A Garganta da Serpente
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My Funny Valentine

(Ygor Moretti Fiorante)

Os carros iam passando sobre seus olhos calmos-curiosos, debruçada no banco traseiro, ignorando mais uma advertência de sua mãe a respeito de sua postura dentro do carro, a menina observava os diferentes carros e pessoas dentro dos carros que se aproximavam do automóvel de seu pai. Na verdade ela tinha enjoado de perguntar quanto do percurso ainda tinha de ser percorrido, procurou outras coisas merecedoras de sua atenção.

As mãos apoiadas no queixo, de tempo em tempo umas das mãos se soltava explodindo um sincero aceno em direção aos passageiros de outros carros, com o balanço de suas pequenas "mãozinhas" seus lábios formavam sem emitir som a palavra: "tchau".

Algumas pessoas retornavam os cumprimentos, outras ignoravam, outros ainda fingiam não ver nada. Conheceu sem querer aquele aceno com o dedo do meio enrijecido, não entendeu seu significado, também em toda sua infância não o repetiu, na adolescência era normal, e não só usado quando queria xingar, mas entre as amigas com quem tinha maior intimidade.

Virou-se, permaneceu sentada corretamente no banco de passageiro, do jeito que sua mãe queria que fosse, decidiu que mais nada merecia sua atenção ou uma atenção repetida nas coisas já bastante observadas.

Mas observando aquela natureza chata, patética do interior de um automóvel ela adormeceu, adormeceu o sono próprio das crianças, um cansaço de anjo, profundo, como o desmaio dos porres de cachaça. Em seu sonho o carro de seu pai deslizava pela autoestrada numa sutileza de algodão doce, não havia outros carros e podia se ver lá na frente a praia rente a estrada sem introdução ou placas de boas vindas, não havia em sua mente a complexidade da arquitetura das cidades. A praia começava na própria estrada e o seu fim não fora planejado pelos seus sonhos, talvez infinita. Para entrar na água a qual ela não mais temia, era só descer do carro e pronto, de encontro as primeiras ondas que em seus sonhos eram sempre pequenas.

Um carro mais veloz talvez entrasse direto dentro daquele mar asfaltado. Em sua imaginação de mar, esqueceu-se das conchinhas que na verdade ela gostava muito, pretendia fazer coleção, esqueceu-se da areia, talvez uma mistura de piscinas, lagos e o mar efetivamente tornavam impossível a visão clara de suas lembranças, a lembrança frágil, traiçoeira e vulnerável do que ela conhecia por mar.

Quase no fim da estrada, no horizonte de seu sonho um pontinho preto veio se aproximando, se mostrando depois marrom, era um cãozinho, o carro de seu pai não parava, estático, em sua fatídica direção, um frio na barriga, o rosto assustado do cãozinho, os pés tentando inutilmente parar o carro voltavam-se contra o assoalho do carro.

Ao som de uma continua buzinada ela acordou, e viu um cão atravessar a estrada até o canteiro esquerdo, virar e olhar para ela, como se soubesse que ainda a pouco fazia parte daquele dúbio mundo de sua quase morte. A menina novamente debruçou-se no banco traseiro e ficou olhando o cãozinho, até que ele se tornasse uma mancha marrom e depois um pontinho preto longínquo se perdendo na estrada entre um carro e outro.

São quinze anos que se passam e devolvem, ou dão pela primeira esse seu andar, uma mulher... agora ela era uma mulher, se os seus 24 anos não lhe tinham completado como uma mulher absoluta, dera a ela a emancipação intelectual que difere as mulheres assim independentes das outras e das outras pessoas de modo geral. Estava pronta para os filmes daquele diretor, entendera que para certas artes temos de estar prontos, aptos, merecedores de seu entendimento. Uma menina mulher, uma mulher ainda menina, busto, coxas, cabelos, cintura, olhos...olhar...o olhar de uma mulher.

Agora a menina era uma mulher que descia a rua Augusta rumo ao Espaço Unibanco, "Curta as Seis", filme Europeu, assim Helena era mais Helena. Discreta, porém elegante, dava margem para a suspeita de ser uma prostituta, e ela sabia disso, mantinha um sorriso entreaberto no rosto, como quem cumprimenta a noite que se aproxima e todos os homens como supostos clientes. Este era seu modo de ser cruel, o seu humor requintado.

