Creio na poesia, no amor, na morte.
Giánnis Ritsos
I
A noite faz- se, sem a mínima cintilação, num céu
de um cinzento arroxeado. Sentado, num banco de pedra basáltica, o arquitecto
Jorge de Albuquerque olha, meditativo, para umas dunas erosadas, e pergunta-se,
perplexo, qual a idade que tem, ou seja, a idade que sente ser a sua. Olhos
negros, fixos no movimento da brisa iodada, a resposta demora-se dentro de um
tempo perplexo, por eventos que não queria que tivessem dado à
costa da memória. Não havia outra alternativa que não fosse
sacudi-los, como fazia aos mosquitos que lhe rondavam o rosto. De súbito,
o eco de uma voz jovem ecoa-lhe no fundo do peito, com uma serenidade macia.
Não tinha a idade que tinha, conclui, com júbilo, sorrindo do
paradoxo. Não, não importava a idade registada no Bilhete de Identidade.
Fizera, na véspera cinquenta anos, mas fora, seguramente, engano, pensa,
espreguiçando-se, com um prazer, até então, desconhecido.
Não, não pensaria mais no que lhe havia acontecido, há
cerca de três anos, disse, como se tratasse de um pacto firmado com ele
próprio.
- O senhor arquitecto não vem jantar? Já está na mesa,
e já o chamei várias vezes...
- Desculpe-me, Dª Rosalina! Não a ouvi me chamar, estava distraído,
a olhar para o mar. Vou já. Obrigada!
Levantou-se. Estava orgulhoso do seu corpo elegante e ágil. Não
tinha, com efeito, a idade que tinha, repetiu, em voz baixa, com um acento de
uma verdade irrevogável.
Quando acabou de jantar, pegou num dos muitos livros que levara para a sua casa
de praia, e entregou-se à leitura, como se abraçasse uma mulher.
Sim, outra acabaria por o seduzir, pensou, com um olhar brilhante, voltejando
fora das margens do livro de poesia que estava a ler.
- Desculpe-me, senhor arquitecto, mas não me pediu, como costuma, depois
do jantar, um copo de whisky. Aqui o tem. Desculpe-me!
- De nada, senhora Rosalina. Obrigada!
Retoma a leitura, mas os seus pensamentos são crinas fulvas e esvoaçantes.
Tenta encontrar uma explicação racional para o seu estado de espírito,
mas uma espécie de medo indefinido apodera-se do seu corpo excitado.
Não se recordava de ter desejado, durante os últimos três
anos, fazer amor com outra mulher que não fosse... Fecha, bruscamente,
o livro, e lança-o para o chão, de mármore róseo,
como se tivesse desembaraçado de um corpo que lhe repugnasse. Estranha
aquele gesto, por certo, simbólico, mas...
- O senhor arquitecto chamou-me?- pergunta-lhe a Dª Rosalina.
- Sim! Diga, por favor, ao senhor Manuel que eu vou sair.
Sim. Que ia já avisá-lo.
O arquitecto, nem em férias, dispensava o seu guarda - costas. Achava
que tinha inimigos que o perseguiam. tê-los-ia? Por que motivo? Mania
da perseguição? Talvez... Com certeza...
- Bom! Não vou pensar nisso! Quero dar-me ao luxo de fazer uma loucura
esta noite Acabou este cenobitismo, sem sentido! Chega de só me entregar
ao trabalho, ou, em férias, deixar-me ficar neste refúgio! - Diz
em voz alta, como se falasse a um ele- outro.
Mete-se no carro e acelera. Vai a Lagos, com o intuito de passar o resto da
noite num bar, não deixando, no entanto, de o perturbar a mudança
abrupta do seu estado de espírito.
II
- Há quanto tempo não saio à noite, Sr. Manuel? Recorda-se?
- Há vários meses, Sr. arquitecto... Mas não me lembro
há quantos... Posso fazer-lhe uma pergunta? Desculpe-me.
- De nada! Faça, Sr. Manuel.
- Por que escolheu o bar mais pacato desta cidade? Desculpe-me a curiosidade...
- Sabe, Sr. Manuel, é como se estivesse a dar os primeiros passos...
Entende?
- Acho que sim... Em todo o caso, quando o Sr. arquitecto saiu de casa...Sabe?
