As mãos dadas eram que sempre denunciavam, denunciavam os meus próprios
erros as minhas próprias culpas... Era necessário e impossível,
mas ainda irredutível e sem perceber convivia por aturar, num sempre
exercício de tolerância, tornava o beijo sacro apenas em beijo,
condenava um passado e um presente constantemente posto a prova, constantemente
me contradizia na busca por algo, numa busca interrompida com o encontro primeiro
do descartável.
Vendo aquela foto junto de Leticia, tive vontade de ligar para ela e me desculpar,
mas iria assim prolongar a sua dor e demonstrar o meu puro e sincero sentimento
de dó. Jamais pedira algo maior que desculpas, temia a piedade, temia
ser aquele que necessita de piedosos ao seu redor, procurava encontrar na dor,
na dor minha, na minha dor, numa derrota o próprio caminho, fingir perfeitamente
ou de fato superar a falta. Não expressar jamais a causa daquela confusa
dor e dó, a causa que eu pouco sabia, e se sabia (pois de fato sabia),
jamais entendera, algo como ser a vitima e o carrasco, o máximo que conseguia
ilustrar nas divagações que aconteciam nos ônibus, nas filas
dos bancos, e nas longas caminhadas, eu carregava por isso uma tristeza nos
bolsos...
Meu quarto estava uma verdadeira zoeira, quantas daquelas roupas eu ainda usava?
Quantos daqueles discos eu ainda ouvia, qual, qual foi um único livro
da estante que eu tinha lido? Impressionante o como os fatos se unem, as calças
jogadas no chão, a carteira e o celular sobre a estante, o último
toque do telefone foi engano, a televisão funcionando sem volume apenas
clareando as paredes do quarto com sua alternância de imagens. Incrível
o como me dou conta de minha vida vazia. E o telefone não toca mais...
Remexo caixas de papelão procurando freneticamente, procurando apenas,
estado absoluto de ansiedade. Medalhas antigas, canetas vazias, extratos, moedas,
lixo. Tudo um lixo necessário, que não ocupa espaço, não
se faz presente, e é para mim essência. Apenas imagino o alivio
que sentiria jogando tudo aquilo fora, seria como livrar meu destino de possíveis
agouros, supostos agouros, porém iria ao lixo certa parte da minha existência,
lembranças recônditas que só eram computadas através
do contato físico que tenho com cada um daqueles objetos.
Viro por completo então uma pequena caixa de papelão com diversos
objetos, e um deles "pula" da caixa e corre pelo carpete do meu quarto.
Uma bola de feltro, branca e azul, para os leigos lã, substancialmente
lã, mas emaranhado e empastado por pressão, empregado também
na fabricação de chapéus. Mas aqui é uma bola, pequena
bola de dois centímetros usadas nas disputas de futebol de botão,
com regras oficiais é claro. Impedimentos, máximo de três
toques, não é necessário o aviso do chute.
Felicidade, nada de nostalgia, felicidade apenas, felicidade e nada mais. Fico
então, admirado, entre as várias coisas que me espantam, me acalma
saber da ineficiência do tempo sobre a destruição de certas
coisas, aquele objeto físico e emocional mantém-se em perfeito
estado de conservação.
Aprendi a jogar futebol de botão logo com esta bolinha, "logo",
"já" neste estágio, fazia assim a bola rolar, nunca
vi graça nos outros modelos, plástico achatado? Isso lá
é formato de bola? Nos campeonatos da rua era com essas, fazer o que,
decisão da federação de futebol de botão do bairro,
nunca gostei do fato dos meninos mais velhos serem responsáveis pela
organização dos torneios, nunca confiei nos sorteios dos grupos,
e definitivamente aquela bola na final de 93 foi mesmo desviada com a mão
do Fabinho. Porém eu um dia também fui um desses meninos mais
velhos, ou havia outros ainda mais novos, cabendo a mim a organização
e toda a responsabilidade do evento, embora cheio de um sentimento e uma obrigação
nobre, justa, invadia-me no íntimo a tentação tirana, as
viradas de mesa, a manipulação ou a importância que uma
decisão minha poderia ter sobre todo o campeonato. Mais neutro do que
antigas "confederações", mas ainda sim tendencioso.
Impressionante como uma lembrança está ligada, acorrentada a outras,
quanto mais se tenta esquecê-las, evitá-las, mais elas vem a tona
diferente dos sonhos que se vão conforme tentamos traze-los na memória.
Era uma terça-feira, eu e minha mãe tomamos o primeiro ônibus
para Santo Amaro, Largo Treze de Maio, parada na barraca do Tião, dois
reais e trinta centavos, um novo time de botão, sem muito tempo para
escolher, faltavam-me poucos times para completar o campeonato paulista, o República
5121 não esperaria a minha indecisão, Marilia ou Bragantino, naquele
ano o Braga estava melhor, mas quem entre os meninos teria um time de botão
do Marília Futebol Clube?
