SORTE
As luzes dos faróis do carro batiam nas paredes de madeira da velha
casota que se encontrava perdida entre os campos e distante das luzes da cidade.
A luz esbranquiçada que entrava através das frinchas despertou
a curiosidade do António, pois a mesma parecia parada e projectada naquela
direcção e não a luz de um carro que passa.
Lentamente, com todos os cuidados o António aproximou-se da janela e
com a ponta dos dedos começou a desviar as cortinas negras que a tapavam
.
Então viu um automóvel parado com os faróis acesos, do
qual três homens puxavam para fora uma mulher.
- Sua puta vais pagar o que fizeste, dizia um deles.
- Agarra no outro pé dizia o outro.
- Vais paga-las, esta caralha é forte, mas com duas lambadas bem assentes
perde logo a força.
- Espera aí oh Pietro, não é necessário recorrer
ainda à força, dizia aquele que com uma gorra na cabeça
parecia ser o chefe.
Lentamente, metendo a mão no bolso do casaco retirou um revolver Remington
de calibre 31 com silenciador e encostando-o à cabeça da mulher
disse-lhe:
- Queres saír do carro, ou !...
Tremendo a mulher começou a gritar:
-Socorro! Socorro!
- Grita, grita minha puta de merda, o socorro vou-to dar eu, e agarrando-lhe
pelos pés com toda a força o Pietro conseguiu arrastar a mesma
para fora do carro.
António não sabia que fazer.
O seu cérebro começou a funcionar a toda a pressão, se
calhar vão viola-la, concerteza que a vão matar, não, só
a devem matar depois de a violarem.
E eu que posso fazer, que posso fazer? Olhando para o tecto da casota o António
parecia meditar...que posso fazer?
Não tenho telefone, não tenho arma e eles são três,
não posso fazer nada, nada mesmo, sinto-me impotente.
O melhor é eu ficar quieto e tentar ver o que se vai passar sem me mexer,
senão ainda me caiem em cima.
Porra para isto o que me havia de acontecer, logo a mim! Sinto-me um cobarde,
mas a verdade é que nada posso fazer. Para que fui eu escutar o Belarmino?
Não era necessário que eu tivesse vindo à casota para meditar.
António era um rapaz frágil, um intelectual fraco e influenciável,
tinha terminado o curso de professor e não tinha conseguido colocação.
Por vezes ia até ao café onde encontrava os amigos de infância
e iam trocando ideias e pontos de vista.
- Então António novidades?
- Nada Belarmino concorri para o privado, vamos lá a ver o que acontece.
- Espero que tenhas sorte!
- Eu também, pois esta situaçao põe-me num estado de angústia
que não podes imaginar, sinto que estou só e abandonado pela sorte,
lutando contra tudo e todos, custa-me a acreditar que seja assim para mim.
- Não penses nisso António, todo o homem tem o seu dia de sorte,
a questão é de saber esperar, aproveitar a passagem da carruagem
e apanhar a mesma.
Desesperado o António saiu do café e começou a caminhar
sem exactamente saber o rumo que tinha tomado. Andou, pensou e por vezes imaginava-se
diante dos alunos da sua turma, tentando fazer-lhes compreender que o sentido
correcto da vida era exactamente o de se dedicarem ao estudo, para que quando
mais tarde tivessem que lhe fazerem face, lhes fosse mais fácil de a
perceber.
Perdido nos seus pensamentos, o António de repente deu consigo diante
da casota que tanta curiosidade lhe despertava quando por ela passava, sem nunca
ter tido a coragem de deitar uma vista de olhos ao seu interior.
Mas naquela noite as coisas aconteceram assim, por um mero azar.
Empurrou a porta que não estava fechada à chave e conseguiu com
muita dificuldade aperceber-se de uma mesa à volta da qual estavam duas
cadeiras. Não conseguiu ver mais nada pois fazia verdadeiramente escuro
e o António não fumava. Não tinhas fósforos e tão
pouco tinha uma lanterna e foi assim que de repente a luz do carro lhe bateu
na cara.