Pareceu-me mais entusiasmado... Não sei bem como dizer... Desculpe-me...
- Sim, talvez o Sr. Manuel tenha razão... Muda-se de humor tão
rapidamente...
- Bem! Vou entrar, mas não me devo demorar muito tempo... Esteja atento,
como seu hábito...Mas ... estes ambientes exigem cuidados redobrados.
Não se afaste do passeio. Está bem?
- Com certeza, Sr. Arquitecto.
O arquitecto entra no bar, procurando uma mesa donde possa ver a saída.
Não consegue despir-se do medo, daquele medo. É como se fosse
uma segunda pele, pensa, com os olhos postos na porta.
- Que deseja tomar?
- Traga-me, por favor, um whisky velho.
- O senhor deseja com gelo?
- Não, obrigado.
Cruza as pernas, para se sentir mais descontraído e, lança um
olhar, quase furtivo, à sua volta, como se se tivesse evadido de uma
prisão. Dá-se conta do sem sentido do seu comportamento mas, vulnerável,
inspecciona todo o espaço. Sente-se, ao mesmo tempo, recluso foragido
e guarda perseguidor de si mesmo.
- O Sr. deseja mais alguma coisa?
- Não, obrigado!
Acende um cigarro, depois de um pequeno gole. Tenta distrair-se, olhando à
sua volta mas, de súbito, os seus olhos tombam no fundo do copo. Engolidos,
compulsivamente. Reage, esbracejando, sem êxito, nas águas que
se enraivecem dentro do peito. Toma um grande gole e puxa, com fúria,
o fumo do cigarro, apertado entre dos dedos esguios e trémulos, tentando
se libertar das vagas de mágoas que lhe vêm bater contra as paredes
frágeis do coração.
- Não! Não! Não saí de casa para isto! Não!
Estaria melhor em casa, lendo poesia, pensa arrependido de ter saído
do seu retiro. Não sabia porquê, mas a verdade era que a poesia
era uma escrita que o libertava, uma espécie de fonte de água
límpida, que lhe lavava as tintas escurecidas da abobada da alma.
- O Sr. arquitecto ligou-me?! Tão cedo! Desculpe-me...
- Sim, Sr. Manuel. Vou regressar a casa. Já. Não suporto ambientes
desta natureza.
- Com certeza... Vamos, então, regressar? Desculpe-me, não lhe
faria bem dar um passeio a pé pela marginal? Não tenha receio.
Eu sigo-o, também a pé, Sr. arquitecto.
- Talvez tenha razão, Sr. Manuel. Siga-me, por favor.
O mar é uma colcha de prata, salpicada de escamas luzidias. De pé,
deslumbrado, o arquitecto não consegue afastar as mãos daquelas
escamas. Acaricia-as, às costas macias de uma sereia. Ali, enovelado
em recordações eróticas, vai-se ausentando da realidade,
despegando-se do tempo, desconhecendo-se. O Sr. Manuel, esse, deixara-se ficar
encostado ao tronco de uma palmeira, olhando para o patrão, à
espera que este se desplantasse da calçada do passeio. De súbito,
vê um gato enorme, com os olhos, rubramente acesos e faiscastes, aproximar-se
do arquitecto. Dá dois passos muito rápidos mas, logo, desiste
de se aproximar do patrão, quando, atónito, não quer acreditar
nos seus olhos. O gato enrosca-se nas pernas do arquitecto, e este, que não
gostava de felinos, toma-o nos braços, acariciando-lhe a cabeça,
como se fora a farta e cetinosa cabeleira de uma amante. Não era possível!
Aquela gata fulva e macia acabava de o seduzir, de se lhe entregar. Sim. Afinal,
era verdade o que, vulgarmente, se dizia a propósito dos gatos. Eram
eles, com efeito, que escolhiam o dono, não o contrário, como
acontecia com os cães. Mas, por que o havia escolhido, a ele, aquela
gata? Interrogava-se, confuso, e, ao mesmo tempo, inexplicavelmente satisfeito.
Levá-la-ia para casa, dizia , docemente, à sedutora gata.
- Sr. Manuel! Vamos regressar. Não estranhe, mas julgo que já
percebeu que esta gata também vai connosco.
- Sim, Sr. arquitecto! Por que não? Vê-se que é uma gata
abandonada e que gostou do senhor... sabe-se lá porquê...
