A Garganta da Serpente
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Os Arqueiros Não se Movem Após a Bola na Trave

(Ygor Moretti Fiorante)

As mãos dadas eram que sempre denunciavam, denunciavam os meus próprios erros as minhas próprias culpas... Era necessário e impossível, mas ainda irredutível e sem perceber convivia por aturar, num sempre exercício de tolerância, tornava o beijo sacro apenas em beijo, condenava um passado e um presente constantemente posto a prova, constantemente me contradizia na busca por algo, numa busca interrompida com o encontro primeiro do descartável.

Vendo aquela foto junto de Leticia, tive vontade de ligar para ela e me desculpar, mas iria assim prolongar a sua dor e demonstrar o meu puro e sincero sentimento de dó. Jamais pedira algo maior que desculpas, temia a piedade, temia ser aquele que necessita de piedosos ao seu redor, procurava encontrar na dor, na dor minha, na minha dor, numa derrota o próprio caminho, fingir perfeitamente ou de fato superar a falta. Não expressar jamais a causa daquela confusa dor e dó, a causa que eu pouco sabia, e se sabia (pois de fato sabia), jamais entendera, algo como ser a vitima e o carrasco, o máximo que conseguia ilustrar nas divagações que aconteciam nos ônibus, nas filas dos bancos, e nas longas caminhadas, eu carregava por isso uma tristeza nos bolsos...

Meu quarto estava uma verdadeira zoeira, quantas daquelas roupas eu ainda usava? Quantos daqueles discos eu ainda ouvia, qual, qual foi um único livro da estante que eu tinha lido? Impressionante o como os fatos se unem, as calças jogadas no chão, a carteira e o celular sobre a estante, o último toque do telefone foi engano, a televisão funcionando sem volume apenas clareando as paredes do quarto com sua alternância de imagens. Incrível o como me dou conta de minha vida vazia. E o telefone não toca mais...

Remexo caixas de papelão procurando freneticamente, procurando apenas, estado absoluto de ansiedade. Medalhas antigas, canetas vazias, extratos, moedas, lixo. Tudo um lixo necessário, que não ocupa espaço, não se faz presente, e é para mim essência. Apenas imagino o alivio que sentiria jogando tudo aquilo fora, seria como livrar meu destino de possíveis agouros, supostos agouros, porém iria ao lixo certa parte da minha existência, lembranças recônditas que só eram computadas através do contato físico que tenho com cada um daqueles objetos.

Viro por completo então uma pequena caixa de papelão com diversos objetos, e um deles "pula" da caixa e corre pelo carpete do meu quarto. Uma bola de feltro, branca e azul, para os leigos lã, substancialmente lã, mas emaranhado e empastado por pressão, empregado também na fabricação de chapéus. Mas aqui é uma bola, pequena bola de dois centímetros usadas nas disputas de futebol de botão, com regras oficiais é claro. Impedimentos, máximo de três toques, não é necessário o aviso do chute.

Felicidade, nada de nostalgia, felicidade apenas, felicidade e nada mais. Fico então, admirado, entre as várias coisas que me espantam, me acalma saber da ineficiência do tempo sobre a destruição de certas coisas, aquele objeto físico e emocional mantém-se em perfeito estado de conservação.

Aprendi a jogar futebol de botão logo com esta bolinha, "logo", "já" neste estágio, fazia assim a bola rolar, nunca vi graça nos outros modelos, plástico achatado? Isso lá é formato de bola? Nos campeonatos da rua era com essas, fazer o que, decisão da federação de futebol de botão do bairro, nunca gostei do fato dos meninos mais velhos serem responsáveis pela organização dos torneios, nunca confiei nos sorteios dos grupos, e definitivamente aquela bola na final de 93 foi mesmo desviada com a mão do Fabinho. Porém eu um dia também fui um desses meninos mais velhos, ou havia outros ainda mais novos, cabendo a mim a organização e toda a responsabilidade do evento, embora cheio de um sentimento e uma obrigação nobre, justa, invadia-me no íntimo a tentação tirana, as viradas de mesa, a manipulação ou a importância que uma decisão minha poderia ter sobre todo o campeonato. Mais neutro do que antigas "confederações", mas ainda sim tendencioso.

Impressionante como uma lembrança está ligada, acorrentada a outras, quanto mais se tenta esquecê-las, evitá-las, mais elas vem a tona diferente dos sonhos que se vão conforme tentamos traze-los na memória.