As luzes no cabelo iam se apagando, era preciso voltar ao salão de beleza, porém era preciso esperar para ter dinheiro para voltar "Aquele" salão e nenhum outro. Os seus lábios estavam um pouco ressecados, tinha visto numa revista uma receita de uma mistura de frutas que hidrataria seus lábios, os seus lábios que eram grandes e grossos, mas ressecados daquele jeito eram destacados por uma certa cor cinza, era terrível quando uma gargalhada invadia seu humor, esticando de súbitos os lábios secos que se abriam e sangravam. O seu rosto estava perfeito, e não por nenhum produto, mas pela mudança de alimentação desde o mês passado. Com algumas roupas ainda se achava um pouco gorda, algumas outras, porém lhe davam a cintura perfeita. Mas ela sabia que suas supostas gordurinhas a mais, ainda lhe deixavam no grupo de mulheres "perfeitas", "dois quilos acima do peso", isso é o que ela ouvia de alguns homens. Mas entre um reflexo de vidro de carro, ou um vidro na entrada dos prédios e lojas que ela sempre se via, ficou satisfeita consigo mesmo, um sorriso ameaçava constantemente tomar seu rosto, principalmente tomar seus lábios que mesmo secos, ainda suportariam um sorriso.

Saída do cinema, tour pelo centro, dentro do "Avenidas" espera até chegar o mais próximo da São Caetano, na Luz. Antes de pegar o ultimo ônibus de saída a 23:30 ela procurava nas vitrines um ultimo lançamento, ou uma nova tendência para os vestidos das noivas que se casariam neste verão. Helena era um ímã para cafajestes...

Chegando em seu apartamento estava lá, eternamente ligada a luz do abajur, uma solidão silenciosa, uma calmaria concreta, guardando talvez em uma gaveta, ou na sapataria um grito, um segredo. Mas o segredo não veio, ultimamente nem mesmo existia um, a noite seguiu calma mantendo apenas a expectativa de um bom sono e sonhos.

Alo!?? Alo!!! O telefone a acordara logo pela manha. Oi é você, por que ligou tão cedo?! Ok, estou indo só dê um tempo para eu tomar uma ducha e me aprontar. Normalmente acordava com o despertar de seu estéreo, programado para tocar a música 10 daquele CD, aquela música que lhe deixava tanto triste quanto alegre, que lhe fazia atingir um certo sublime sentido, a própria música, My Funny Valentine era um alto patamar de sentidos e dava a tudo razão, só mesmo aquele despertar surpreso despreparado não fazia sentido.

Um ímã para cafajestes...

Algumas roupas designadas a ocasiões como esta, que se aproximava, estavam já separadas numa gaveta à parte, na verdade nesta gaveta, diante desta circunstancia, ela poderia deixar seu cérebro e mais ao canto apoiado em algumas meias a sua alma.

Era verdade, aquele vestido florido a deixava divina, as pontas engomadas, o busto justo, apertado, ela ficaria por se admirar a tarde inteira, o batom, no entanto não lhe agradava, era aquele acessório que denunciava o exagero, o exagero sem o qual ela não seria a mesma, e com o qual ela mantinha-se ainda escondida, distante das presunções que fariam a seu respeito.

Em seu caminho suspiros e assobios, ela não olhava, nem um sorriso soltava, sabia da pequena possibilidade de proveito de algum galanteio, não se empolgava, direcionava, no entanto certa energia para sua alto estima, não deixava, porém transparecer o seu "não-ligar" havia um limbo, junto das cartas que enchiam sua caixa postal, onde ela guardava as paixões, as devoções, as tentativas de endeusa-la. Certa vez em um dos poemas de seu admirador secreto ela achou um motivo para rir durante duas semanas e meia, não que o verso fosse ruim, pretensioso, mas de algum valor;

Eu te resgataria Helena Troiana,
Faria, mitologia onírica,
Desta realidade que sem tu,
Configura-se aterradora
Caminho único para o sepulcro...


Era engraçada essa alusão a mitologia que entre outras coisas a levava a outras comparações, como Penélope cercada de pretendentes, dispostos a matar uns aos outros principalmente seu marido Ulisses. Era definitivamente engraçado o mundo masculino de regras, confiança e mitos, o pacto dos homens os homens em geral, engraçados.