- Também não sei, Sr. Manuel... Levamo-la. A Dª Rosalina
deve saber como tratá-la.
- Sim, ela adora gatos, como o Sr. arquitecto sabe.
- Bem! Vamos! A gata vai no meu carro.
- Não vá arranhar os estofos, Sr. Arquitecto!
Já tinha fechado a porta e, portanto, nada ouviu, salvo, naquele momento,
um ronronar feliz da gata, com a cabeça deitada nas suas pernas.
III
Mal abriu a porta do carro, a gata saltou para o chão, num voo rápido
e seguro, como se acabasse de regressar a um local sobejamente conhecido, o
seu, desde sempre, facto que não deixou indiferente o arquitecto, com
um grito estrangulado na garganta, não sabia porquê. Pensaria nisso
mais tarde. Naquele momento, o importante era instalar a gata, ainda não
decidira onde.
- Diga-me, Sr. Manuel, onde acha que devo pôr a minha princesa?
- Não sei... Não sei, Sr. arquitecto. Parece-me que ela já
escolheu o lugar da sua preferência...
- Por que me está a dizer isso, Sr. Manuel? Ela desapareceu daqui, da
garagem enquanto estávamos a falar. Viu em que direcção
ela foi?
- Sim! Senão, não tinha dito que ela já tinha escolhido
o seu canto...Sabe, ela já está dentro de casa, e, se bem adivinho
os hábitos dela, deve ter-se instalado numa poltrona da sala. Creio mesmo
que na sua, Sr. arquitecto... O melhor é irmos verificar, não
vá estragar o veludo das poltronas, não acha?
Efectivamente, a princesa, toda vestida de pêlo fulvo, com olhos verdes,
de um brilho hipnótico, aninhara-se na poltrona onde sempre se sentava
o arquitecto, quer para ver televisão, quer, sobretudo, para se dar inteiro
à leitura, único verdadeiro prazer que lhe restava, além
do vício do tabaco, vício - prazer, como costumava dizer a quem
o acompanhava a deixar de fumar.
- Não acha tudo isto estranho, Sr. Manuel? Eu diria, mesmo, misterioso...Parece
que já aqui viveu... sei lá!... E eu? Eu não gostava de
gatos... Diga-me qualquer coisa, por favor!
- Que lhe hei-de dizer, Sr. arquitecto? Desde o aparecimento, não se
sabe de onde, da gata, na marginal, até o ter-se enroscado nas suas pernas,
e tudo o resto que estamos a ver é muito estranho... Como quer que eu
lhe explique, se o Sr. também está confuso... Que sei eu?...
- São tão imprevisíveis estes animais! Recorda-se, Sr.
Manuel, se, porventura, a minha ex - mulher gostava de gatos ou se terá,
alguma vez, estado nesta casa, quando vinha passar alguns dias aqui, no Inverno?
O Sr. Manuel, veio trazê-la ao Algarve algumas vezes, se bem me lembro...
- Isso aconteceu nos últimos anos do casamento... passou muito tempo...
Não sei...Deixe-me recordar
O guarda-costas, com a testa toda enrugada, e os olhos semisserrados, mergulha
no passado com um certo ar nostálgico. Um silêncio pesado cai,
retumbante, sobre os ombros do arquitecto, de tal modo excessivamente pesado,
que se deixa cair na poltrona, tocando, sem querer, numa das patas da princesa,
que solta um mio lânguido e dorido. Uma carícia bastou para que
a princesa se deitasse no colo do arquitecto, estupefacto e indefeso. Iria ela
atrás dele, se se levantasse dali, perguntou-se, e, de imediato, põe-se
de pé, sem que a gata caísse, segurando-se às suas calças,
com pequenas garras.
- Que vou fazer com ela, Sr. Manuel? Ajude-me, por favor! Não sei como
não ceder aos seus caprichos. Parece que não quer que eu me afaste
dela... Onde vamos pô-la, que eu quero ir dormir? Diga-me, por favor?
- Experimente, Sr. arquitecto, afastá-la... e, logo, vemos o que ela
faz. Não percebo nada destes bichos!
Para onde quer que o arquitecto vá, a princesa segue-o, quase colada
a ele, com um olhar pedinte de protecção.