Era uma terça-feira, eu e minha mãe tomamos o primeiro ônibus para Santo Amaro, Largo Treze de Maio, parada na barraca do Tião, dois reais e trinta centavos, um novo time de botão, sem muito tempo para escolher, faltavam-me poucos times para completar o campeonato paulista, o República 5121 não esperaria a minha indecisão, Marilia ou Bragantino, naquele ano o Braga estava melhor, mas quem entre os meninos teria um time de botão do Marília Futebol Clube?

- Mãe vamos voltar por aqui? perguntei a minha mãe coberto de segundas intenções. E será logo, antes que eles se vão? Com outra pergunta respondeu-me minha mãe. Voltar? Ir embora? Nunca entendi esta resposta de minha mãe, que no final se tornou uma pergunta para ela mesma. Uma resposta maior com infinitas intenções, como quem não quer responder sabendo que todas as respostas para a situação são objetivas demais, mas no entanto é preciso deixar algo claro e sem nenhuma definição, como quem também sabia e temia uma próxima pergunta, sabendo que esta revelaria e rebentaria com sua resistência permaneceu em silêncio dez passos a frente todo aquele ar intrigante foi esquecido segui feliz, atraído pelos cartazes das lojas e embrulhos de presentes.

Dentro do ônibus, fui pegando na bolsa o outro time, havia uma trave, uma bola, de feltro, somente uma palheta, se alguém quisesse jogar comigo que se vira-se, e o time de botão do São Paulo, lembro que ganhei este time, um dia depois do São Paulo ser Campeão Mundial em Tóquio, um vizinho me presenteou, na verdade nunca mais vimos este vizinho, seu nome era algo como Joemir, ou alguma derivação com este parecida.

Chegamos a casa de meu avô, desde aquela indagação ou melhor aquele resmungar no Largo Treze, esta foi a primeira palavra que minha mãe me disse:

- Espere aqui na garagem. Estávamos no Brooklin, fiquei ali, e meus olhos engenheiros logo começaram a estudar o plano da garagem, perfeito, lajotas lisas, e verdes. Um bom espaço longe do portão, nem os chutes do meu camisa dez que eram encantados alcançariam a rua. Ajoelhei-me no chão, silenciosamente, um sorriso se aprontava no rosto, mas a cara de minha mãe após a porta aberta num simples chamado com a cabeça fez-me ir correndo para dentro da casa.

- Olha. Disse minha mãe com um olhar absurdo de profundo. Você vai ficar aqui ok? Preciso resolver uns assuntos, talvez demore, comporte-se mocinho. Nesta ora suas mãos se enrijeceram em meu rosto, e soltaram-se depois em um carinho rodeando minha cabeça e descendo sobre meu rosto.

Com um movimento firme da cabeça, minha mãe despediu-se da mulher que parecia pronta a me receber, e seguiu em passos largos para a rua onde um carro acabara de chegar, cheio de malas, e um sujeito apressado. Corri até a janela, ela pôs um pé dentro do carro, virou-se como se soubesse da minha presença na anela, e acenou de novo com a cabeça, de forma mais tranquila e lenta, soltando no final do movimento um pequeno sorriso. Tive vontade de correr e ver o carro se perder na rua, mas uma fumaça vinda do escapamento, tomou-me a atenção, dando a mesma sensação de ver alguém desaparecer, sumir, ir embora.

Voltei-me para sala ao mesmo tempo em que meu avô repousava seu jornal no colo. - Vem cá menino, disse ele levantando um dos braços.

- Olha Prima, como é parecido com ele? Lembro-me bem dessa cara, cara de sonso, mas esperto que nem o diabo. Tá com sede? Quer suco? Quer comer alguma coisa? Tem biscoito aí Prima!!?? Eu não respondi a nada e mesmo assim veio o suco, veio o biscoito e dois copos.

- Como é seu nome? João Paulo Menezes Filho, respondi sem gastar mais nenhuma palavra. Quantos anos você tem? Nove.

- Sabe quem sou eu? Meu avô, continuei respondendo na mais absoluta economia de palavras, entre o medo de me esticar demais e a demonstração de certa firmeza como quem espera ser conquistado.

- Da última vez que eu te vi você estava assim, no meu colo, um bebezão. Então aquela cara velha e marruda soltou um comprido sorriso seguido de uma gargalhada. Eu permaneci quieto e no final me senti a vontade e ameacei um sorriso, contido, presos nos lábios.

- O que você tem aí na mão menino? É botão. Me dá cá, deixa eu ver isso.

Assim ele tomou de minha mão antes que eu pudesse lhe entregar, e foi tirando minhas tranqueiras dentro do saco de supermercado que eu carregava.

- Esse eu comprei agora. O que te deu de comprar este time? Esse aí ó, indiquei entusiasmado. É o São Paulo... Ele conseguiu fazer você virar São Paulino, disse meu avô ao me ver naquele estado me referindo ao time.

