A Garganta da Serpente
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Cardumes de escamas

(Violeta Teixeira)

"Quero chegar ao sem limite...
Para regressar a mim
".
Else Lasker - Schuler

I

Sentado na base de esculturas de rochas magmáticas, contra as quais marulham águas atlânticas, e o ocaso é uma boca de um monstro mítico, com garras afiadíssimas de linces, o pintor navega-se, com púrpura volúpia, em lagoas de sangue. Nos pulsos, picotados pela absoluta entrega do seu corpo, ínfima parte despicienda da totalidade da matéria expansionista do Universo, perpassa, dolente e lânguido, um frémito estético, resultante do trabalho bioquímico da mesma matéria de que são feitos os astros.

- Sim! Só creio na matéria. E o imaterial, por exemplo, gerado no intelecto? Simples! É do trabalho bioquímico da matéria que o imaterial resulta.

Monologa, olhando o mar, com uma apetência voraz de ser engolido por um rebanho branco de ondas revoltas.

Despe-se. Começa por boiar, mas, de súbito, faz-se pedra, e afunda-se, num mergulho abrupto. No fundo, entrega-se, possuído por um gozo de estesia erótica. Flana, sem peso, num bosque marinho, com cardumes de escamas argênteas, serpenteando galhos roxos, parindo framboesas, amoras e medronhos, sobre o veludo de vales verde- musgo. Cabeleiras vermelho-acobreadas cobrem as copas das árvores. Rebentos folhados, rasando o chão, são ninhos de sexos femininos. Abraça-os. Acaricia cabelos, lábios e clitóris rosáceos, com dedos e mãos e boca, de uma alvura pura, até então desconhecida. Ejacula sémen cálido, e logo, brotam erectos, ninhadas de cogumelos azulinos, da casca macia de todas as árvores. Os seus olhos são lagos esverdeados, onde boiam luas-d'água. No seu peito jovem, crescem raízes poético- eróticas. Recorda-se, num ténue momento, filtrado pela sua mente amolecida, das secas sementes de mágoas que havia plantado, germinado e crescido arbustos, com apêndices, agudos, de carne, num universo- outro. Desnudo, agora, dessa folhagem espinhosa, Pedro de Almeida flutua na linfa nívea de um êxtase inefável.

- Quem és tu? Que fazes nestes domínios interditos a bichos humanos?- pergunta-

-lhe, sem hostilidade, um cavalo - marinho. Esbelto. Belíssimo. Continua, fazendo silêncio. Não consegue articular palavras. A gramática da sua língua materna é uma massa pastosa de papel, mastigada por cardumes de peixes, colados ao seu corpo, com grandes pupilas mudas e curiosas. O roçar das escamas e a dança das caudas são carícias lascivas. O artista exulta.

- Quem és tu? Estás assustado? - inquire de novo, num tom sedutor, o cavalo-mar- inho

Como poderia responder-lhe? Pedro de Almeida, naqueles fundos abissais, faz a desaprendizagem dos códigos que conhecia, mas ainda não logra dominar a semiótica do mundo subaquático, onde começa a se sentir um estranho de si mesmo, facto que, ao contrário do que se possa pensar, é uma embriaguez de todos os seus sentidos. Um delírio narcótico. Opiáceo.


II

O cavalo- marinho afastou-se, uns centímetros, do seu corpo, mas Pedro continua a vê-lo num jogo labiríntico de espelhos abobadados, ad infinitum. Sustenta, deliciado, os elos que ligam aquela natureza subaquática ao seu corpo. Também ele está a conhecer a Beleza que não morre, mas, ao contrário, do poeta suicida açoriano, não fica triste. O Belo, aquele Belo, saboreia-o, como sendo uma dádiva. Fruto suculento da sua excessiva subversão, naquele meio. Basta-lhe, para isso, de agarrar não só aos laços da solidariedade cósmica, que o unem à totalidade do Universo, mas, também, aos átomos mítico-artísticos, fiando uma teia de fios entrecruzados. Solidários. Resistentes, como cordas de cânhamo. Vislumbra, com pasmo primordial, uma cabeça azul. Move-se. Agita uma longuíssima cabeleira. Os olhos são feixes de luzes vermelhas, que parecem ter escolhido, como alvo preferencial, a sua figura bárbara.