- E então que fazemos com esta cabrona?
Ouviu o António uma voz que parecia acompanhar o faixo de luz.
- Queres ser tu o primeiro a saltar-lhe para a espinha?
- Eu não, eu vim aqui com o firme propósito de dar uma lição
a esta puta de merda, não sou adepto de violar seja quem for.
- Compreendo, mas tu não vês que, quer a violes ou não,
ela vai ter que morrer.
O António começou a tremer, mas que posso eu fazer?
Vou ser testemunha de um crime ser poder fazer nada para o evitar.
Mas que fiz eu a Deus para que isto me aconteça?
Fechou os olhos e voltou a abri-los, como que a tentar convencer-se de que não
estava a sonhar. Porquê, porquê a mim?
Pensava batendo com os pés no chão.
- Então e tu Chaves não queres molhar o pincel?
- Bom se a vamos matar não digo que não.
- Não temos outra solução, de todas as maneiras vamos ser
acusados de rapto e isso quer dizer uns bons anos de prisão.
- Mal por mal vamos a isso, mas achas que vamos ser acusados?
- Se nos apanharem sim, então o melhor é apagar todas as pistas
e tentar fazer de conta de que não sabemos de nada.
- Mas eu não digo nada, juro, juro por Deus, dizia a mulher banhada em
lágrimas.
- Se ainda jurasses por ti, sobre a tua cabeça, mas agora jurar por Deus,
se calhar até nem és católica!...
- Então, eu juro sobre a minha cabeça que não direi nada
e até me deixo violar, o que não quero é morrer.
Não vocês não me violam, eu é que consinto e quero
ter relações sexuais com vocês!
- Essa história já nós conhecemos, não dizes nada,
não dizes nada, sabendo nós que o teu pai é juiz e que
foi ele que nos meteu na cadeia, só porque fomos apanhados a snifar cocaína.
Até que não somos viciados, só estavamos no local errado,
no momento errado.
Era sexta-feira, estavamos todos no bar Funk&Blue, quando ouve uma rusga
Estava eu exactamente nas cagadeiras a fazer as linhas quando dois matulões
da policia arrombaram a porta.
Nem tive tempo de apanhar o saco que continha meia grama, tava exactamente com
a palha na mão para me curvar em direcção às linhas
de coca quando tudo aconteceu.
Fomos pra grelha e passados dois dias fomos julgados.
Pensas tu que o teu pai teve compaixão de nós?
Que acreditou que íamos dar um snife pela primeira vez?
Acreditou o teu pai que não eramos nenhuns drogados?
Se calhar o teu pai também snifa, ora diz lá a verdade!
- Eu não sei de nada, nunca o vi, mas por vezes ele fecha-se no escritório
e quando sai está mais eufórico e senhor dele mesmo, quero dizer,
mais seguro do que estava antes.
- Vês, nós sabemos que essa corja de juízes e advogados
andam todos na dona branca, e se calhar ele também anda.
- A minha mãe diz que por vezes ele anda esquisito, que deve ser uma
sobrecarga de trabalho. Ser juiz, pede muito duma pessoa, diz ela.
- E queres tu que nós acreditemos que tu nada dirás à policia?
Sabes o que disse o teu pai?
Disse que gente da nossa espécie devia desaparecer da sociedade porque
andavamos a envenenar a juventude, eramos futuros assassinos.
Podes tu imaginar?
Nós, filhos de boas familias, acabamos os cursos este ano e somos assassinos
em potencial!
Diz-me lá qual é a juventude que não tem tentações,
qual é a juventude que não gosta de experimentar coisas novas
que não desafia o risco, que não teme o perigo?
Diz-me lá?
E tu? Não me digas que nunca fumaste uns charrozitos quando sais com
os teus amigos?
- Sim, já fumei, mas isso não quer dizer em nada que tenha que
ser eu a pagar pelas decisões do meu pai, pelas decisões da lei.
