Louco é o que tem mais verdade que razão.
Carlos Nejar
I
A sala do minúsculo apartamento é, talvez, o tudo que sobra de
um cismo inominável. São vidraças estilhaçadas,
portas partidas, esburacadas, sujas, sem fechaduras; são cortinados rotos,
roçando o soalho; são carpetes puídas, descoloridas, palco,
suponho, de inúmeras batalhas perdidas, dada a exibição
do cortejo prolixo de despojos: garrafas partidas de Whisky ou de Vodka; copos
de cristal decapitados; lascas de pratos de sobremesa, de Limoges, por todos
os cantos; sapatos de saltos altíssimos, arrogantemente intactos, desafiando
a pequenez ridícula dos pés que andaram dentro, altivos e seguros,
parece, num tempo, há muito, arrastado, inexoravelmente, para a foz do
frio; seringas e velas e pequenas colheres, à espera de um rasgo ténue
de lucidez; jornais, lidos ou não, amarrotados, amarelos, rasgados, em
cima das mesas; folhas A4, com esboços de flores, de poemas feridos,
e de cicatrizes, nunca cerzidas; revistas e gravuras, esparsas, com fissuras
de raivas frias; lombadas de livros com fracturas expostas; beatas de cigarros
e de charros de cannabis, além de cemitérios de cinzas;
sementes de sésamo, de cânhamo e de papoilas; muitas peças
pretas de lingerie, algumas vermelhas, nos braços flácidos de
uma poltrona, de veludo, que teria sido, em tempos florescentes, cor de ouro
- velho.
Sob um friso de um pano de parede, um espelho oval, enorme, exibe fúrias
felídeas, em frente do qual, sobre um móvel Luís XV, um
Gato de Escritor tenta, enraivecido, encaixar as peças do pudzle
do seu rosto primordial.
A narradora não ousa penetrar no quarto de dormir daquele minúsculo
apartamento.Por pudor? Medo? Pura discrição? Sim! Por tudo isso.
Não seja indiscreto, o leitor! Não pressione a escrevente. Não!
Não violemos o quarto. Imaginemo-lo. Não ousemos emitir juízos
de valor sobre uma hipotética decadência da protagonista, cujos
indícios, na sala, onde acabámos de entrar, nos sugerem. Sim!
Porque, de todo desconhecida, quem quer que lá esteja, ainda não
se dispôs a narrar-me a sua história, mas, ainda que o faça,
o que espero, em breve, ou daqui a algumas horas, sem a mínima pressa,
limitar-me-ei a ouvi-la, abstendo-me de qualquer julgamento. Fará o mesmo
o leitor, estou certa. Não me desiluda! Ainda nenhum de nós a
conhece. Esperemo-la. Estará, talvez - quem sabe? - a recompor a máscara
do mais sincero fingimento. Mera intuição. Que sei eu sobre as
personagens dos meus escritos compulsivos, antes da sua aparição?
Nada! Nada! Surgem, inopinadamente, do avesso de um espelho, como se saíssem
de um vazio branco - árctico. De um frio perturbador. E, com uma espécie
de tirania esclarecida, debitam no leito da minha escrita, o caudal das suas
vivências, sempre humildemente nobres.
II
- Adónis! Adónis! Salta desse móvel! Vem aqui, querido!
O teu belo rosto está neste
espelho, meu tontinho! Vem! Imagino que tenhas as tuas lindas patas feridas!
Estás a ouvir-me?
- Que mio doce e dorido!- diz Sarah - aproximando-se, para acariciar os bigodes
do seu Adónis, e limpar-lhe o sangue das patas, que, dóceis, se
entregam à dona, com um brilho ametista nos olhos.
- Mira-te neste espelho! Vês! Vês como és belíssimo?!
Chega! Vem te deitar em cima da capa de Fleurs Du Mal. O Baudelaire não
se importa! Sabes porquê, meu gato narcísico? Ele adorava todos
os felinos, além de narcóticos, poesia, música, evasões
ópticas, viagens reais ou ficcionais, mulheres misteriosas, excêntricas,
caprichosas, belas, decadentes ou degradadas. Sabias que ele detestou Lisboa?
Disse que achava que o povo português não gostava de árvores.
- Bem! Chega de lições! Eu já te enivro com o aroma
exquis do meu charro de cannabis. Ou preferes, antes, um arenque
fumado? Bom! Enquanto o vais saboreando, eu leio o poema que dediquei a uma
das tuas amantes. Quantas amantes já conquistaste, meu D. Juan?! És
tão volúvel!... Já te deste conta? Isto não é
uma crítica. Não te ofendas! Antes assim, do que preso a fidelidades
estéreis! Bem! Vou preparar um charro para nós! Queres?
Ou vais adormecer, prosaicamemte, com o papo cheio? Adormece! Eu entrego-me
a este delicioso fumo, enquanto não chega o Apolo que seduzi esta tarde,
na FNAC, junto da prateleira de poesia e de teatro. Como já sabes, se
não for eu a... todos têm medo da aranha que sou... Estás
a ouvir-me? Não, claro! Já ressonas...
