde bebi todo o vinho desta garrafa vazia que está sobre a cama...

Talvez não dê mais tempo para mais nada...

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br