- Da lei sim, mas com a aprovação do teu pai, por outra, com a
decisao final e pessoal do senhor juiz. A lei neste ponto até é
flexível e o teu pai não foi nada flexível, ao contrário
foi radical!
Não me digas que não tivemos sorte pelo facto de termos encontrado
o teu pai pela frente?
Foda-se, não tivemos mesmo sorte nenhuma!...
- Ah, vais pagar vais! Sabes quanto tempo estivemos dentro?
Três meses, três meses por uma merda de um snife que não
chegamos a dar, nem o benefício da dúvida o teu aceitou.
Sabes quanto mal nos fêz?
Agora temos um dossiê judiciário, socialmente estamos marcados,
alguém vai ter que pagar e esse alguém és tu minha puta
de merda!
Erguendo o pescoço o António afinou as orelhas, acabaram o curso
este ano!
Então devem ser colegas, e se eu saísse e tentasse falar com eles?
Talvez os reconhecesse, talvez até me ouvissem. Não, não
acredito, talvez me matassem para apagarem mais uma prova.
- Vês aquela casota oh Chaves? Vai ver se está vazia?
Ao ouvir isto o António rastejou até junto da mesa, mas ao meter-se
debaixo, bateu com a cabeça nas pernas e uma garrafa que estava em cima
da mesma caiu e fez um ligeiro ruído.
- Oh Chaves ouviste? Ouviste este ruído?
- Eu não ouvi nada.
- Então vai lá ver o que se passa na casota, leva a lanterna.
Abrindo a porta com um pontapé e dirigindo a luz da lanterna para o interior
,o Chaves não viu nada. Foi girando a lanterna e nada viu! Regressando
junto dos outros disse:
- Não vi nada, só vi uma garrafa vazia de coca no chão,
devem ter sido os ratos à procura de comida.
- E se levassemos a rapariga para o interior da casota? Assim podiamos estar
mais a vontade. - Não é uma boa ideia, pode vir alguém
e não conseguimos ver. Mas daqui temos um controlo sobre o que se passa
à nossa volta.
- Tens razão, tens mesmo muita razão.
Tremendo debaixo da mesa, o António não podia acreditar como é
que aquele homem com a lanterna não o viu. Mais uma vez lhe vieram à
memória as palavras do Belarmino: todo o homem tem o seu dia de sorte.
E isto não era sorte?
Ter escapado à vista do homem, não compreendia, talvez o mesmo
estivesse cego pela luz intensa da lanterna.
- Oh Chaves tu tens a certeza de que não está ninguém naquela
casota?
Já te disse, se não acreditas em mim, vai lá tu ver!
- Então passa cá a lanterna. António não podia acreditar,
começou a roer as unhas, se escapar desta meu Deus, tenho a impressão
que subirei as escadas do Santuario de joelhos. Não, isso não!
E que dirão os meus amigos se me virem? Eu que sempre anunciei ser indiferente
à religião, que não acreditava em nada.
Não, mas prometo que ponho umas velas a arder ao Santo António.
Isso, umas velas ninguém me verá a pôr, umas velas, e se
me virem posso dizer que foi a minha mãe que me pediu.
Caminhando lentamente, o segundo homem com a lanterna acesa, entrou na casota
e virando a luz da mesma em todas as direcções nada viu. Sem mexer,
sem respirar o António evitava até pensar, criou-se entre ele
e a mente um buraco negro, foi como se tivesse entrado dentro dum redemoinho.
Parecia que flutuava nos ares, espreitando para a porta pôde ver os sapatos
do segundo homem, que se encaminhava em direcção ao carro.
- Tens razão Chaves, a casota está vazia, não corremos
grande risco. Mas como disseste, é melhor dar cabo dessa gaja aqui, pois
podemos controlar melhor o que se passa à nossa volta.
Respirando fundo, António não queria acreditar, era-lhe impossível
crer que por duas vezes tivesses escapado. A sorte estava efectivamente do seu
lado!
