A Garganta da Serpente
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Outubro de 1812, Península Itálica, Veneza

(Michelle R.D - Witch of the Love du Lac)

Saudações companheiros doadores inconscientes e a cada ser vivo consciente que comigo divide nada mais que a terra em que vivemos.
Que compartilham com este velha, todos os sabores deste mundo impiedoso, desta vida que é um jogo, destas noites tão tristonhas.
Sim, muito tempo passou e agora retorno para contar um pouco ou talvez muito do que há em mim.
Séculos petrificados pelo tempo, noite pós noite a brindar nada mais que a morbidez desfrutando da companhia do saudoso vazio que habita minha alma.
Curiosa a forma como uma de suas estações perpetua de forma absurda em todo meu corpo físico e estende-se por minha alma de forma surreal.
O inverno parece viver em mim, hoje, talvez como nunca, talvez seja minha própria essência cobrando-me o desligamento das formas positivas de vida.
Tola, não sei, insisto em prender-me a sentimentos glorificados por uma legião de insensatos.
Mas o que há em questão quando trata-se do que esta imerso nas profundezas do mar do seio humano? Da vastidão e intensidade de tudo que podem sentir, de tudo que acolhem e que também rejeitam?
Não, inquestionável é.

Demasiadamente complicado e inovador meu relato a tantos que conheço sem mesmo ter pousado sobre estes a nostalgia melancólica do olhar que chamam de atemporal.
Demasiadamente nova esta proximidade que cultivo convosco, com cada um presente, como talvez, jamais tenha criado.
Não, não me faltava coragem, era nada mais que a lei em mim.
Podem me compreender? Viver uma eternidade oculta, só, trancada em suas próprias angustias, é horripilante.
Será que podem compreender o que é viver vendo afetos envelhecer, partir e nada poder fazer?
Será que podem visualizar energéticamente a obscuridade que toma conta de alma límpida, revertida em sombria na eterna desventura de sua morada noturna?
Não, talvez não possam, mas podem sentir.
De tudo que ambos possuem, quando paro a refletir, vem-me a mente belos e perturbadores devaneios.
Devaneios saudosos, quem pode saber ao exato...

A tanto tempo, me lembro como se fosse ontem, lembro da forma que seus olhos me delineavam, de sua profundidade indescritível.
Lembro que afagava meus vastos cachos e me ninava a sonata ao luar, desprezando completamente o fato de entender o que eu realmente era, o que sou até hoje.
Costumava dizer a cada encontro, que não entendia nem acreditava de forma veemente que eu era de certo o que ambos tínhamos clara certeza.
Como um ritual, nada mais que um compromisso sem pressões, a cada noite a aproximação da 0:00 deixava sua doce e suave voz adentrar todo o meu ser com afinco, dizendo que nada faria alguma diferença, jamais.
Desde a noite que o encontrei pelos românticos arredores de Veneza, o quis para mim.
Passava não mais de 2:00 horas e como sempre minha única companhia além do gritar sarcástico de minha própria solidão, era o tilintar dos saltos de minhas longas botas em atrito com as pedras do chão que vagarosamente avançavam.
Nesta noite avançavam ainda mais inerte. Independentemente do quanto tinha conhecimento que deveria viver, naquela noite em especial, senti que deveria reduzir meus passos, observar e sentir a noite como jamais houvera sentido.
Foi um lapso inesperado de desejos, nunca levei tanto tempo para cruzar a mal iluminada "Il circo".
Passei a olhar nostalgicamente cada fresta, cada milímetro de tudo o que me cercava.
Comecei em deslumbre com a pureza sobrenatural do azul escuro do céu, estava mais belo.
Belo de um azul púrpuro, inesquecível, contornado por estrelas horas brilhantes, horas ofuscas, mas sempre perpétuas.
As pequenas casas antigas envoltas em meio aos pequeninos vilarejos pareciam providos de encanto e beleza ainda maiores, naquele momento pude enxergar pequenos detalhes quais não havia reparado, a sincronicidade da meia luz dos lampiões contrastando com os delicados vasos de flores com rosas e orquídeas espalhados a quase todas as pequenas e encantadoras sacadas era impressionante.
O asfalto, as pedras desdenhas iluminadas pelo reflexo do luar par perfeito para as verdes árvores de médio porte, eram para se observar.
Não só as pedras do caminho, seus desvios, pequenos buracos, tudo em junção mesclava-se de forma maior a umidade do frio .
Aquela cidade, àquela hora, unia-se ao cheiro do vinho das tabernas que podia sentir a distância, odor leve, doce, suave, leve demais para a percepção dos humanos a longa distância.
Tudo parecia seguir em câmeras lentas, cenas jamais vividas, novidades de uma era que talvez, nem eu pudera reparar.
Horas leves brisas de ventos tranquilos afagavam minha face e desajeitavam meus cabelos, o vento era nada mais que insigne, seu frio cortante imperceptível para uma alma congelada em sua própria amargura.
Tanto tempo havia passado, e eu ainda estava ali vendo tudo acontecer, participando ativa ou inativamente dos fatos, mas sempre, sempre presente.