- Mãe vamos voltar por aqui? perguntei a minha mãe coberto de
segundas intenções. E será logo, antes que eles se vão?
Com outra pergunta respondeu-me minha mãe. Voltar? Ir embora? Nunca entendi
esta resposta de minha mãe, que no final se tornou uma pergunta para
ela mesma. Uma resposta maior com infinitas intenções, como quem
não quer responder sabendo que todas as respostas para a situação
são objetivas demais, mas no entanto é preciso deixar algo claro
e sem nenhuma definição, como quem também sabia e temia
uma próxima pergunta, sabendo que esta revelaria e rebentaria com sua
resistência permaneceu em silêncio dez passos a frente todo aquele
ar intrigante foi esquecido segui feliz, atraído pelos cartazes das lojas
e embrulhos de presentes.
Dentro do ônibus, fui pegando na bolsa o outro time, havia uma trave,
uma bola, de feltro, somente uma palheta, se alguém quisesse jogar comigo
que se vira-se, e o time de botão do São Paulo, lembro que ganhei
este time, um dia depois do São Paulo ser Campeão Mundial em Tóquio,
um vizinho me presenteou, na verdade nunca mais vimos este vizinho, seu nome
era algo como Joemir, ou alguma derivação com este parecida.
Chegamos a casa de meu avô, desde aquela indagação ou melhor
aquele resmungar no Largo Treze, esta foi a primeira palavra que minha mãe
me disse:
- Espere aqui na garagem. Estávamos no Brooklin, fiquei ali, e meus olhos
engenheiros logo começaram a estudar o plano da garagem, perfeito, lajotas
lisas, e verdes. Um bom espaço longe do portão, nem os chutes
do meu camisa dez que eram encantados alcançariam a rua. Ajoelhei-me
no chão, silenciosamente, um sorriso se aprontava no rosto, mas a cara
de minha mãe após a porta aberta num simples chamado com a cabeça
fez-me ir correndo para dentro da casa.
- Olha. Disse minha mãe com um olhar absurdo de profundo. Você
vai ficar aqui ok? Preciso resolver uns assuntos, talvez demore, comporte-se
mocinho. Nesta ora suas mãos se enrijeceram em meu rosto, e soltaram-se
depois em um carinho rodeando minha cabeça e descendo sobre meu rosto.
Com um movimento firme da cabeça, minha mãe despediu-se da mulher
que parecia pronta a me receber, e seguiu em passos largos para a rua onde um
carro acabara de chegar, cheio de malas, e um sujeito apressado. Corri até
a janela, ela pôs um pé dentro do carro, virou-se como se soubesse
da minha presença na anela, e acenou de novo com a cabeça, de
forma mais tranquila e lenta, soltando no final do movimento um pequeno
sorriso. Tive vontade de correr e ver o carro se perder na rua, mas uma fumaça
vinda do escapamento, tomou-me a atenção, dando a mesma sensação
de ver alguém desaparecer, sumir, ir embora.
Voltei-me para sala ao mesmo tempo em que meu avô repousava seu jornal
no colo. - Vem cá menino, disse ele levantando um dos braços.
- Olha Prima, como é parecido com ele? Lembro-me bem dessa cara, cara
de sonso, mas esperto que nem o diabo. Tá com sede? Quer suco? Quer comer
alguma coisa? Tem biscoito aí Prima!!?? Eu não respondi a nada
e mesmo assim veio o suco, veio o biscoito e dois copos.
- Como é seu nome? João Paulo Menezes Filho, respondi sem gastar
mais nenhuma palavra. Quantos anos você tem? Nove.
- Sabe quem sou eu? Meu avô, continuei respondendo na mais absoluta economia
de palavras, entre o medo de me esticar demais e a demonstração
de certa firmeza como quem espera ser conquistado.
- Da última vez que eu te vi você estava assim, no meu colo, um
bebezão. Então aquela cara velha e marruda soltou um comprido
sorriso seguido de uma gargalhada. Eu permaneci quieto e no final me senti a
vontade e ameacei um sorriso, contido, presos nos lábios.
- O que você tem aí na mão menino? É botão.
Me dá cá, deixa eu ver isso.
Assim ele tomou de minha mão antes que eu pudesse lhe entregar, e foi
tirando minhas tranqueiras dentro do saco de supermercado que eu carregava.
- Esse eu comprei agora. O que te deu de comprar este time? Esse aí ó,
indiquei entusiasmado. É o São Paulo... Ele conseguiu fazer você
virar São Paulino, disse meu avô ao me ver naquele estado me referindo
ao time.