Como são as coisas, terminou o curso, não conseguia colocação,
caminhou numa noite de outono sem rumo e parou na casota, por mera curiosidade
e por duas vezes escapou à busca, que os dois homens tinham feito. De
facto, a sorte estava do seu lado! A quem devia ele agradecer?
Isso sim ele ia pôr as velas ao Santo António, isso ele ia fazer.
De repente ouviu-se um tiro, António assustou-se e bateu com a cabeça
no fundo da mesa, fazendo com que esta caísse. Os três homens viraram-se
em direcção da mesma. - Não pode ser! Deve estar alguém
a espiar-nos.
António só teve tempo de voltar a pôr a mesa direita e meter-se
de novo debaixo da mesma.
- Pietro, agora vais tu ver se está alguém naquela puta de casota,
já estou a ficar enervado com esta situação. Não
me digam que agora não ouviram o barulho!
E virando-se para a rapariga perguntou-lhe: não ouviste o barulho?
- Eu não, disse a mesma choramingando.
- Não me digas que não ouviste nada!
- Não, não ouvi nada, desculpa.
- Deixa lá a rapariga em paz. Como queres tu que ela ouça alguma
coisa? Queria ver se tu na sua situação também tinhas ouvido
algo.
- Ok, ok, pronto, ela não ouviu nada!
António pensou: isto é que é sorte, até uma aliada
tenho.
Dirigindo-se à casota, Pietro empurrou a porta tranquilamente e dirigindo
a luz da lanterna em direcção ao interior, girou com a mesma por
todos os cantos, e nada! Saindo, Pietro gritou:
- Não vi nada, a casota está vazia, só vi a garrafa de
coca no chão.
- Ok, anda, vamos embora. Já se está a fazer tarde e temos que
resolver este problema.
Então estamos todos de acordo.
Erguendo-se lentamente António saiu debaixo da mesa e dirigiu-se gatinhando
em direcção à janela. Cuidadosamente, com os dedos desviou
a cortina e espreitou. O homem da gorra, com a arma na mão, apontada
em direcção à cabeça da mulher dizia:
- Então estamos todos de acordo matamo-la?
- Sabes, dizia o Pietro, eu acredito na sinceridade da rapariga e penso que
ela não dirá nada à polícia, nem ao seu pai. Por
isso não estou de acordo e tu Chaves?
- Eu tenho as minhas dúvidas, mas tou mais inclinado, a que ela, com
o medo não dirá nada.
- Eu quero que vocês se fodam! Quem tem a arma sou eu e eu decidi que
ela vai morrer. Tenho gravado na minha carne o mal que o seu pai me fez. Por
isso não perdoo, vou mata-la!
António sentia-se desfalecer, a pobre mulher. Naquele momento ele interiorizava
a situação da mesma, o sofrimento, a angústia, a impotência
de se ver em frente de três homens, dois dos quais a perdoavam e um implacávelmente
duro e convencido, de que só a morte da mesma era a solução
para a sua dor. Sentia frio, sentia-se fraco. Como sempre fora, em situações
idênticas, a sua sensibilidade à flor da pele levava-o a pensar
com o coração, levava-o a pensar como um católico.
A pena, o lado sentimental, a dor, que o outro tinha, ele transportava-a para
ele. Era mesmo capaz de morrer no lugar da rapariga, mas sentia-se cobarde e
não queria ou, não podia abandonar a sua posição.
Não porque o não quizesse fazer. Mas porque a sorte lhe tinha
batido à porta, a ele que esperava esta sorte como a resolução
da sua salvação social. Não queria deixar a rapariga estendida
naqueles campos morta, sem nunca saber onde a sorte o conduzia. Rastejando no
silêncio da noite, António dirigiu-se à porta. Quando pôs
a mão na soleira da mesma, ouviu o homem da gorra que o tinha impressionado
pela sua firmeza em respeito à decisão, pela forte convicção
de que o seu caminho era aquele que ele mesmo tinha traçado e ninguém
mais, ninguém o faria voltar atrás.