- E pra que você trouxe isso aqui? Pra jogar ué!!!

- Tá bom e como se joga isso, perguntou meio irritado por não saber e um tanto, bem pouco na verdade, entusiasmado.

- Primeiro tem que ter um campo, pode joga aqui? perguntei apontando a mesa de centro da sala, a essa altura já havia me esquecido das lajotas verdes da garagem.

- O Prima!!!! Tira essas coisas daqui ó!!!! Ordenou meu avô.

Iniciamos assim os preparativos para o jogo...

Tomei novamente em minhas mãos os dois times, meu avô somente observando, eu agora com enorme liberdade, verificando se todas as peças estavam ok.

- Pera aí vô. Um ritual burocrático antes do inicio da partida.

- Primeiro eles tem que cumprimentar a torcida. Explicando ao meu avô, fazendo com que cada time fosse para um dos lados da mesa, como quem percorre o campo cada equipe de um lado levantando os braços para suas respectivas torcidas.

- Agora tem o aquecimento e depois as entrevistas, faz assim oh, e movia rápida e freneticamente alguns jogadores em espaços curtos dentro do "gramado", sempre carregava comigo alguns botões avulsos, seriam os gandulas, juiz, repórteres e eventualmente algum fanático torcedor que iria invadir o campo.

Tudo pronto agora, nos cantos do campo alguns recortes de jornal em formato de tiras, jogados pela "torcida". Esquema tático pronto, saio em um 4-2-4, jogando sim, com quatro atacantes como nos tempos do futebol arte, aqui ainda praticado. meu avô me copia sem saber ao certo o que significavam aquelas posições, ético a respeito do funcionamento e eficácia dos esquemas táticos nos jogos de botões.

- Lembro que comecei com a bola, meticulosamente ajeitei a palheta mais para o lado esquerdo do botão, um toque sutil a bola rola devagar, parando na frente de outro jogador vindo da direita, meu deus, hoje tenho a consciência da jogada, foi como Carlos Alberto Torres na final em 70. Anuncio:

-Pro Gol! Meu avô permanece parado. Vai arruma seu goleiro! Ele faz um movimento qualquer não alterando muito a posição do arqueiro. Miro, abaixo a cabeça rente o campo, posiciono a palheta um pouco a direita. O botão sai meio torto, da direita para esquerda, atingindo a bola levando-a para o canto direto do goleiro, que só observa bater na trave e sair pela linha de fundo.

Tiro de meta, meu avô mais uma vez perdido. Pode ser com o goleiro, bata na bola pra frente. Ele o faz sem o menor jeito e a bola vem direto para o meu zagueiro no campo de defesa. Este a domina, descola um lançamento preciso até o ponta esquerda, que num passe rápido destes que só mesmo o Muller poderia dar, deixa o centroavante sozinho com o gol a sua frente.

- Pro Gol!!! Anuncio de forma enérgica, ainda não acreditando no capricho da bola na trave do ultimo lance.

Um chute forte, seco, direto, a bola ultrapassa o goleiro e estufa, de forma relâmpago a rede, "morrendo" depois atrás do goleiro. A torcida vai a loucura, todos os jogadores vão atrás do autor do gol, para lhe dar o seu merecido abraço, mas este porém corre decidido em direção ao banco de reservas, abrindo os braços ele pula sobre o técnico, lhe dando um sincero abraço. Um abraço que exprime todos os momentos passados, difíceis, porém vencidos pela confiança. São minhas mãos com movimentos precisos que escrevem esta história que repercute somente em minha imaginação.

Você sabe tudo o que falam de você? Deve saber é claro, de todas as coisas que você de fato dá margem para que falem. Você sabe das maldades que você fez a outras pessoas, e estas não vieram lhe reclamar?!.

E de todas as calunias que jogam sobre suas costas, maus entendidos?!!

Sabe quantas pessoas já magoamos em nossas vidas? Você lembra com certeza de toda a maldade que te fizeram na infância, e se nos últimos dias alguém não lhe foi agradável como você esperava, você lembrará disto todos os dias durante os próximos dois anos.

Junto de todo mal e toda felicidade, fica em sua mente aquele momento de juras de amor, fidelidade e amizade. Vendo esta foto que malditamente encontro entre a caixa derramada, um corte, um raio passa sobre minha memória, me trazendo diante de dias mais atuais. Amigos...Puf...

Ainda tento imaginar adiante do mal que tanto posso ser vítima como também posso ser merecedor, além desse mal o que me espera?