- E pra que você trouxe isso aqui? Pra jogar ué!!!
- Tá bom e como se joga isso, perguntou meio irritado por não
saber e um tanto, bem pouco na verdade, entusiasmado.
- Primeiro tem que ter um campo, pode joga aqui? perguntei apontando a mesa
de centro da sala, a essa altura já havia me esquecido das lajotas verdes
da garagem.
- O Prima!!!! Tira essas coisas daqui ó!!!! Ordenou meu avô.
Iniciamos assim os preparativos para o jogo...
Tomei novamente em minhas mãos os dois times, meu avô somente observando,
eu agora com enorme liberdade, verificando se todas as peças estavam
ok.
- Pera aí vô. Um ritual burocrático antes do inicio da partida.
- Primeiro eles tem que cumprimentar a torcida. Explicando ao meu avô,
fazendo com que cada time fosse para um dos lados da mesa, como quem percorre
o campo cada equipe de um lado levantando os braços para suas respectivas
torcidas.
- Agora tem o aquecimento e depois as entrevistas, faz assim oh, e movia rápida
e freneticamente alguns jogadores em espaços curtos dentro do "gramado",
sempre carregava comigo alguns botões avulsos, seriam os gandulas, juiz,
repórteres e eventualmente algum fanático torcedor que iria invadir
o campo.
Tudo pronto agora, nos cantos do campo alguns recortes de jornal em formato
de tiras, jogados pela "torcida". Esquema tático pronto, saio
em um 4-2-4, jogando sim, com quatro atacantes como nos tempos do futebol arte,
aqui ainda praticado. meu avô me copia sem saber ao certo o que significavam
aquelas posições, ético a respeito do funcionamento e eficácia
dos esquemas táticos nos jogos de botões.
- Lembro que comecei com a bola, meticulosamente ajeitei a palheta mais para
o lado esquerdo do botão, um toque sutil a bola rola devagar, parando
na frente de outro jogador vindo da direita, meu deus, hoje tenho a consciência
da jogada, foi como Carlos Alberto Torres na final em 70. Anuncio:
-Pro Gol! Meu avô permanece parado. Vai arruma seu goleiro! Ele faz um
movimento qualquer não alterando muito a posição do arqueiro.
Miro, abaixo a cabeça rente o campo, posiciono a palheta um pouco a direita.
O botão sai meio torto, da direita para esquerda, atingindo a bola levando-a
para o canto direto do goleiro, que só observa bater na trave e sair
pela linha de fundo.
Tiro de meta, meu avô mais uma vez perdido. Pode ser com o goleiro, bata
na bola pra frente. Ele o faz sem o menor jeito e a bola vem direto para o meu
zagueiro no campo de defesa. Este a domina, descola um lançamento preciso
até o ponta esquerda, que num passe rápido destes que só
mesmo o Muller poderia dar, deixa o centroavante sozinho com o gol a sua frente.
- Pro Gol!!! Anuncio de forma enérgica, ainda não acreditando
no capricho da bola na trave do ultimo lance.
Um chute forte, seco, direto, a bola ultrapassa o goleiro e estufa, de forma
relâmpago a rede, "morrendo" depois atrás do goleiro.
A torcida vai a loucura, todos os jogadores vão atrás do autor
do gol, para lhe dar o seu merecido abraço, mas este porém corre
decidido em direção ao banco de reservas, abrindo os braços
ele pula sobre o técnico, lhe dando um sincero abraço. Um abraço
que exprime todos os momentos passados, difíceis, porém vencidos
pela confiança. São minhas mãos com movimentos precisos
que escrevem esta história que repercute somente em minha imaginação.
Você sabe tudo o que falam de você? Deve saber é claro, de
todas as coisas que você de fato dá margem para que falem. Você
sabe das maldades que você fez a outras pessoas, e estas não vieram lhe reclamar?!.
E de todas as calunias que jogam sobre suas costas, maus entendidos?!!
Sabe quantas pessoas já magoamos em nossas vidas? Você lembra com
certeza de toda a maldade que te fizeram na infância, e se nos últimos
dias alguém não lhe foi agradável como você esperava,
você lembrará disto todos os dias durante os próximos dois
anos.
Junto de todo mal e toda felicidade, fica em sua mente aquele momento de juras
de amor, fidelidade e amizade. Vendo esta foto que malditamente encontro entre
a caixa derramada, um corte, um raio passa sobre minha memória, me trazendo
diante de dias mais atuais. Amigos...Puf...
Ainda tento imaginar adiante do mal que tanto posso ser vítima como também
posso ser merecedor, além desse mal o que me espera?
Não me lembro bem qual e como foi o fim do jogo de botão com meu
avô, provavelmente cansado, larguei tudo ali mesmo, bagunçado.