- Esta puta vai morrer agora mesmo, olha para as estrelas pela última
vez e refugia-te numa delas, como sendo a tua nova morada. Erguendo a arma disparou
em direcção à cabeça da mulher.
Um forte grito, um respirar profundo e os outros dois homens a caírem
ajoelhados perto do corpo da mulher estendida no chão.
- Está morta, já não respira! Tudo acabou como devia acabar!
De repente o homem da gorra dirigiu a lanterna em direcção à
porta da casota.
- Eu bem sabia que estava alguém naquela casota, eu bem sabia!
António sentiu uma dor no peito e caiu estendido com os olhos abertos
virados para a estrela que a mulher tinha escolhido como nova morada. Correndo,
os três aproximaram-se de António.
- António, António! Deixou escapar o homem da gorra.
Parecendo-lhe que alguém o chamava dos confins do ser, António
começou a abrir os olhos lentamente.
- És tu Belarmino? E apertando a mão do amigo tentou levantar-se.
- Porque é que a mataste?
- Como?
- Sim, porque é que a mataste?
- Dolores, Dolores, levanta-te e anda para junto de nós.
Dolores levantou-se e veio juntar-se ao grupo em cujo centro António
procurava as palavras para se expressar.
A sorte, António! A sorte, António!...
AZAR
Depois de ter terminado as aulas, António dirigiu-se ao consultório
da sua esposa, a qual o esperava, para assim poderem passar a recolher os filhos,
que tinham também terminado as aulas.
- Sabes Samaia sinto-me cansado e penso que este ano gostaria de tirar umas
férias, não precisam de ser longas, mas que me levassem um pouco
para longe desta cidade.
- Tens razão António, eu também sinto isso, tenho tido
durante estes últimos meses demasiada stress.
- Então vou falar ao Belarmino e à esposa, Dolores, os donos daquela
agência de viagens, Bonsvoos, para que nos preparem um programa de férias
para duas semanas, que dizes?
- Muito bem.
Dias depois António dizia à mulher:
- Pronto o Belarmino aconselhou-me a fazer um cruzeiro pelas ilhas Gregas, gostas
da ideia?
- Sempre sonhei em visitar essas ilhas, tenho clientes que já o fizerem
e só me dizem maravilhas. As ilhas Gregas! As ilhas Gregas!...A ilha
de Tassos, Rhodes,Mikonos, Ios, Creta e muitas mais, vou adorar António.
- O Belarmino disse-me que este cruzeiro faz escala na Secilia, parece que ficamos
um dia em Palermo. Bom, agora o que temos a fazer é pedir aos teus pais
que fiquem com as crianças durante estas duas semanas. Podemos inclusive
mandar a Aline para os ajudar.
- Amanhã mesmo vou convida-los para o jantar e falamos no assunto, não
podes imaginar como me sinto desde já excitada com a ideia, e donde partimos?
- Temos que ir à capital e embarcamos do porto, no quais quatro. Levamos
o carro até lá e deixamo-lo em casa do teu primo Braulio.
- Boa ideia!
- Então começa a verificar se tens tudo que te faz falta para
a viagem. Eu do meu lado vou fazer o mesmo.
Samaia era de facto uma mulher esbelta, bonita, umas linhas fisicas bem traçadas
e proporcionadas. Alta, de um metro e setenta e cinco, umas pernas compridas,
um rosto redondo apoiado num pescoço esguio e longo, cabelos pretos azeviche
e uns olhos verdes de uma profundidade enigmática. A tez era ligeiramente
achocolatada, o que lhe dava um ar de asiática. Há quem diga que
Samaia tinha origens ciganas. Seja como for, ninguém na cidade compreendia
como é que o António tinha casado com uma mulher de uma beleza
assim tão demarcada.
Todos pensavam que a sorte mais uma vez tinha batido à porta do António.