Chegando a casa de Tadeu foi cumprimentada pelos amigos que lá estavam, alguns a cumprimentaram da cabeça aos pés, dando uma pausa no olhar em suas coxas, não teve, entretanto tempo para se sentir mal, puxada pelo punho foi levada para dentro da casa, com os pés Tadeu abriu e fechou a porta do quarto, deitou-a na cama ainda com lençóis e cobertores desarrumados, e com uma mão de cada lado de sua cintura foi puxando sua calcinha, certificou-se da porta encostada.

- Como adoro esse seu vestido. Murmurou Tadeu com o rosto colado ao de Helena. Permaneceu estática, olhando para o teto, traída pela vagina que ora mais úmida ora repentinamente seca lhe causava dor e prazer, adormeceu assim, depois que Tadeu deixou o quarto, ouviu ainda algum barulho vozes e risadas vindas lá de fora.

Quando acordou encontrou um rosto sereno lhe esperando, com um sorriso amarelo reconheceu Tadeu, desviou o olhar pela janela onde pode ver que as primeiras estrelas já cintilavam num céu taciturno.

- Boa noite os rapazes já foram embora, você dormiu mais ou menos seis

horas, nós vamos sair hoje a noite, o Jura, sabe o Jura? Arrumou um bico pra mim, nosso nome está em uma festa, é lá que ele vai me dar a letra do trampo.

Durante a fala de Tadeu fechou os olhos, odiou aquele olhar que ela bem conhecia de quem quer ser agradável após tê-la usado, sentia o rosto arder, sabia-se vermelha por causa da barba serrada. Ele dizia que queria deixar o cavanhaque, mas sempre se arrependia, voltava a fazer a barba e a deixava novamente crescer numa nova tentativa de mudar o visual. Helena gostava dos cabelos dele, sempre baixinhos, bem aparados, ela ficava horas tentando puxa-los, mas de tão curtos nem se prendiam entre os dedos.

Sem responder levantou-se e foi direto ao banheiro, meio cambaleando ainda sonolenta permaneceu debaixo do chuveiro, enquanto Tadeu ia lhe contando causos aos quais ela não dava a menor importância. Ela tentava se lembrar de alguma estreia no cinema, algum filme ainda não visto de Brunuel? Pensava na nova fase do cinema francês, e na exposição que só ia até este fim de semana das fotos da noite clandestina de Paris, aquela reportagem lida na revista sobre a vida de garotas de programa brasileira na cidade da luz tinha mesmo lhe chamado a atenção.

- Porra!!! pensando bem esse Jura é cheio das nove horas, por que não me explica por telefone mesmo ou vem aqui em casa?!!! A voz de Tadeu atravessa seus pensamentos.

No banheiro em seu banho Helena sentiu uma forte pontada na cabeça, tudo começou a girar, ela caiu no chão e o teto parecia girar também como a água escorrendo no ralo, falta de ar, o corpo suando frio debaixo da água quente do chuveiro. Entre a fresta da porta pode ver um cão se aproximar e sumir repentinamente, os dentes a mostras, uma das patas da frente erguidas, quando investiu em sua direção sumiu como se entrasse em um portal para outra dimensão.

Levantou-se, preferiu ignorar o acontecido, e voltou ao quarto.

- Não gosto muito dessas suas companhias, que tipo de serviço alguém como o Jura pode lhe arrumar? Respondeu assim sinteticamente a tudo que Tadeu dissera até ali.

- Mas eu preciso trabalhar. Retrucou Tadeu. Pô pera aí!!! Você tá me ouvindo?!!!

Na festa Helena atraia os olhares de homens e mulheres e percebia nestes, uma mistura de inveja e desdém, seguiu ignorando algumas coisas e se interessando por outras, viu ao fundo, atrás da pista e de uma multidão, tipos que ela conhecia dos filmes noir da década de 50, teve ímpeto de seguir em frente, mas ao olhar para o lado não viu mais Tadeu, pode na verdade, vê-lo contornando a curva do banheiro masculino.

Nos dois minutos que se seguiram permaneceu sozinha, imóvel, não sentia os pés, não ouvia nenhum som, seu olhar se encontrava de forma seca com a parede, ultrapassando as pessoas e as coisas.

