A Garganta da Serpente
Entrevista com Cobra entrevista com nossos autores
Entrevista com:

Fabrício Carpinejar

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- Fabrício Carpinejar -

Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão nosso habitante para o Balacobaco


Reconhecido pela Enciclopédia Britannica como um dos destaques da literatura brasileira em 2001, o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar demonstra fôlego e força para situar seu último livro em 2045. O jovem poeta decidiu antecipar a velhice - "com medo de morrer antes"- e narra a obra na altura dos seus 72 anos. O título é Terceira Sede, publicação da editora paulista Escrituras, prefácio de Carlos Heitor Cony e de Luís Augusto Fischer.

Poesia sem derramamento, seca e direta. Com estilo que o tornou conhecido, o escritor gaúcho nos oferece dez elegias sobre a velhice. Se ele realizou um poema longo com o premiado Um Terno de Pássaros ao Sul, Prêmio Açorianos/2001, apresenta novamente um narrador e uma peculiar visão de mundo. Já no título o autor revela a riqueza do tema: evoca a terceira idade como avidez e procura, afora o fato de grafar numericamente seu terceiro livro. Trata-se de uma crítica aos costumes de nossa sociedade, que relega os aposentados ao segundo plano, e ao mesmo tempo uma declaração de amor à memória e a tudo o que ela toca. "Só na velhice conheci o brio/ de viver com vagar", diz um dos versos.

A obra traz o relato de um protagonista na maturidade, que sente falta da esposa e coloca sua trajetória em retrospectiva, abordando a vida com extrema lucidez e honestidade. Espécie de Jó bíblico contemporâneo, perdeu tudo, menos a fé. Realiza o inventário de sua passagem: recorda da infância, contextualiza suas escolhas, estabelece uma relação de empatia e cumplicidade com o leitor. Em evidente movimento ficcional, Carpinejar aprofunda um olhar duramente contemporâneo a partir da miragem cronológica.

Versos de um só fôlego, toda elegia está encadeada na outra, como capítulos de um romance versificado. O crítico Luís Augusto Fischer evidencia o texto como mais um feito notável do escritor: "delicado, triste, elegíaco, como está anunciado e acontece mesmo, em todo o livro. Que começa estranho e termina íntimo".

Carlos Heitor Cony caracteriza Carpinejar como um pesquisador da alma e dos apelos humanos, ressaltando que "sua entrega à poesia é total, urgente, inadiável". Cony ainda chama atenção para a universalidade do enredo: "Terceira Sede é embrião e súmula da viagem que todos fazemos em busca das estrelas".

Natural de Caxias do Sul, Fabrício é filho de dois poetas, Maria Carpi e Carlos Nejar. O autor estreou na literatura com As Solas do Sol (Ed. Bertrand Brasil, 1998), "Prêmio Fernando Pessoa" da União Brasileira de Escritores, categoria Revelação e Estréia, finalista do Prêmio Açorianos de Literatura/99 da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre/RS e do Prêmio Nacional da Cidade de Belo Horizonte/MG em 2000. Com fragmento de sua segunda obra Um Terno de Pássaros ao Sul, obteve o 3º Prêmio Literário Internacional 'Maestrale - San Marco' 2001, o 'Marengo D'Oro (5ª Edição), em Gênova. Vertida ao italiano pela tradutora paranaense Cassiana Toazza Caldeira, a poesia concorreu na categoria obra em língua estrangeira, entre candidatos de diferentes idiomas como francês, inglês e espanhol, afora os de língua portuguesa (África, Brasil e Portugal). O júri composto por personalidades intelectuais e universitárias da Itália definiu o texto premiado como "exemplar pela intensidade dramática, que aprofunda a busca incessante do corpo, da alma e da figura do pai, através das roupas e dos vestígios da presença".

Considerado uma das surpresas da poética brasileira, o jovem gaúcho tem sido recomendado por escritores como Ivo Barroso, José Castello, Millôr Fernandes, Fernando Monteiro, João Gilberto Noll, Antonio Carlos Secchin, Miguel Sanches Neto e Luciana Stegagno Picchio. O crítico espanhol Xosé Lois García o colocou entre os 44 poetas brasileiros representativos do cenário contemporâneo, em antologia bílingue publicada em Madri. O chileno Antonio Skármeta é um dos que destacou a força de sua produção: "Rara vez se encontra poesia tão sensível e ao mesmo tempo tão inteligente como a de Carpinejar".