- Bem! Não me diga, princesa, que vai deitar-se na minha cama? - Pergunta-lhe,
com ternura, o arquitecto. Mas... Mas...
Num ápice, a gatinha salta para cima da cama, e faz-se num novelo, no
lado oposto àquele onde costuma deitar-se o arquitecto. Assim fica, enquanto
o companheiro se vai despindo, atrapalhado com aquela situação,
já porque não quer contrariar a sua linda princesa. Ao mesmo tempo,
porém, não consegue explicar tudo o que lhe tem vindo a acontecer
desde a queda arroxeada da noite. Mas, como poderia ter-se transformado num
quase desconhecido de si mesmo? - interroga-se. Não! Não! Não
está a sonhar! Mas... O que se estará a passar dentro dele...
Debalde, se pergunta, já em pijama.
- Bem! Boa noite, Sr. Manuel! Vou me deitar com a gata ao meu lado. O que é
que o senhor faria se estivesse no meu lugar?
- Não sei! Estou a achar tudo isto tão estranho, que a minha cabeça
já não funciona. Amanhã, falamos com a Dª Rosalina.
Talvez ela tenha outra solução que agrade ao bicho. Boa noite,
Sr. arquitecto!
IV
Na manhã seguinte, depois de uma noite mal dormida, dada a tempestade
que assolou a mente do arquitecto, este dirige-se à cozinha, onde a empregada
acabava de lhe preparar o pequeno - almoço, pronto para lhe contar a
história da gata.
- Bom dia, Sr. arquitecto! Então, como passou a noite com a gata? Desculpe-me,
mas parece-me uma história de novela. Ah! Lá vem ela! Que linda
gata! Deve ter fome.
- Dê-lhe comida, por favor. Depois, leve-me o pequeno almoço. Hoje,
vou tomá-lo na sala de jantar.
- Sim, Sr. arquitecto. Vou arranjar qualquer coisa, enquanto não se compra
comida própria para gatos.
A princesa parece ter percebido toda aquela conversa, porque saiu logo da cozinha
e foi sentar-se, na sala de jantar, na cadeira ao lado da do arquitecto.
- Bem! Assim sendo, trago-lhe já o pequeno- almoço. Quem sabe
se ela também gosta do mesmo. Já não estranho nada... Até
me faz lembrar a história de uma princesa encantada...
- Vamos ver se ela gosta de torradas com leite, Dª Rosalina, diz o arquitecto,
a sorrir. Num prato fundo, a empregada mistura migalhas de torradas com leite
e coloca-o em frente do focinho da gata, a qual, sofregamente, tudo come, e
acaba lambendo o prato com um charme principesco, sob o olhar atento e incrédulo
do arquitecto, que, só minutos depois decide tomar o seu pequeno almoço,
com o coração num alvoroço indizível.
- Tome conta da princesa, enquanto o Sr. Manuel e eu vamos a um supermercado
comprar umas latas de comida para ela.
- Com certeza, mas..., mas, Sr. arquitecto, não sei se ela vai aceitar
ficar comigo. É tão esquisita!
- Vamos ver... Espero que sim... Não vá ela meter-se no meu carro!
Olhe! Olhe, Dª Rosalina lá vai ela a correr para a garagem.
A princesa, sabe-se lá como, pareceu adivinhar as intenções
do dono. De facto, mal este abriu a porta do carro, ela saltou para o banco,
e, logo depois, se deitou, voluptuosa, nas pernas do arquitecto. Embora, a este,
lhe agrade o calor daquela beleza, não consegue compreender nem o seu
comportamento, nem o da gata. Por mais que se esforce, não encontra respostas
para as suas inquietas interrogações, o que lhe rouba a tranquilidade
que veio à procura naquela casa, plantada à beira mar, e, por
ele mesmo, projectada, dois anos antes de se ter casado.
V
- Desculpe-me, mas o Sr. arquitecto nem sequer comeu toda a sobremesa. Não
gostou do gelado de framboesas e chocolate? É uma receita do tempo da...