Não só pelo facto de Samaia ser de uma beleza a fazer virar o
pescoço a quem por ela passava, mas também pelo facto de ser uma
excelente pessoa.
- É como te digo António, tiveste imensa sorte em teres encontrado
uma mulher como a Samaia.
- Lá isso é verdade Belarmino, lá isso é verdade.
- Conta là como é que tu conheceste a Samaia.
- Não sei se te lembras do baile de fim do ano em que fomos ao hotel
da praia?
- Sim lembro-me e lembro-me muito bem de ter visto entrar a Samaia com os pais.
Logo de seguida, todos os homens solteiros se puseram de pé para admirar
a beleza da mesma!
- É verdade também me lembro, mas lembro-me também que
nenhum de vocês teve a coragem de se levantar e a ir buscar para dançar
- É bem verdade António! Ficamos presos às cadeiras com
a sensação de que uma beleza como aquela não nos era destinada.
- Pois aí foi o vosso engano. Eu como estava do outro lado da pista senti
em mim uma força como uma mão invisível, que me empurrava
para junto da Samaia. Ainda ofereci uma certa resistência, mas uma voz
que se chegou aos meus ouvidos, disse-me: António, espero que não
venhas a agir como no dia em que o Belarmino fez de conta que matou a Dolores.
Acredita que senti como umas molas nos sapatos, foi como se tivesse dado um
salto e lá estava eu em frente da Samaia inclinando a cabeça e
convidando-a para dançar.
Depois Belarmino, o depois aconteceu por si, o resto aconteceu como naturalmente
as coisas acontecem.
- Pois podes crer António que tiveste uma sorte danada.Tens na Samaia
além de uma excelente pessoa uma mulher que todos ambicionavam ter.
- Obrigado Belarmino.
Samaia era muito dedicada ao trabalho, além de dar consultas no seu consultório
de médica dermatologista, também operava numa clínica de
cirurgia plástica. Fazia um duo com o doutor Quintanilha, um jovem médico
de reputação internacional.
Eram felizes, mas por vezes o António era acometido de pensamentos que
o deixavam angustiado, e numa crise de ciúmes, pensava que mulher o trocava
pelo jovem médico, por vezes sonhava e via a bela Samaia nos braços
do Quintanilha fazendo amor com o mesmo e então acordava banhado em suor
e aos gritos. Mas quando estendia a mão e sentia a fina pele da Samaia
ficava mais sossegado e voltava a adormecer.
O dia da partida chegou. Era um dia quente do mês de Julho, depois de
ter conduzido até à capital foram visitar o primo da Samaia, o
Braulio, onde deixariam o automóvel até à data do regresso.
O Braulio conduziu-os até ao porto, donde embarcaram.
A sirene do navio fez-se ouvir por volta das cinco horas, hora em que o mesmo
largou as amarras.
Viagem extraordinária! Com lindos
por-de- sol e águas de um verde parecido com os olhos da Samaia.
As ilhas Gregas estavam banhadas por um sol amarelo que penetrava na pele e
parecia enjectar-lhe uma enorme dose de energia.
À noite, por vezes no barco, outras em terra, António e Samaia
dançavam ao som da música Grega e à luz das estrelas.
António sentia-se verdadeiramente feliz e Samaia também.
- Sabes que para mim esta viagem tem duplo significado? Uma nova lua de mel!
Samaia encostava a cabeça no ombro do António e deixava-se sentir
a mulher mais feliz nas ilhas gregas.
Outras vezes sentados nas cadeiras da proa do navio, em silêncio ouviam
o ruído das águas, apertando a mão um ao outro.
Era de facto romântico vê-los como um jovem casal que está
apaixonado pela primeira vez.
Depois de terem dado a volta às ilhas, o barco parou em Palermo para
aí passarem um dia.
Na praça pública, onde os turistas tiravam fotografias às
pessoas locais dando de comer às pombas, o António aproximou-se
do redondo que faziam as pessoas para também tirar uma foto de recordação.