- Será a morte? Mas o que é a morte? E a vida? - pergunta-se, para o seu dentro.

Distante. Quase ausente. Avança, com passos estranhamente seguros, em direcção àqueles olhos, apesar de tudo, atraentes. Magnéticos. Irresistíveis. Faróis no fundo de uma mina de carvão ou de pirite. Encontram-se, face a face. A cabeça azul desliga, rápida, as luzes, sem que se saiba o porquê. Privado do rubor daquela claridade, logo se estanca a hemorragia da imaginação opiómana. Pedro despenha-se, brutalmente, no fundo da cratera extinta da suposta realidade-real. Começa a sentir arrepios de frio, e um gosto ácido de vómito. Desconhece-se. Tenta, dada aquela situação inesperada, carregar as baterias do cérebro. Dar corda ao pensamento liquefeito. Reencontrar-se múltiplo, é certo, mas inteiro. Fluí lenta, uma eternidade. Não consegue entender por que é que aquela cabeça azul, fez total escuridão no seu espaço. Finalmente, as engrenagens psíquicas começam a emitir signos e imagens sobejamente conhecidos, que lhe agradam, e, ao mesmo tempo, lhe causam náuseas, escorrendo, inelutáveis, no leito estreito das veias.

- Como me habituar, de novo, a este negrume, dito real? Bem! Atear outra vez o fogo? Escalar o Olimpo? Roubá-lo ao feio Hefesto? Como? Não sou Prometeu. - Vai ironizando, com pesar, e pisando a terra onde tinha plantado as sementes de todas as suas angústias existenciais.

- Vida e morte, o que são? - Inquire, sentado na base das esculturas de rochas magmáticas, onde, inicialmente, a narradora marcara encontro com Pedro de Almeida, para uma conversa de matriz artística, conversa, essa que não houve. Nem há-de ser uma conversa a haver.

Ora, o artista ainda não se deu conta que as esculturas rochosas são dunas feias, erosadas, pelas vândalas ventanias do tempo. Inevitáveis. Montes disformes de areia, ornamentadas de cactos, em cujos magriços troncos e folhas mutiladas, pequenas bolhas segregam líquidos licorosos, cheirando a baunilha , a cascas de cidra e a brisa marinha.

- Obra, esta, mágica? De quem? Para, com certeza, me aliciar com estes aromas excitantes? - pergunta-se, inalando aquele concerto aromático.

- Não! Não estou onde estou! Não sou quem me sou! Não estou a ver o que estou a ver! Não me cheira a nada do que me cheira! - exclama, num tom dorido, o estilhaçado artista, que pinta, recorrentemente, campos brancos de vívidas papoilas.

- Que injusta é a vida! Ou, não será desvida? Só a fuga, qualquer que seja, é a mais eficaz saída terapêutica. Chamem-me covarde! Ou, por que não, louco? Sim! Serei tudo isso. - Grita, fitando um poente abrasador.

Veste-se, demoradamente, e avança, descalço, sobre um areal deserto macio e ainda quente.

- Que farei esta noite?

Não responde. Não sabe. Não quer saber. Odeia programas, horários, projectos. Rebeldia? Anarquismo? Cepticismo? Tem grãos de tudo isto, mas é, sobretudo, um amante desmesurado da vagabundagem criativa e boémia, da marginalidade, paradoxalmente, selecta.


III


A noite pega-o pelos braços, e leva-o até aos restaurantes populares do cais. Cheira, profusamente, a sardinha, a chocos e a pimentos grelhados, além da maresia apimentada, que enche as narinas, quase entupidas de odores.

Chegam caravelas das Índias, carregadas de especiarias: cravinho, noz-moscada, canela, baunilha.

- Como estes aromas orientais me excitam! - confidencia, exclamativamente, às ondas que embatem na muralha do cais.

Afasta-se da borda. Escolhe uma mesa, de onde vê velas ondeantes. Pede ao empregado chocos grelhados, com todo o sumo preto, envolvendo batatas cozidas, e tingindo uma salada mista.

- Boa noite, Pedro! Como poderia te imaginar numa tasca destas! Mais uma das tuas excentricidades!

- Boa noite, Luís! E tu que fazes aqui? Cumpres a rotina popular das sardinhas grelhadas na brasa? Ou viestes assistir à descarga das especiarias da Índia?

- Deliras? Onde estás a ver caravelas? Que visões históricas, as tuas!