III
- Sarah, posso entrar?
- Sim, entra! Mas, por favor, não estás a ver o que estás
a ver, de acordo?
- Só te estou a ver, a ti...
- Queres fumar? Não! Daqui a pouco... Beija-me! Aperta-me nos teus braços!
Diz-me que me desejas, apesar de ter sido eu a...!
- És bela! Adoro os teus cabelos negro- avermelhados! Adoro-os, assim,
compridos!
Fumemos, então! Aqui? Ou vamos para o teu quarto?
- Como queiras, Aphonso! Trazes toda a chuva, da qual te falei, para regares
a minha orquídea selvagem?
- Sim, querida! Vamos!
- Cheira-me a incenso de ópio. Não preferes o da cannabis?
- Sim, mas... Apeteceu-me experimentar este, mas, na verdade, excita-me mais
o clima do da cannabis. E tu? Ainda não me disseste! Aliás,
que sei eu sobre ti? Nada.
- Adoro o teu perfume! Doce! Quentíssimo!
- Comprei-o esta manhã. Só conhecia a marca. Apaixonei-me pelo
nome de Indécence, da Givenchy.
Aphonso invade o desmesurado decote e beija-lhe os seios. Lambe-os. Morde-os.Com
doçura e fúria. Embriagado.
- Sabes? Já to disseram, claro! Até a tua respiração
é erótica, sua sedutora satânica!
- Sim! - exclama, num gemido. - Abraça-me! Estrangula-me! Chama-me de
fêmea!
- Deixa-me te despir! Ritualmente. Adoro ritos e símbolos eróticos.
Para mim, fazer amor é uma arte, uma arte poética.... não
me conheces...
Vai despindo a camisa, lambendo-lhe o peito, navegando as mãos até
à cintura, enquanto desaperta o cinto, com vagares dóceis, diz-lhe
que apenas o animal humano é um ser erótico.
- Belíssimo! Que corpo de Apolo! Adoro-o! - vai dizendo, enquanto o beija,
demoradamente, entregando-se ao estudo da carta geográfica das sensações
daquele delicioso corpo jovem. Erecto, belo, penetra-o na sua boca, com um prazer
molhado e ardente. Devora-o.
IV
Sarah saboreia, na cama, abraçada a uma almofada, o Armani do
peito do amante de ocasião, e o cheiro, que lhe não apetece lavar,
do seu corpo.
De repente, começa a ver os rebentos verdes e tenros de um poema a irromperem
de um solo arenoso, algures, silenciosos. Fecha os olhos para os ver melhor,
àqueles rebentos, mas tudo se torna liso e vazio. Profundamente perturbador.Tenta
concentrar-se nos cheiros, nos sabores, nas sensações, no corpo
das imagens visuais e sonoras, que esvoaçam naquela atmosfera banhada
de um erotismo apolíneo, e, ao mesmo tempo, dionisíaco, mas, a
verdade é que, não encontra modo de ignorar uma espécie
de chamamento, ecoando do fundo do seu próprio abismo, ou melhor, do
vazio das suas águas primordiais. Levantou-se. E o parto de um poema
se fez. Fê-lo com os seus mesmos dedos, molhados de sangue. Poema de amor
e de morte.
- Bem! Que vou eu fazer? Volto para a cama? Não!... Agora, preciso de
um banho...Sou toda esperma, suor e sangue... Mas, onde me dói o que
me dói? - vai dizendo, num registro de voz magoado, sabendo o porquê,
num registro de uma voz- -outra ou de uma voz de uma mulher- outra?- pergunta-se,
ainda que não desconheça, desde há muito tempo, que sempre
se viveu ou desviveu múltipla, e, sacudindo filosofias, senta-se no soalho,
acariciando as orelhas do seu felino, fulvas e macias.
- Leva-me, meu querido Adónis, a tomar um duche bem quente! Vá!
Levanta-te, seu mimado! Vamos falando, enquanto tomo banho, está bem?
Vá, levante-se, seu preguiçoso! Vamos! Conte-me o seu último
idílio... Ah! Tem pudor em se dizer romântico?! Não seja
tolinho! Não há amor sem luar... Que sou eu senão uma lua,
escorrendo lavas de cio de todas as crateras? Queres imagem mais romântica
do que esta, meu querido Adónis? Vá! Estou à espera que
me relates a teu último romance... Não dizes nada?
Vês? Estou a acabar o meu banho... e tu nem ronronas... Que bela companhia,
a tua!
O Adónis espreguiça-se, com olhos lânguidos, fingindo-se
ausente, algures, no telhado das suas aventuras secretas.
- Apetece-te jantar? Tens alguma fuga programada para esta noite? Diz lá!
Com qual
delas estás a fantasmar? Sabes, não estou a gostar do teu
silêncio. Deixa-me só, seu ingrato! Ah! Como não vi! Então,
o menino está com uma crise de ciúme? Espere! Não saia!
Diga-me! Não gostou do meu Apolo? Interessante! O meu gato quer a exclusividade...