É foi isso, depois fui me deitar no sofá e fiquei observando a
cena, os jogadores estáticos, a bola esperando ser chutada. Meu avô
se recolheu sentado no sofá, me observando, antes de pegar no sono, no
mais profundo dos sonos, pude ver um sorriso se abrir em seu rosto. A prima
veio e lhe afagou nos ombros, o cumprimentando, num gesto de ternura.
Fui acordar já era noite, uma noite escura, na verdade não sei
se o céu se mostrava escuro, ou as estrela projetavam-se brilhante demais.
- Minha mãe ainda não voltou? Perguntei, tendo como resposta somente
um silêncio e os passos dos dois, parecendo fugir, caminhando em direção
a cozinha.
Corri em direção a janela e lá fiquei observando a rua,
vazia, deserta, a cara achatada sobre o vidro, um movimento, qualquer coisa
faria meu coração bater com um pouco mais de vitalidade. Qualquer
movimento seria associado a lembrança de minha mãe ou ao seu repentino
e tão desejado aparecimento. Reaparecimento...
Como se pode amar loucamente, freneticamente, com tudo? E como podem as pessoas,
não deixarem, não permitir a outras ama-las de forma incondicional,
deixar, simplesmente, alguém te amar. Definitivamente deve pesar, ou
ser até um fardo carregar a responsabilidade de ser amado, e assim sendo
ter milhões de "obrigações", quase um compromisso
com aquele que nos ama, que por não ser amado e aceitar isso, espera
somente que sejamos, que permaneçamos sempre na forma estática
e amável original passivos de e por amor...
Permaneci ali durante horas, e depois destes, nenhum pensamento me passava pela
cabeça, alguns carros e pessoas já haviam passado por ali, mas,
no entanto, não me despertaram nenhum interesse, nenhum contentamento
no máximo uma rápida e irracional esperança de ser quem
eu realmente queria, minha mãe. Por quem eu queria chorar, pela qual
a falta começava a me doer no peito, aos poucos me fazendo entender o
que era ser sozinho. Prematuramente descobrir o ar diferente que entra no peito
dos sozinhos.
- Menino venha jantar saia daí!!! Ordenava a prima Dora, tentando impor
a esta voz um tom imperativo. Somente olhei para trás, e a vi de costas
voltando para cozinha, de forma rápida, parecendo fugir de qualquer encontro
com o meu olhar.
Durante este curto espaço de tempo pude ver um vulto lá fora,
devia ser um carro e percebi que ele parou um pouco mais a frente, só
me restando a fumaça vinda do escapamento, as minhas mãos escorregavam
pelo vidro na janela, junto de meu rosto. Com duas malas pesadíssimas,
os ombros arqueados, um rosto cansado pedindo ajuda minha mãe apareceu,
deixando cair uma das malas.
Eu recuei durante um momento, sem deixar ela me avistar, ela repousou a outra
mala na calçada de frente para a casa e se direcionou para tocar a campainha,
eu agora sabia! Ela tinha voltado!!! Não sei, nunca soube, onde ela fora,
se estava em seus planos voltar e o que a fez voltar, também nunca pude
imaginar o que a faria partir. Lembro mais que tudo, intenso, melhor que o primeiro
beijo, ou o gol no campeonato da escola, da textura de seu vestido até
hoje em meu rosto, quando eu corri desenfreadamente e deixei-me cair em seu
colo seguro, delicado.
Eu não fazia questão de ter nenhuma pergunta respondida, nenhum
novo time de botão, até hoje aquelas lágrimas em seu rosto
molhando o meu, no momento seguinte em que nos colamos abraçados valem
toda essa insegurança, todo este medo de estar sozinho.
- Pauloooo!!! Vem jantar!!!!! Cá esta a lembrança, e junto desta,
certo medo, medo inevitável, que tanto me alerta, quanto me envergonha.
Cá está ainda uma dúvida, ela mora no peito e nada mais,
dúvida que tanto e só me agita a cada dia, todos os dias. Tento
então buscar a velocidade ainda não alcançada, a presença
surpresa, a verificação se ela ainda estará lá a
todo momento.
Rasguei a foto de Letícia, intitulei-me a partir dali sempre uma vitima,
nunca culpado, com mil desculpas para magoar se algum dia magoei alguém.
Concentrei-me nas minhas feridas, nos tapas e socos que levara e que no mais
importante efeito podia evitar de levar, defenderia-me sempre de futuras magoas,
trataria de obter conquistas, plenas... concretas.
Larguei as coisas espalhadas, e desci as escadas correndo, num peito juvenil,
retardado em certos aspectos de envelhecimento tento sempre, todos os dias,
chegar mais rápido junto dela, imprimir entre nós constantes surpresas...