Guilherme não dormira a noite anterior, transformara o travesseiro
em seu confidente e a cama em seu confessionário permanente. Homem de
poucos amigos, avesso aos colegas de escritório, sem irmãos, com
quem se abriria? A quem segredaria sua decisão mais importante? Rolou
de um lado para outro tomando o máximo cuidado para não acordar
Lúcia, sua companheira, já estava mais que acostumado a evitá-la.
Nos últimos dias vinha reunindo coragem e palavras para dizer-lhe a verdade...seria
melhor terminarem com sua história por ali, por aqueles dias. Enquanto
tivessem suas lembranças para preservar. Lembranças de tórridas
noites de amor, de cafés-da-manhã luxuriantes sobre a mesa da
sala de estar nua. Com a madeira atritando em seus corpos vez ou outra enquanto
suas bocas procuravam-se freneticamente.
A vida é assim, ensaiou mentalmente várias vezes o mesmo discurso,
deixemos a razão e os motivos para aqueles que dependem deles para prosseguir!
Você segue seu caminho, eu sigo o meu...um dia você encontrará
um grande amor! Alguém que te ame como você, realmente merece,
já eu não posso dar-lhe o amor que você sem duvida alguma
- merece! E, para falar a verdade - já que entre nós ela sempre
prevaleceu - eu já tenho um outro alguém...um outro amor!
Sentado na cama Guilherme olhou mais uma vez para Lúcia, sua cabeleira
ruiva que tanto o encantava agora parecia um tanto quanto desbotada.
¾ Talvez tenha sido o convívio que nos desgastou, murmurou para
si mesmo.
Já na sala de estar vestido e procurando por seus óculos escuros
olhou ao derredor e conferiu se tudo estava em seu lugar, meticulosamente no
lugar. Como de costume, cinzeiros batidos, livros regiamente alinhados em sua
estante, tapetes dispostos paralelamente aos vãos das portas de forma
que formassem um angulo que supunha reto caso algum raio de sol invadisse seu
palácio. Da grossa poeira que via-se lá e cá não
ficou nenhum vestígio após o final de semana dedicado a arrumação
da casa. Trocou os sacos de lixo imediatamente a cada embalagem de algo que
dispensou. Recheou a geladeira de guloseimas, champanhe barata e ingredientes
para práticos que acreditava serem afrodisíacos!
Enfiado em seu terno azul de linho e com os sapatos ruidosamente engraxados
trancou a porta e dirigiu-se a loja de roupas femininas no fim da rua de sua
casa.
Como posso?- perguntou-se varias vezes- Como posso? Lúcia ainda repousa
tranquila em nosso leito e eu aqui, comprando roupas para a outra...mas
sua vergonha, a vergonha que sentia de si por seu comportamento ingrato com
a velha companheira, não o deteve! Meias calças, babydoll de delicada
renda preta, um ou dois vestidos de festas e bem pouca roupa do dia a dia comprou.
Não fez conta do preço, serviu-se do cartão de credito
para pagar e deixou recomendações expressas aos entregadores.
Afinal precisaria, ainda, de algum tempo para conversar definitivamente com
Lúcia! Na saída da loja, de soslaio, deu uma piscadela um tanto
quanto maliciosa- para não dizer sem vergonha- para a moça da
vitrine, já estavam acertados, pensou.
Naquele dia não foi trabalhar, voltou para casa e começou a preparar
o jantar muito cedo. Não queria que nada desse errado em seu primeiro
encontro com sua nova paixão, todavia, lembrou-se de Lúcia só
as três horas da tarde. E decidiu por um ponto final em sua agonia. Dirigiu-se
para o quarto e de maneira calma procurou desperta-la, como de costume auxiliou-a
a vestir-se da maneira mais apropriada possível e a conduziu até
a cozinha. Onde através da fumaça desse ou daquele ingrediente
a arder em alguma panela pôs-se a dizer-lhe o discurso que havia ensaiado
a dias.
Lúcia não disse nada, calma assistia o desfilar de pratos, panos
e copos a sua frente. Tão pouco mostrou-se contrariada ao ver seus perfumes,
pós e batons despojadamente jogados numa sacola velha num canto qualquer
da pequena cozinha. A campanhia soou na hora combinada com os entregadores da
loja, que apressados mal esperaram Guilherme abrir a porta e conduziram suas
compras para a sala de estar para, em seguida, desaparecerem. Seu rosto corou
ao ver a bela jovem loira, cujos olhos verdes o seduziram já num primeiro
contato na loja.
Como estava ela vestida aquele dia?- lembrava-se claramente, num blazer e saia
purpura que pareciam excepcionalmente talhados para suas formas. Conduziu-a
para o sofá velho e lá procurou acomoda-la. Seus cabelos cintilavam
ao serem tocados pelos últimos raios do pôr-do-sol, que teimavam
em entrar na casa por uma das janelas abertas . O sorriso em seus lábios
demonstrava sua felicidade, pelo menos para Guilherme.
Sim, disse Guilherme para si mesmo, esta é a mulher da minha vida! Apressadamente
procurou nas sacolas pelas roupas que comprou...qualquer coisa combinaria melhor
com sua amada que jeans e camiseta. Foi ai que notou os pés desnudos
da moça! Um pequeno detalhe em que não pensara mas que pela manhã
ou no mais tardar no final do expediente do dia seguinte seria sanado, prontamente
dispôs-se a comprar um belo par de sapatos que combinassem com os olhos
dela. Por enquanto, teria que contentar-se com os velhos chinelos de Lúcia.
Entre uma frase e outra arrumou a mesa para o jantar. De onde estava via Lúcia
sentada na cozinha pateticamente. Conduziu o manequim de mulher vestido em suas
novas roupas para a cadeira, colocou-lhe o guardanapo no colo e pediu-lhe licença.
A suave brisa de verão que entrava pela porta aberta da cozinha indicava-lhe,
claramente, que já era passado das dezenove horas. Portanto, o momento
mais adequado para conduzir Lúcia, a velha boneca inflavel que adquira
num Sex-shopping há mais de cinco anos, para o velho deposito no porão.
Apressou-se em faze-lo e lá a deixou, sobre um amontoado de trastes velhos
qualquer.
Talvez um dia voltasse a procura-la, mas no momento sua preocupação
maior era com que nome batizaria sua nova paixão.