- Sabes, enlouqueci de vez. É o que estás a pensar. Diz lá! Ou, então, como só vês as prosaicas sardinhas, senta-te.

- Obrigado, Pedro. Não gosto de chocos, exactamente por causa de todo esse líquido preto. Mas...

- O que deseja, senhor?

- Traga-me, por favor meia dúzia de sardinhas, batatas e pimentos.

- Não quer uma salada?

- Não, obrigado. Não se esqueça de trazer azeite e broa, está bem?

- Com certeza. O que deseja beber?

- Pode ser uma cerveja bem fresca.

- Já não consomes bebidas alcoólicas, Pedro! Água mineral com gás! Sempre o culto da diferença!

- Não havia o vinho de que gosto. Aqui, só há o vinho da casa...

- Só bebes das melhores marcas, claro! Desculpa, já me tinha esquecido desse pormenor in...

- Luís! Chamas pormenor in ao bom gosto?

- Desculpa! Tens razão. A qualidade do vinho é importante, tão importante que, não a tendo, estraga qualquer refeição, por melhor que seja.

- Olha, Luís! Acaba de ancorar outra caravela. Não te cheira a canela?

- Estás mesmo louco, Pedro! Ou, então, queres-me fazer passar por cego? Só estou a ver um barco de pesca. Está partir para a faina da noite.

- Quanta opacidade no teu olhar! E, já agora, sabes dizer-me em que consiste a loucura? E, o que é a normalidade, Luís?

O Luís faz um silêncio denso. Só se ouve o marulhar das ondas e a Babel dos comensais de sardinhas.

- Então, não respondes, seu normalíssimo! Suspeito que não saibas que ser normal, de acordo com o conceito normativo, partilhado pela maioria das pessoas, não é saudável. Quem está doente és tu, Luís. Vá, diz-me o que achas sobre isto?

- Parece-me, Pedro, que te transformaste numa personagem ficcional. De papel. Desculpa! Estou a ser sincero. Repara, não tomaste a água que tens aí...

- Bem! Mudemos de assunto, se não te importas. Por que não vens trabalhar no meu atelier?

- Obrigado! Prefiro continuar a pintar na rua... A que conheces. E vender aos passantes as minhas aguarelas ou óleos acrílicos.

- Não te quero ofender, mas não estás farto de pintar trechos de paisagens desta cidade e arredores?

- Sabes, pinto o que as pessoas gostam. Assim, tenho sempre tudo vendido... Chama-

-me mercenário da pintura. Não me importo. Faço aquilo de que gosto, indiferente às concepções elitistas da arte.

- Claro! Continua. Desculpa, mas, no meu atelier, serias um autêntico e reconhecido artista, ainda que não vendesses as tuas obras. Como sabes, o que se vende mais, quer seja pintura, literatura, etc, não é, na quase totalidade dos casos, autênticas obras artísticas. Obras que ficarão na História. Diz-se, nos tempos que correm, que se trata de arte ligth. Não te incomoda a expressão?

- Não, Pedro. Não tenho a pretensão de ficar na História. Trabalho, como sabes, para viver. Ou, melhor para sobreviver... Dignamente, creio.

- Desculpa, Luís, mas não consigo estar de acordo contigo. Prefiro ser o louco, como me rotulaste, há pouco. Louco e lúcido, como, habitualmente, me defino. Sem loucura, não há, na minha opinião, genuínos artistas.

- Respeito as tuas ideias, mas...

- Mas, o quê?

- Não saberia viver como tu...

- De acordo... Não é fácil. sabes? Paga-se uma factura extremamente pesada, mas, não seria capaz de mudar.

- Tomas café, Luís?

- Não! Vou pedir um descafeínado. E tu?

- Um café, claro! Puro. Bruto. Com muita cafeína... Trabalho muito pela noite dentro. Preciso, por isso, desse excitante... e de outros... Conheces algum artista sem vícios? Eu não. Os verdadeiros, é óbvio... Não te quero ofender, Luís...

- Eu sei. Não somos todos iguais. Felizmente.

- Queres um cigarro de cannabis ?

- Não, obrigado! Já sabes que não consumo nenhuma droga...

- Desculpa! Estou a ser perverso. Mas, arte, sem perversidade...

- Vamos! Faz-se tarde.

- Sim. Já vais voltar para casa?