Ainda a caminhar pelos vilarejos tive menção de me aproximar à pequena fonte de águas cristalinas e agitadas que passavam por baixo de escura ponte opaca em madeira trabalhada, ambiente prazeroso em permanecer e contemplar.
Fui atraída pelo sinuoso tilintar das águas, mas sabia que entre os rugidos havia algo mais.
Me aproximei ainda em passos lentos, agora mais largos e então em súbito a alguns metros parei.
O tilintar das águas acompanhavam ruídos do som de um alaúde, sinfonia triste e romântica chorava, piedosamente arrebatadora dentro de sua beleza rara.
As notas chegavam aos meus tímpanos de forma inexplicável, posso lembrar como gritavam tudo o que almejava possuir, algo extraordinariamente belo, doces, não apenas gritavam, mas choravam, choravam por demais.
Pareciam lamurias de um coração ferido.
Pense em Shakespeare transformado em melodia, mesclado a Vangelis El Greco, Mozart e Lorena ; Algo assim.
Mas não foi apenas o efeito que as notas surtiram que me impressionaram, mais que estas, fascinada fiquei ao verificar que o executor da dádiva ao segurar delicado alaúde era um jovem cavalheiro.
Cristopher, jamais esquecerei seu nome.
Sentado rente à margem da ponte, deixava fluir seu talento e sentimentos através daquelas notas de forma assustadora.
Acima das vestes habituais trajava longo sobretudo com detalhes vinho, seguido por longas mangas que exibiam punhos compridos, cabelos e olhos castanhos, tão doces, providos de forma, repletos de enigmatismo.
Era isso que consistia, Cristopher era um enigma.

Tocava, não desviava por um segundo se quer o olhar do instrumento que repousava em seu colo, eu não costumava manter contatos diretos com humanos, porém, foi necessário.
Ao tempo em que me aproximava fiz com que os passos cessassem; ele parou por um instante mas continuou com a cabeça baixa como se apesar de olhar-me quase rente a sua frente pudesse sentir minha presença e intenções.
Um segundo mais e levantou pousando seu olhar castanho e sério sob os meus como ninguém jamais havia feito.
E assim, ficamos por segundos sem nos mover, um momento, um esplendor inesquecível que jamais esquecerei, o momento em que pela primeira vez nossos olhos se encontraram de tantas outras vezes que estavam por vir.

O conheci, o amei em um único instante.
Mostrou-se um excelente ocultista, era estudioso e dava aulas na escola secreta das ordens dos magos da época.
Herdara os dons da família, de seu avô que passou a seu falecido pai, que a ele passou.
Desde o primeiro momento ele soube quem ou 'o que' eu era.
O fato de estar com uma Vampira não o incomodava, sagaz, esperto, confiava em sua própria confiança e limites.
Insistia em questioná-lo sobre como poderia não temer alguém como eu, ele respondia constantemente que já houvera conhecido outros da mesma espécie, naquela mesma vida.
Nos aproximamos e identificamos de rara forma, o sentimento que brotou, que em mim foi forte deveras, tão medo senti de chamar por Amor, não havia e talvez não há palavras exatas que possam reproduzir o que passou.
Éramos iguais, tão iguais, ele dentro de sua lúgubre sabedoria, eu de minha eterna melancolia.
Foram anos mágicos, hoje penso neles como um sonho, um sonho que desfrutei acordada.
Passávamos longas noites a caminhar pelas ruas calmas.
Temia o futuro mas escolhi Cristopher para ser meu, meu companheiro, meu eterno cavalheiro sombrio, meu único amor.
Quando o conheci, tinha não mais de 23 anos de idade, fisicamente aparentava cerca de 20 primaveras.

Quantas noites o levei em minha morada oculta, havia acumulado boa quantia em dinheiro e conseguira adquirir uma bela casa antiga na região, assemelhava-se e lembrava um pequeno castelo com decoração semelhante à dos antigos e grandes templos da Europa Medieval.
Quantas noites o saudei com meu vinho e toquei lentamente seus lábios fazendo o mundo parar por nós em cada um dos instantes.
Era, sempre foi incrível.
Os anos passaram, ele evoluiu em seus estudos conseguindo fundar 2 filiais da escola das ordens tornando-se em grande tutor de variadas espécies de pupilos, porém sabíamos que envelheceria e eu... Eu não suportaria.

O acompanhei por longos anos, tive menção de abraça-lo e transformar em minha sombra, em minha espécie, mas não poderia sem seu puro consentimento.
Ele sabia e previa a tristeza que nos aguardava, porém nunca aceitou como alternativa a hipótese de ser vampirizado para poder permanecer a meu lado, quando me dei conta seus belos traços estavam envelhecendo rapidamente; Por mais que não quisesse, que temesse sua morte a data em que partisse, não podia aceitar e pensei em possui-lo a força.
Tentativas vagas, jamais o desrespeitei, jamais tive coragem de fazer seu apaixonante sorriso esvair-se devido a nossa vontade de permanecer lado a lado.