O arquitecto tirou-lhe a palavra da boca, para lhe dizer que o gelado estava
delicioso, mas que se tinha distraído, olhando para a gata, que nada
tinha comido do conteúdo daquela lata. Talvez o facto de ter visto a
imagem de um gato no rótulo a tivesse incomodado. Seria melhor não
pôr a lata à sua vista. Calou-se durante uns segundos, tendo caído,
inadvertidamente, no fosso fundo do passado, talvez por causa daquela alusão
feita pela empregada. Acrescentou, ainda um tanto respingado de frias lembranças,
que, doravante, a comida da gata seria posta no prato, na cozinha, e, só
depois, trazida para a sala de jantar, onde ela insistia em se sentar, ao seu
lado.
Que estava bem, disse a empregada.
- Onde está ela agora? Viu-a passar para algum sítio?
Que não, que se tinha distraído com a conversa.
- Então, se não se importa, vá procurá-la. Está
bem? Terá ido para a garagem?
Dª Rosalina foi encontrar a princesa, toda enroscada, na poltrona do patrão,
como se estivesse à sua espera, para se pôr no se colo, pedindo,
com um olhar lascivo, que ele a acariciasse na cabeça e na barriga, o
que a fazia transbordar de prazer, prazer, esse, revelado através da
posição das patas, com as garras guardadas nas bolsas sedosas.
- Está na sala, Sr. arquitecto. Parece-me que está à sua
espera, como já a habituou.
- Deve ter razão, Dª Rosalina. Ainda não tinha pensado nisso...
Uma gata abandonada, mostrando tantos mimos e caprichos, não me parece
normal, mas... Mas que sei eu sobre os hábitos desta espécie de
animais? Nada. Nunca quis ter nenhum animal, não sei porquê, mas
esta... esta gata conquistou-me... Foi um autêntico coup de foudre...
- Como? Não percebi o que o Sr. arquitecto acabou de dizer... Não
se importa de...
Calou-se, talvez com vergonha da sua ignorância. Como sabê-lo?
- Sabe, Dª Rosalina, o que nos aconteceu, a mim, e à princesa, é
como se fosse um amor à primeira vista.
- Sim! Assim percebo o que isso quer dizer. Só pode ter sido isso...Embora
eu não soubesse que podia acontecer com um animal. Está-se sempre
a aprender coisas, não é verdade? Por sinal, esta é muito
estranha... Mas... Sei lá... Há tanta coisa que a gente não
entende.
- É verdade. Também eu não compreendo o que se terá
passado, Sabia? Não tenho a certeza do que lhe disse... Bem! Vou, então,
ver a minha caprichosa... Até já!
Ronrona, quando se apercebe da chegada do dono. O ronronar toma acentos de sedução,
aos quais o arquitecto não resiste, sorrindo como Narciso apaixonado,
mirando-se nas águas. Pega-a ao colo, senta-se, e entrega-se à
sua princesa, fazendo-lhe as carícias mais excitantes, resvalando, sem
se dar bem conta, para um corpo-outro, de uma Eva não mítica,
gotejando águas genésicas, onde, avidamente, mergulha, e engrossa,
com as dele, o caudal do leito da posse erótica. Estava a ficar louco?
Perguntou-se, sentindo-se todo transpirado, como se tivesse acabado de fazer
amor. Como aquela gata o hipnotiza? Não! Não! Levanta-se, de repente,
mas não consegue que a princesa se desprenda das suas calças.
Dá um passo brusco, sacudindo-a, e apressa-se a ir ao jardim, para respirar
um pouco do ar marinho, naquele fim de tarde, regado de sumo fresco de laranja.
A gata deitara-se na relva, com os olhos postos nas pernas esguias do dono,
com um ar de quem devaneia ou esvoaça.
- Que hei-de eu fazer? Estou a perder a minha independência? Sim! É
isso mesmo... Não vou permitir que aquela louquinha de gata me roube
o que tenho de mais precioso
Mas... Mas como? Quero respirar um pouco,
mas só! Está a ouvir, minha princesa? Vivemos juntos, mas sem
perdermos a liberdade. Entendeu, sua gata possessiva? Vá dar um passeio
e deixe-me aqui só, pelo menos, uma hora, ouviu? Vá! Se não
lhe apetece passear no jardim, vá até à cozinha. A Dª
Rosalina também gosta muito de si... Então! Quer que eu a leve
lá?
O arquitecto dirige-se e à cozinha, com a gata ao seu lado.
- Srª Rosalina, tome, por favor, conta desta caprichosa! Preciso de estar
só e sossegado, pelo menos durante uma hora.