- Claro! Não te esquecestes que tenho família?

- Não, Luís, mas não é tão tarde quanto isso...

- Não gosto de fazer uma vida boémia, como tu. Trabalho muito durante o dia, e levanto-me sempre cedo. Dirás que é normal, mas não saudável?

- Cada um tem o seu ritmo biológico, digamos. Respeito o teu, mas... Eu ainda vou passar um bocado de tempo no bar " Néctar dos deuses". Conhece-lo?

- Já ouvi falar dele. Diz-se que é o bar dos gays e dos artistas desta cidade. E que mui- tos desses habituais frequentadores consomem drogas duras.

- Incomoda-te, se, de facto, isso é verdade?

- Não! Nada!

- Sim. O que se diz corresponde à realidade. Não te vou negar. Eu, por exemplo, quando lá chego, começo por tomar um gin- toni ou uma Vodka- citron ou ananás, e, ao mesmo tempo, vou fumando uma "chinesa". Heroína puríssima, sabes?

- Bem! Isso vem ao encontro do que disseste, há pouco, a propósito dos vícios de todos os artistas, não é verdade?

- Não te disse nada de novo, creio. Pois não?

- Claro! E só no dentro fundo da noite te metes no atelier para trabalhar, não é? Sabes, nunca te disse, os fumos das drogas são os círculos que ondulam nas tuas telas. Círculos e, muito recorrentes, volutas roxas ou púrpuras. Estás de acordo com esta minha leitura?

- Talvez. Não sei. É uma das várias leituras possíveis. Discutíveis, como todas.

Caminham, conversando, à borda do cais. Minutos depois, cada um seguirá trajectos opostos.

- Boa noite, Luís. Dá os meus cumprimentos à Ester. Até à próxima!

- Que seja louca a tua noite, Pedro!

- Será. Obrigado!


IV

Eram quatro horas da manhã quando Pedro de Almeida, depois do consumo excessivo das suas drogas habituais, entra no seu atelier, com a intenção de concluir uma tela. Antes, porém, acende e fuma um charuto do Fidel.

- Como é que o Luís consegue ter uma vida tão sensata e prosaica? Bom! Não serei eu a lhe dar uns grãos de loucura, como se dá grãos de milho aos pombos da Praça Infante D. Henrique... Fala para as paredes, acabando de fumar o seu charuto. Entrega-se, finalmente, ao trabalho, concluindo uma tela que lhe parece ter saído da mente de Salvador Dali. Desagrada-lhe a semelhança. Sente uma vontade feroz de esfaqueá-la. Procura uma faca por todo o atelier, ou um outro qualquer objecto cortante afiado. Pega num corta- papéis, e, com gestos dementes, retalha a tela, ainda com as tintas frescas. Olha para as mãos. São um mata-borrão, com cores gritantes. Enfurece-se. Procura os diluentes. Tropeça. Entorna-os. Esfrega as mãos no pavimento encharcado e escorregadio. De súbito, mergulha no seu mar. Afunda-se. Ei-lo, de novo, no mundo subaquático. Aquela cabeça azul, com feixes luminosos nos olhos, logo dele se aproxima. Mas, desta vez, não desliga as luzes. São raios laser Esquartejam -no, como bisturis benéficos. Na tarde do dia seguinte, o Luís, depois de ter pensado na proposta de Pedro, decide dirigir-se ao seu atelier. Empurra a porta semi aberta, e entra, chamando o amigo. Silêncio. Estranha a desordem inusitada, como se, por ali, tivesse passado um furacão. O cheiro a óleos e a diluentes derramados enjoa-o.

- Mas... que se terá passado durante a madrugada? - interroga-se, num tom ténue, avançando até um recanto do atelier, com uma janela por entra o mar. Amontoam-se telas inacabadas, viradas do avesso e cavaletes mutilados, por sopros esquizofrénicos. Figura-se o pintor de paisagens. Pedro dorme em cima dos destroços de um cavalete, colado a uma massa pastosa de uma tela. Tem, no peito, um belo búzio rosáceo, de onde jorra um fio de sangue, que desagua numa lagoa exígua. Soa, solene, uma sonata marítima. Orquestrada pelo búzio?

Conto inédito (colectânea de contos intitulada CAVALO DE FOGO e Sub-intitulada CONTOS ATÍPICOS - no prelo).

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