De repente sentiu um beijo estalar em seu rosto, era Tadeu, de mãos dadas foi até o bar, cada um com um drink na mão, silenciosos, inquietos. Tadeu movimentava-se buscando certa sintonia com o ritmo da música, de certo ele também gostaria de estar no meio da pista dançando, ainda que não soubesse, ainda que soubesse que não tinha o menor jeito para danças e coreografias. Ela divertia-se, lembrava dos ataques de moralismo de Tadeu que condenava e juntava em uma classe só, de miseráveis as pessoas da noite. Outros sorrisos ameaçavam seu rosto e seus lábios, mas seus lábios agora, suportariam até repentinas gargalhadas, bem umedecidos. A receita lida na revista fora mesmo uma cura para os seus lábios secos.

Então juntos Tadeu e Helena foram surpreendidos por Jura, um sujeito alto, forte, mais gordo do que forte, barba grossa, a camisa aberta, uma gargalhada pronta na boca, a voz alta irritantemente alta, já deveria estar bêbado, ou ao menos o álcool se dissipara em sua personalidade, uma personalidade lenta e silenciosa naquela massa de ignorância dos espaços. Jura esquecia completamente do espaço pessoal de cada um, quando falava naquele estado, encostava o mais próximo possível seu rosto ao da pessoa com quem estava falando, certa vez de tão próximo roubou um beijo de Helena, ela achou somente engraçado, não havia o por que contar a Tadeu. Não contou.

Assim ela ficou vendo o rosto de Tadeu e Jura bem próximo um ao outro, imaginou-os se beijando, o álcool imperceptível das bebidas doces e fracas juntava-se em sua cabeça, sorriu sozinha. Talvez só ali diante de tanto barulho o Jura tinha motivo para se aproximar tanto para ser entendido, mesmo assim via seu namorado com a mão posta no peito do amigo como quem delimita o espaço a ser preservado. Tadeu parecia ainda mais inquieto, Jura não modificava sua feição, com ar superior e sádico.

Helena se afastou um ou dois passos, apoiou-se no bar, e deitou a cabeça sobre os braços, quase prevendo a futura pontada na cabeça, tontura, começou a ouvir as vozes de seus pais sem identificar o que diziam, em seu reflexo no espelho manchas de sangue escorriam a partir da testa. Inútil e repetidamente ela tentava limpar. Virou então o olhar para a pista de dança, não reconhecia ninguém, manchas nos rostos e rostos mutilados, como num quadro de Francis Bacon.

Tadeu e Jura pareciam discutir, ou somente conversavam de forma mais enérgica. Fechou os olhos para conter a ânsia de vomito, e a voz de seus pais voltou a sua mente, percebeu agora que nada diziam apenas gritavam.

Seu corpo esmaeceu, por um instante pareceu tombar, mas antes retomou uma vitalidade que lhe permitiu permanecer ainda de pé, de olhos ainda fechados viu-se novamente no carro de seus pais, num quase atropelamento do cãozinho marrom. Vidros estilhaçados, aço se retorcendo em sua direção. Voltou a total lucidez assustada com o barulho de um copo estilhaçando-se no chão. Lembrou então que não lembrava daquele dia na praia, após a viagem, após o sonho, após o cão na autoestrada, nada existira, nada aconteceu.

Ao seu lado Tadeu maldizia algo, Jura se perdia no meio das pessoas, e lá no fundo, uma luz vindo da rua lhe chamou atenção. E foi neste caminho que ela seguiu, esbarrando em algumas pessoas, ganhou a porta apoiou-se na parede antes de sair sorriu, e deu o primeiro passo em direção a rua.

- Senhorita a comanda, por favor, uma voz grosa seguida de uma mão Igualmente grossa lhe parou. Entregou um cartão um tanto amassado, fragilmente seguro em suas mãos com os dizeres VIP: Very Important Person.

Arrumou o decote do vestido, e parou o primeiro táxi que atravessou seu caminho, Aproximava-se de sua mente uma clareza e uma imensa paz, passavam flashes da rua Augusta e das ruas de Paris, ignorou a perturbadora lembrança de seus pais, por que sentiu também que iria chorar, talvez numa profundidade absurda de seu ser teve vontade de agradecer ao divino, por dar a ela o poder de simplesmente bloquear uma lembrança. O cachorro raivoso que a perseguia, aquela viagem de infância que queria ser lembrada, mas não, ela disse não. Uma última olhada para trás, entre possíveis destinos ela apenas pediu ao motorista do táxi que seguisse em frente.

Helena...Era um imã para cafajestes...

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