- Com certeza, não me custa nada. Vou pegá-la ao colo, para ver
se a cativo, não vá ela começar a correr atrás do
Sr. arquitecto.
Afasta-se, fechando a porta, e pensando que o facto de não ter tido,
quase durante vinte e quatro horas, um espaço físico e psicológico
somente dele, estava-lhe a perturbar o equilíbrio emocional, muito precário,
é certo, mas o que lhe era possível conquistar, com a ajuda de
uma especial filosofia de vida.
VI
O horizonte, àquela hora, era, ao contrário do da véspera,
uma colcha alaranjada, com uma longa franja de fios de sangue, que flutuavam
nos céus e caiam, gota a gota, na espuma branquíssima das ondas.
Não tardaria, o Sol seria um grande ovo de fogo, sugado pelo mar. Ficou
à espera desse momento de uma beleza sublime, e, recuperada a sempre
ténue tranquilidade, sentou-se no seu banco de basalto, folheando, com
vagares pacientes, como os do avô a fumar o seu cachimbo, a história
que estava a viver desde a véspera. Mas, nem tempo teve de reflectir
sobre ela. A princesa salta-lhe para cima das pernas, e, garras erectas, puxa-o
pelas calças, com mios tingidos de nuances de socorro urgente.
Imperativo.
- Que me queres dizer, minha princesa? Que te aconteceu? Quem te maltratou?
-pergunta-lhe, acariciando-lhe, preocupado, as orelhas eriçadas. A gata
não se lhe entrega, como ele estava à espera, e os mios eram setas
atiradas ao peito. Perplexo, sofrido, o arquitecto ainda tentou, em desespero
de causa, usar as armas da sua sedução, mas, estranhamente, a
gata não se deixa seduzir. Puxa-o, arrasta-o, com uma violência
insuspeita. Nada! Nada, porém, conseguiu fazer para a dissuadir das suas
ilegíveis intenções, intenções ocultas nos
seus olhos gritantes.
- Dª Rosalina, acenda, por favor, todas as luzes do jardim e os candeeiros
do exterior do portão, disse, num tom deveras aflito.
- Aconteceu alguma coisa, Sr. arquitecto? Que se passa? A princesa está
a puxá-lo e já fez um rasgão nas suas calças. Que
quer ela? Fugiu da cozinha alvoroçada. Nunca vi
nada assim... nada disto, a não ser nas telenovelas ou em filmes na televisão...Credo!
- Sossegue, Dª Rosalina! Vou me deixar levar por ela, até onde ela
quiser.
- Vamos, princesa! Não precisa de me empurrar ou de me rasgar. Ouviu,
sua mimada! Vamos! Não vê que me está a preocupar com os
seus modos agressivos, minha doce princesa? Vamos!
- Tão insólita, esta situação! Que quer esta gata?
Já não sei em que pensar..., ia dizendo em voz baixa, enquanto
a gata o levava, com rasgos apressados, até o portão.Este, de
ferro verde- escuro, estava fechado, como sempre, e, do exterior parecia blindado.
A princesa mia e arranha-o, com um furor, aparentemente, forrado de absurdo.
O arquitecto decide abri-lo, sob pressão da felina. No chão da
calçada, jaz estendido um corpo de mulher, todo empapado em sangue. Os
sapatos, com saltos altíssimos, pareciam ter sido, violentamente, atirados
pelos ares, e a mala era um ventre aberto, donde saiam as entranhas. Mudo, o
arquitecto olha para a princesa, que, em alvoroço, salta para cima daquele
corpo, todo vestido de preto, com manchas esbranquiçadas de luar. Ao
lado, de um saco de viagem, em pele genuína, solta-se, de repente, espreguiçando-se,
um grande gato de pelagem fulva. Olha à sua volta. Primeiro, um tanto
aturdido. Depois, dá um salto ágil, e, num gesto de uma ternura
comovente, encosta-se à gata, toda enovelada sobre aquele cadáver
de uma mulher irreconhecível.
A Lua, naquele estrito momento, como se estivesse arrepiada de frio ou de sofrimento,
agasalha-se numa mantilha de nuvens cinzentas, orlada de lantejoulas embaciadas.
De lágrimas?
Conto inédito (colectânea de contos intitulada CAVALO DE FOGO e Sub-intitulada CONTOS ATÍPICOS - no prelo).