Mas não se sabe porquê, as pombas assustaram-se e começaram
a voar, umas para a esquerda, outras para a direita, quando de repente uma veio
direita ao António e bateu-lhe no pescoço.
Passando a mão no mesmo e não sentindo nada nem vendo sangue,
não ligou ao sucedido.
De regresso à capital para desembarcarem, jantaram e dormiram em casa
do primo Braulio, regressarando a casa no dia seguinte.
No trabalho, o António só falava das maravilhosas férias
que teve.
Os dias foram passando e tudo voltou ao normal, ou quase tudo, pois nessa noite
o António sentiu uma ligeira comichão no pescoço.
- Oh Samaia passa a tua mão no meu pescoço na parte de trás,
sinto uma ligeira comichão.
- Não vejo nada e não sinto nada.
...e assim António adormecia...
No dia seguinte a mesma coisa só que a comichão era muito mais
forte e prolongada.
- Oh Samaia devo ter algo no pescoço, isto não é normal,
esta comichão!
E Samaia voltava a passar os finos dedos na pele, agora um pouco rogosa do pescoço
do marido.
- De facto tens razão, sinto a pele um pouco mais dura, deves ter sido
mordido por algum mosquito, amanhã depois do trabalho sobes ao meu consultório
que eu vou examinar isso com mais atenção.
No dia seguinte o António sentiu-se mal, sempre com vontade de coçar
o pescoço.
No intervalo das aulas os colegos iam perguntando:
- António não me digas que tens a sarna passas o tempo a coçar-te!
- Não é nada, é um tique que apanhei.
Depois de terem terminado os cursos, António foi directo ao consultório
da mulher.
- Entra António entra, eu já venho.
- Ora vamos lá ver isso!
Depois de ter calçado as luvas e com uma lampada virada para o pescoço
do António, Samaia começou a fazer pressão no mesmo.
- Doi-te?
- Não, mas sinto comichão.
- Não vejo nada! A não ser umas ligeiras manchas negras.
- Mas eu nunca tive manchas negras no pescoço.
- Olha tenho aqui uma pomada antibiótica, vais aplicar à noite
e isso vai passar.
Passados dez dias o pescoço e parte das costas do António estavam
cobertos por uma crosta dura muito parecida à pele de crocodilo.
António deixou de ir dar aulas, meteu atestado médico sem limite
de tempo, passado pelo médico da familia. Samanta começou a dormir
no quarto de hóspedes com medo de que fosse contagiada pela doença
do marido. Acabou por proibir as crianças de irem ver o pai.
- Francamente não vejo o que seja! Dizia ela ao especialista que acompalhava
o Quintanilha.
- Amanhã pela tarde passo por sua casa e vou dar uma olhadela no seu
marido.
Torcendo o nariz o especialista dizia ao António:
- Não estou muito certo se isto será elefantíase, ou coisa
pior! A verdade é que isto progressa e se espalha por todo o corpo. O
que me surpreende é que esta crosta dura está a tomar a forma
de uma pele de crocodilo!...
Os dias foram passando. António já não via a mulher assim
como as crianças. A comida era deixada à porta do quarto pela
criada Aline.
O corpo de António estava já coberto pela pele dura, só
ao fundo se conseguiam ver os pequenos olhos.
António evitava de passar em frente do espelho. Os pensamentos agora
eram mais dolorosos do que antes, só o pensamento de que a mulher se
estendia entre os braços do Quintanilha deixavam-no louco de impotência.
Já não podia estender os braços e sentir a fina pele da
Samaia.
O choro era-lhe impossível e dava-lhe mesmo a sensação
de que as lágrimas caíam para dentro.
Vinte e quatro horas fechado naquele quarto, sem nada poder fazer. Arrastava
até à janela aquele corpo que lhe dava a sensação
de pesar uma tonelada.