Claro! Está mal habituado... Raramente se sente preterido...
V
Injecta cocaína nas veias da sua gélida solidão, e amarrota,
num gesto inócuo, a plumagem dos seus vários pássaros de
arribação, pousados nas bordas das cisternas da sua memória,
ferozmente magoada. A boca da noite devora os ponteiros do relógio da
sala, e o pêndulo é um enforcado, balançando numa corda,
presa num galho de um pinheiro manso, estranhamente, solitário, segurando
uma duna, de um castanho-baunilha
- Quelle image affreuse! - Diz a francesa, que convive com a múltipla
Sarah, mas nunca quis aprender a língua portuguesa, e passa os dias,
quase sempre só, devorando poetas e trageógrafos da Antiguidade
Clássica, além de romancistas, vindos, directamente, de uma livraria
parisiense.
Sarah, a condenada à solidão eterna, como, recorrentemente, se
diz, viaja pelas vastidões cósmicas infinitas, dentro de um robe
de chambre preto e transparente. Exibe, sem disso se aperceber, o corpo
com a idade que não tem, sob repuxos rútilos de astros.
O Adónis, esse, reconciliado, e arrependido do seu egoísmo, fecha
a ternura ametista dos seus olhos, e enrosca-se no calor das pernas da poetisa.
Um vento frio investe, com uivos rubros, pelas vidraças esquartejadas,
mas aquele dois seres solitários estão ausentes, algures, em órbitas
distantes uma da outra, por imperativos diversos, porque, talvez, as palavras,
que se não dizem, são mais que palavras. Serão começos
de fins ou fins de começos, fundos de poços, sem fundos, abismos
abruptos, labirintos marinhos, Luas lívidas e mutiladas, telhados sem
traves, nem telhas? Ou - por que não? - a Sarah não fermentará
no seu peito a aspiração de um absoluto finito infinito? Como
sabê-lo?
VII
- Donde vêm todos estes lobos? - Pergunta Sarah, com gritos histéricos
- Adónis! Adónis! Onde estás? Responde! Estás a
ver esta alcateia? Não! Não! Adónis, por que me não
disseste que ias sair?! Egoísta! Como expulso estes bichos medonhos?
Não!Que estou eu a ver? Adónis! Adónis! Olha! Que louca
me pareço! São rebanhos de nuvens cinzentas, correndo nos céus,
vergastados pelo vento. Sim! Sossega, Sarah! São nuvens! Por que me não
dizes nada? Adónis, diz-me que são nuvens! Diz-me!
O gato sai do quarto de Sarah, bocejando, e esticando as patas, depois de um
longo sono na cama desfeita, desde a véspera, e aproxima-se da poltrona,
donde se soltaram os gritos que o tinham acordado. Sarah, depois de um delírio
breve, parece ter adormecido, com a cabeça descaída num dos braços
da sua poltrona, não se tendo dado conta de que o seu gato ali estava
para a acarinhar. Mas, como um maciço silêncio, de novo, se instalou,
deitou a cabeça nos pés gelados da dona, e entregou-se aos braços
do sono inconcluído.
VIII
Uma esfera de fogo dança dentro dos olhos do gato que, mal tinha acordado,
fazia com gosto, a sua higiene matinal, junto das pernas adormecidas da Sarah.
Perturbado com aquele clarão de laranja, desvia o olhar e muda de posição.
Agora, o fogo afaga o corpo da dona e seca, ao mesmo tempo, as suas patas recém
salivadas.
Levanta-se e põe-se a correr de um lado para outro, como sempre faz todas
as manhãs, desta vez, inquieto, com as orelhas eriçadas. Sarah
dorme. Dorme. Toda banhada de luz. O esfomeado felino, como a dona se demora
a acordar para lhe dar o pequeno - almoço, salta para cima da mesa, afiando
as garras na lombada de Fleurs Du Mal, e, em seguida, com um olhar melancólico,
não se sabe por que motivo, desata a desfazer, com gestos de uma raiva
incontida, uma revista francesa, que, parece, ainda estava virgem, pois fora
adquirida na véspera.
Quanto à Sarah, com o globo de fogo sobre olhos cerrados, dorme. Dorme,
estendida na esteira que ela mesma tecera, a esteira áspera do Nada.
Ou do Tudo?
O Adónis, com gotas grossas, escorrentes, de ametista, nos bigodes, lambe-lhe,
com uma doçura de seda, o ainda belo rosto, sem idade. Um pólen,
cor de mostarda, esvoaça ou flutua sobre os cabelos vermelhos. Pólen
de loucura? Ou de crisântemos? Sim! É o mesmo. " A loucura
é um crisântemo. Cresce só de noite."
Não sabe, porém, o fulvo felino, que " é o amor que
puxa o coração e a palavra chega ao ouvido, como de um moinho
a mó.
Conto inédito (colectânea de contos intitulada CAVALO DE FOGO e Sub-intitulada CONTOS ATÍPICOS - manuscrito aprovado para publicação na minha editora, mas à espera de apoios e patrocínios de Entidades Públicas).