A Garganta da Serpente

Werner Wellgs

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O velho e a ruiva

(Werner Wellgs)

Acabado de somar mais um ano aos 69 já existentes fui ao café. Como dantes, mantinha tal hábito aos sábados e, felizmente, calhara este ano cumprir a data neste dia da semana. Antes do café, comprei o matutino, não isento de enfrentar razoável fila que, por sua vez, fez-me escutar e concordar com as mais variadas e ingénuas reclamações de toda gente - Sem margem a erros gente possuidora da mesma idade que eu ou adjacentes - Tudo bem até aí.

Contudo, não deixei de observar que a angústia e a preocupação, mais uma vez, tinham-se instalado em mim neste dia especial. Eu sabia o porque e tentava, com ligeiros disfarces, passar ao largo desses sentimentos. Mas no íntimo já desistira.

Noutros tempos só a saudade era a minha companheira. As memórias de minha falecida mulher estavam mais nítidas a cada dia de vida. Mesmo sem perder as esperanças de conhecer uma outra companheira, para terminar ao meu lado as últimas etapas de uma existência, confortava-me ter vivido por dezenas de anos momentos de grande felicidade ao lado de uma pessoa dedicada e íntegra. Foi a primeira e única mulher da minha vida. Foi? Ou é?

Às vezes sinto-a perto, como se, à qualquer instante, toca-la ainda fosse possível. Lembro-me de quase tudo que passamos juntos; desde à infância e em seguida a adolescência, e com esta, as descobertas; Até ao casamento, as dificuldades, momentos de felicidade, o crescimento de nossas filhas e, por último, a sua triste partida. Doente, fraca, consumida pela cólera. Porém, lúcida até o último dia.

E foi num quarto de hospital, morbidamente asseado; limpo e ao mesmo tempo fétido, que então, a sós, essa mulher reservou a mim, o seu último sorriso. Perdida na minha fisionomia e admirando a expressão que me denunciava. Enquanto meus olhos crentes mantinham-se hirtos e impressionados a tal imagem. Pura e transparente. Assim que encontrei forças suficientes libertei-os, fecharam-se como se quisessem grava-la para todo o sempre algures na minha memória. Tornei a abrir ansioso por uma renovação divina do destino. Mas ela já lá não estava, partira levando consigo o meu verdadeiro olhar. Acabara ali parte de minha vida.

Por ora esqueci tais pensamentos. Meu único desejo no momento era ler um jornal esportivo. Sem a necessidade de divulgar a alguém tal data. Nem tão pouco ansiar por prendas ou, até, que algum parente lembrasse do meu aniversário. Acomodei-me o melhor possível na esplanada, agora invadida por raios solares poderosos, e dei início finalmente à minha leitura.

- Bom dia Prof. Leão! - exclamou uma voz estranha e insegura.

- Como vai o senhor? Lembra-se de mim?

Ergui o olhar a pessoa à minha frente e não reconheci de pronto. Era uma mulher aparentemente elegante, e também bonita, talvez uns 27 ou 30 anos, não sei de onde surgira tão inesperadamente. Demorei um pouco a responder apenas um "Bom dia...", cordialmente. Impressionou-me sua beleza e frescura jovial. O sorriso "Colgate" ditava mais brilho no ambiente que os raios de sol, que por seu turno, inundavam ainda mais o interior do lugar naquele dia tão soalheiro.

Demovi da ideia tentar lembrar a sua procedência. Mantinha meus olhos na plástica quase perfeita do seu corpo. A pele invadida por sardas suaves e travessas clamava por mais atenção por se manter curtida pelo sol. O cabelo ruivo, ao primeiro instante, era o que definia e dilatava a sua diferença entre outras mulheres. Longos, finíssimos e vermelhos, que ao sopro do vento faziam-se cor de fogo, iludindo os olhos até do mais selvagem ser. Por que tal cor tocava-me tão fundo? Tão visceral? sobretudo, aliada a tanta beleza, que sortida num corpo proporcional e belo, me fazia suspirar baixinho tal e qual um adolescente.

- Sou Ruth. Ruth Cabral, fui sua aluna na pós graduação - ao mesmo tempo que estendia a mão em minha direcção -, O senhor não se lembra de mim ?

- Sim..., claro! claro! - mentira, não encontrava sua fisionomia em meus arquivos, mas isso já não importava no momento. Mentira sim, o que tem de mal?

- Mas você mudou muito não?, por favor sente-se...

- Obrigada ! - e sentou-se - É que eu antigamente costumava pintar o cabelo de loiro, tinha vergonha de ser ruiva, desde o primário que o pessoal não dava tréguas. Depois da minha separação deixei-o crescer na cor natural. Por isso o senhor não deve estar lembrado de mim.

E assim continuou a falar como se não houvesse mais oposição de minha parte. Segui ouvindo-a com interesse, ternura e solidez. E, simultaneamente, tentando camuflar o desejo que, com doses cada vez maiores, ia sentindo por aquela mulher. Desviando o olhar aos poucos, simulando raciocinar o que ouvia, mas ao mesmo tempo procurando seu corpo entre a mesa e a cadeira. Vi a saia amarela, que nesta manhã era mais curta, autorizando uma visão mais íntima do corpo. Do joelho alcancei as coxas, apertadas entre si e cruzadas ao mundo. Pude ver, também, suaves pêlos cobrindo toda a pele, como um campo semeado, à espera da aurora. E da barriga fui aos seios, que anteriormente, já me tinham confrontado. Tensos, firmes e ameaçadores desenhavam soberanos a plástica de todo o peito.

Nesse momento já não controlava meus olhos e pensamentos, que fazer??. E sua voz ?, ouvia-a muito longe, distante e difusa. Minhas mãos suavam como bicas mouras, sinal antigo de minha total ansiedade carnal. Quanto às pernas, ela movia-as com precisão e efeito, certa da ilusão óptica que provocava nos machos. Minha boca não se fechava, estaria algo errado? Seria eu mesmo? Um Professor Doutor que passara a vida inteira a controlar e dissecar o seu e o pensamento dos outros? Cairia em desgraça num Sábado? Aniversário ainda por cima? Por uma ruiva faladora?

Sim! É isso. Livrei-me de tudo. Pois desejava-a. Sou e estou velho, mas desejava-a muito.

- Professor Leão, meu namorado chegou, vamos à praia e tenho que o deixar. Foi um prazer revê-lo, dê cumprimentos à sua esposa e filhas, ok! Até breve ! Disse ela, levantando-se ao mesmo tempo que endireitava a saia, já colada às nádegas.

Olhou-me novamente nos olhos, estendeu mais uma vez a mão, chegando-a bem perto. Minha chance para puxa-la. Agarrei-a firme e respondi:

- Vá!...mas não volte.

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