Não me lembro bem qual e como foi o fim do jogo de botão com meu avô, provavelmente cansado, larguei tudo ali mesmo, bagunçado. É foi isso, depois fui me deitar no sofá e fiquei observando a cena, os jogadores estáticos, a bola esperando ser chutada. Meu avô se recolheu sentado no sofá, me observando, antes de pegar no sono, no mais profundo dos sonos, pude ver um sorriso se abrir em seu rosto. A prima veio e lhe afagou nos ombros, o cumprimentando, num gesto de ternura.

Fui acordar já era noite, uma noite escura, na verdade não sei se o céu se mostrava escuro, ou as estrela projetavam-se brilhante demais.

- Minha mãe ainda não voltou? Perguntei, tendo como resposta somente um silêncio e os passos dos dois, parecendo fugir, caminhando em direção a cozinha.

Corri em direção a janela e lá fiquei observando a rua, vazia, deserta, a cara achatada sobre o vidro, um movimento, qualquer coisa faria meu coração bater com um pouco mais de vitalidade. Qualquer movimento seria associado a lembrança de minha mãe ou ao seu repentino e tão desejado aparecimento. Reaparecimento...

Como se pode amar loucamente, freneticamente, com tudo? E como podem as pessoas, não deixarem, não permitir a outras ama-las de forma incondicional, deixar, simplesmente, alguém te amar. Definitivamente deve pesar, ou ser até um fardo carregar a responsabilidade de ser amado, e assim sendo ter milhões de "obrigações", quase um compromisso com aquele que nos ama, que por não ser amado e aceitar isso, espera somente que sejamos, que permaneçamos sempre na forma estática e amável original passivos de e por amor...

Permaneci ali durante horas, e depois destes, nenhum pensamento me passava pela cabeça, alguns carros e pessoas já haviam passado por ali, mas, no entanto, não me despertaram nenhum interesse, nenhum contentamento no máximo uma rápida e irracional esperança de ser quem eu realmente queria, minha mãe. Por quem eu queria chorar, pela qual a falta começava a me doer no peito, aos poucos me fazendo entender o que era ser sozinho. Prematuramente descobrir o ar diferente que entra no peito dos sozinhos.

- Menino venha jantar saia daí!!! Ordenava a prima Dora, tentando impor a esta voz um tom imperativo. Somente olhei para trás, e a vi de costas voltando para cozinha, de forma rápida, parecendo fugir de qualquer encontro com o meu olhar.

Durante este curto espaço de tempo pude ver um vulto lá fora, devia ser um carro e percebi que ele parou um pouco mais a frente, só me restando a fumaça vinda do escapamento, as minhas mãos escorregavam pelo vidro na janela, junto de meu rosto. Com duas malas pesadíssimas, os ombros arqueados, um rosto cansado pedindo ajuda minha mãe apareceu, deixando cair uma das malas.

Eu recuei durante um momento, sem deixar ela me avistar, ela repousou a outra mala na calçada de frente para a casa e se direcionou para tocar a campainha, eu agora sabia! Ela tinha voltado!!! Não sei, nunca soube, onde ela fora, se estava em seus planos voltar e o que a fez voltar, também nunca pude imaginar o que a faria partir. Lembro mais que tudo, intenso, melhor que o primeiro beijo, ou o gol no campeonato da escola, da textura de seu vestido até hoje em meu rosto, quando eu corri desenfreadamente e deixei-me cair em seu colo seguro, delicado.

Eu não fazia questão de ter nenhuma pergunta respondida, nenhum novo time de botão, até hoje aquelas lágrimas em seu rosto molhando o meu, no momento seguinte em que nos colamos abraçados valem toda essa insegurança, todo este medo de estar sozinho.

- Pauloooo!!! Vem jantar!!!!! Cá esta a lembrança, e junto desta, certo medo, medo inevitável, que tanto me alerta, quanto me envergonha. Cá está ainda uma dúvida, ela mora no peito e nada mais, dúvida que tanto e só me agita a cada dia, todos os dias. Tento então buscar a velocidade ainda não alcançada, a presença surpresa, a verificação se ela ainda estará lá a todo momento.

Rasguei a foto de Letícia, intitulei-me a partir dali sempre uma vitima, nunca culpado, com mil desculpas para magoar se algum dia magoei alguém.

Concentrei-me nas minhas feridas, nos tapas e socos que levara e que no mais importante efeito podia evitar de levar, defenderia-me sempre de futuras magoas, trataria de obter conquistas, plenas... concretas.

Larguei as coisas espalhadas, e desci as escadas correndo, num peito juvenil, retardado em certos aspectos de envelhecimento tento sempre, todos os dias, chegar mais rápido junto dela, imprimir entre nós constantes surpresas...

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