O tempo passava e eu continuava cada vez mais preocupada e temerosa de nosso destino, ele realmente não aceitaria jamais tornar-se em algo como eu era, como sou, ainda que me amasse fora dos limites do que chamamos por realidade.
Dizia constantemente que o sofrimento não perduraria, que eu deveria me acalmar, que tudo era a seu tempo, e que da mesma forma que o destino nos uniu iria nos conceder solução, mesmo que imprevista diante de cada uma de nossas, principalmente de minhas ideias.

Assim, em uma quente noite da primavera de 1827 nos encontraríamos em local distante da região para contemplar algumas horas mais juntos.
Eu o ajudava em suas dúvidas cotidianas, suas angústias, ele me apoiava incondicionalmente em minhas crises existenciais, andava por demais angustiado com o tempo, com o medo de envelhecer, morrer e me deixar para trás.

Era cerca de 1:00 da madrugada quando chegou ao ponto de encontro, não quis dizer nada, estava silencioso porém presente em mim como jamais estivera.
Sentamo-nos rente ao precipício, ele cerrou os olhos baixando a face para ali permanecer por longo tempo.
Quando levantou o olhar, delineou-me estática, docemente, como se fosse a primeira vez, olhou-me e entendeu-me exatamente como na noite em que nos conhecemos, esta que se passara em 1812 como inexplicável dádiva.
Por um breve segundo senti que ia perdê-lo bruscamente; receosa, segurei seus pulsos e o abracei como se pudesse prendê-lo por todo o sempre, ele então desvencilhou-se e ajoelhado a minha frente desamarrou laço a laço os cordões de meu corpete rubro.
Minhas vestes caíram diante de seus olhos, e uma vez mais perguntava se vivia um sonho por contemplar a formosura beleza da maciez de minha pele delicada e acalentadora gelitude transformada em quente vivacidade.
Nos amamos como jamais nos amamos e nos sentimos como talvez jamais houvéssemos nos sentido.
Seu coração agitado ofegava em compasso maestro com os rugidos de minha alma aquecida momentaneamente por sua angelitude que me salvaram o mundo naquele único instante.
Ato consumado, fez menção de que iria adormecer , mas antes que eu me aninhasse em seus braços falou:
---Brindemos uma vez mais, a toda nossa paz que jamais se extirpará.
--Minha querida, minha adorada...
---Sim, seja feita a tua vontade, a minha vontade.

Ergueu suas mãos suntuosas ao vinho que havíamos levado, pegou duas taças, as encheu e então brindamos.
Ao tempo que dava meu primeiro gole, senti que por segundos hesitou em levar a taça aos lábios, nossos olhos não se desencontravam, fincados estavam como deveria ser, hoje penso...

O mundo realmente parou e enquanto levava a doçura de sua língua a doce bebida meu corpo estremeceu, imediatamente gelei como se envolta a congelada nevasca; Sua expressão tomara agora estranha nitidez, parecia esmorecer.
Assustada, joguei minha taça a distância e o ecoar do estrondo do cristal estilhaçado ainda está em mim.
Cristopher sucumbia e eu gritava-lhe questionando o que havia feito.

Havia envenenado seu próprio vinho sem que eu percebesse e assim abandonou-me abruptamente, abandonando também, sua angústia insuportável que seria envelhecer ao meu lado.
Por horas chorei compulsivamente como jamais havia feito, o detive em meus braços, incrédula, como se este a qualquer momento fosse despertar e seu amor declarar; Porém, a realidade fétida se apresentava a minha dolorosa visão me provando o contrário;

Deixei-o ali, dolorida e desesperada sai a correr do nascer das luzes que estavam próximas, corri para distante daquela cidade, daquele país, mas não daquelas lembranças que me perseguem até os dias atuais.
Ele sempre acreditou em vida pós vida(assim costumava tratar a morte) e creio que tenha feito o que fez por imaginar que nos reencontraríamos um dia, conversávamos muito sobre o assunto.
Até hoje, tanto tempo depois, o único sentido para minhas forças, é nada mais que as vivas esperanças de reencontrá-lo um dia.

Vi civilizações nascer e morrer diante de meus olhos, o futurismo e tecnologia tomaram conta do mundo, muito do que era puro desapareceu como grãos de areia ao vento, muito do que era encantador se apagou como lapsos do estilhaçar daquela taça quebrada, jogada ao léu.
Ainda assim, a nostalgia em mim permanece e esta ainda mais viva...
Que nunca.

Esta foi parte de minha história que prolonga-se ao passar do que chamamos por hora, por tempo, o que talvez desconheçam em seu real sentido, não pelo tempo vivido, mas sim, por toda a dor e saudades presentes.
Talvez, porque ainda hoje ao cruzar as madrugadas, por vezes tenho a impressão de escutar chorar, notas de uma certa melodia.

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