Havia muitas outras coisas a fazer contudo julgamos como prioridade lavar as
aves. Encontravam-se, na sua maioria, num estado lastimável. As praias
da Galiza não eram mais o seu habitat, haviam se transformado num purgatório
a mar aberto... Elas não sabiam o quanto iriam sofrer com o flagelo,
o que poderíamos fazer era simplesmente limpa-las. Havia entre elas,
em especial, uma que não se movia e com os olhos sempre postos no chão...
Enquanto as outras dispersavam num alvoroço caótico, esta mantinha-se
quieta observando o próprio corpo, envolto num manto de melaço
negro e fétido, fazia-o sem perceber ao certo do que se tratava. Talvez
receasse que o mar, seu lar, estivesse contra ela e, também, contra todas
as outras criaturas que viviam por ali. Aproximei-me com o receio de um susto
a fizesse ir para longe e perdesse a chance de ser salva.
Sem resistir ao gesto abrasivo a ave deixou-se levar nos meus braços
com um ar desolado nos olhos. Poderia tê-la entregue ao meu parceiro,
em vez disso deixei-a entre o regaço e meti mãos ao trabalho de
limpeza daquele corpo. Senti-me pela primeira vez na vida feliz por contribuir
efectivamente numa força tarefa excepcional, uma grande exibição
de dignidade e solidariedade da civilização, de um sentimento
muito íntimo de preservação do nosso sistema, das nossas
criaturas e, enfim, dos nossos patrimónios. Desses pensamentos tão
alcantilados só fui acordado pela dor de uma forte mordida que acabara
de receber no braço. Subitamente a ave me mordera e agora olhava-me nos
olhos. Dizia que estava viva!