Um dia em que a chuva batia na janela o António acercou-se da mesma e
começou a olhar para o horizonte, quando de repente viu um automóvel
preto que parou em frenta da sua porta. Do automóvel viu Samaia que saía
e dava a volta dirigindo-se ao lado do condutor. Viu-a debruçar-se sobre
a janela e beijar o condutor, que não era outro que o seu colega de trabalho,
o jovem doutor Quintanilha.
A dor pareceu ser-lhe mais intensa, fazer-lhe mais mal, doer mais, ser uma dor
mais aguda, como o espetar de agulhas finas na carne. Queria chorar mas as lágrimas
não saíam. Pegando na cadeira que estava próxima atirou-a
contra a janela com raiva, em sinal da sua revolta e da sua impotêcia.
Eles, ali os dois amantes a beijarem-se diante dele, e ele impotente sem nada
poder fazer. Mas que mal tinha ele feito seja a quem for para merecer tamanho
castigo?
A chuva deixava nos vidros da janela gotas grossas que substituiam as suas lágrimas.
De repente pensou na frase que lhe tinha dito o Belarmino anos atrás.
- Não penses nisso António, todo o homem tem o seu dia de sorte,
a questão é de saber esperar, aproveitar a passagem da carruagem
e apanhar a mesma.
E ele tinha aproveitado a passagem da carruagem, só que agora se sentia
exactamente como se havia sentido anos atrás, impotente às realidades
que se lhe apresentavam diante dos olhos.
Atirando aquele corpo monstruoso para cima da cama queria deitar as mãos
aos olhos e chorar, mesmo sem lágrimas queria chorar e gritar. Mas as
mãos eram enormes e com aquela pele infame, não o deixavam cumprir
o desejo que tinha.
Levantando-se dirigiu-se de novo para a janela onde sentiu uma vontade de se
atirar pela mesma. Mas o corpo era enorme e não passava através
da mesma.
Sentando-se no chão deixou que o pensamento tomasse conta dele e que
o torturasse até à morte. Já nada mais lhe importava senão
deixar de viver, saír de dentro daquela carapaça que o impedia
de se movimentar. Num esforço último tentou abrir a boca para
se morder, mas a mesma era tão pequena num corpo tão grande que
nada podia fazer.
Eram talvez seis horas da tarde, quando ouviu ao longe o apitar do comboio que
perto da sua casa passava. Era a sua última chance, descer, correr, deitar
aquele corpo nos trilhos do comboio e esperar que o embate se desse.
Mas ao tentar passar pela porta não conseguiu. A porta era demasiado
pequena para deixar passar um corpo enorme como o seu.
Que fazer, que fazer?
Esperar que a morte o viesse buscar?
Essa seria a solução, mais nada podia fazer!.
Então deixou caír aquele corpo balofo e montruoso no chão,
fechou os olhos e esperou...
Esperou até que, de repente com a sensação de que tinha
acordado, estendeu a mão para o outro lado da cama sem encontrar o corpo
sedoso da sua mulher.
Levantando-se, caminhou até junto do espelho, viu-se com o cabelo completamente
desalinhado e com umas olheiras terriveis de quem tinha chorado toda a noite.
Dirigindo-se à sala de banho tomou um duche, vestiu-se e desceu para
a cozinha onde junto da máquina de café estava uma nota escrita
"Desculpa, não esperes por mim para jantar, não esperes por
mim, nunca mais, logo receberás noticias do meu advogado, decidi divorciar-me.
Prefiro assim, não te quero magoar.
Samaia."
Pegando numa taça e enchendo-a de café o António sentou-se
calmamente à mesa da cozinha e pensou:
É o azar António, é o Azar!
De repente com um ruído estridente o despertador tocou e António
deu um salto.
Eram exactamente sete horas da manhã, hora em que todos os dias o despertador
tocava. Horas em que todos os dias saltava da cama e se vestia para se dirigir
ao trabalho.
O sol penetrava pelas janelas da escola e António diante dos alunos sentia
uma alegria misturada com a dor no seu corpo.
Terríveis os pesadelos, terríveis!