O que é real: a literatura ou o que escapa da escrita?
Real é o que escapa da escrita dentro da literatura, no momento em que apenas apanhamos a realidade na íntegra, com suas crenças, vacilações, abalos. Superando o reducionismo factual, a realidade é também o que imaginamos. Defendo a poesia como um espaço de insubordinação da linguagem, a ponto do verbo não precisar apontar, legendar e repetir para dizer o que é certo ou errado. Não há certo e errado na poesia. A verdade é uma beleza insuportável. Precisamos chegar nela pela invenção. O poeta precisa ter cuidado para não se tornar um julgador. Compreender é tudo o que nos resta para que não sejamos restos de ideologias.
Você escreve na Primeira Elegia do livro TERCEIRA SEDE: "Atravessei o século e ainda não e percorri". O homem moderno busca eternamente a si mesmo e não se encontra?
Sim. O homem moderno não vai se encontrar, porque a procura é sua única possibilidade de identidade. Como diz meu irmão Rodrigo, só habitaremos a casa quando formos os primeiros a sair. Se sou capaz de deixar o livro, sou capaz de viver o leitor. Há uns que escolhem a posse, outros, a possessão. A ambição do poema é ser anônimo. Ele não está acostumado a latir em pequenos pátios. Precisa do espaço e da lonjura, do latejar de planícies. Todo poema é imediatamente reescrito a cada leitura. Nunca saberei o que meu livro significa.
Como escrever num diário de uma viagem cancelada?
O melhor da viagem é quando não a realizamos. É esquecer de ir estando a caminho. O personagem de 'Terceira sede' escreve aquilo que não viveu, mas com tanto sangue e veracidade, que nem a realidade seria tão fidedigna. Nossas promessas e expectativas também são acontecimentos. Os pequenos acontecimentos que determinam uma trajetória.
Quando a fidelidade é uma forma de trair?
Exercito muito o avesso, a inversão, o paroxismo. Não quero lugares-comuns, porém um comum lugar de devaneio e reconhecimento. Não há casal que não tenha se traído a partir da própria fidelidade. A convivência é o maior risco, porque perde-se o estranhamento. Sem a estranheza, morre a surpresa e a atenção. Defende-se daí uma aparência, e não a improvisação. Passamos a vida a decorar papéis, mas eles nunca dão a garantia de que são leais aos traços de nosso rosto.
É possível conteúdo revolucionário sem forma revolucionária?
Não é possível. A forma se molda ao conteúdo, o corpo do tronco à elasticidade das raízes. Nunca premeditei : vou fazer uma elegia ou vou fazer sonetos ou vou fazer tercetos. Eles surgiram de acordo com a necessidade da respiração. Poesia é respirar música. Considero uma castração colocar uma palavra num poema apenas pela manutenção de uma rima. Palavras não podem ser trocadas. Elas são pelo seu sentido ou não servem. Difícil remover um morto do lugar de seu tombo. Mais fácil conduzi-lo em vida.
Na segunda elegia: "Tudo pode nascer, ainda que abafado". Qual a relação do som com a vida e a morte?
A morte é um silêncio furioso; a vida , um sussurro. Tive asma na minha infância e sempre pensei que a morte operava dentro de mim. Ela era o chiado, a chaleira fervendo que nunca apagava. Minha insônia era vigiar o fogo do pulmão. Aprendi a viver pacificamente com minha morte. Ela está aquietada, testando a minha resistência. Acho que vou cobrar aluguel dela. A eternidade está longe demais para quem vive na urgência do corpo.
Um poema épico exige força narrativa. Para conseguir tamanha força é necessário enxugar as metáforas, poli-las, tratá-las com maior zelo do mundo?
A poesia tem a pretensão de ser um assobio. Um ritmo secreto, subterrâneo, que ninguém repara, mas não consegue esquecer. A metáfora é algo como os pedais do piano - prestamos atenção nas mãos do pianista. Não pode congestionar a musicalidade, trancar o texto. Ela deve limpar, cortar, abrir vereda - seu sentido é fundir realidades antagônicas em um toque preciso. Confere velocidade como uma quinta marcha. Tento desbastar ao máximo minha dicção. Alternar escurezas e cintilâncias. O desafio da poesia não é ir ao fundo, é conseguir voltar do fundo para a legibilidade das experiências. Não se afogar na obscuridade, muito menos cair no simplismo trocadilhesco. Alguns escritores vêem, mas não conseguem fazer ver. Comunicar requer generosidade. Há autores que repetem o mesmo livro, porque não lêem suas próprias obras depois de prontas. A gente realmente faz um único livro, entretanto, necessitamos desdobrar e raspar a textura pela simplicidade. A velhice é o despojamento, a pressa em calar. A juventude se engana fácil com o jogo verbal, desperdiça a linguagem que vai lhe faltar no futuro.
Você faz de TERCEIRA SEDE quase que um compêndio da sua filosofia de vida. Neste livro são muito comuns afirmações diretas como, por exemplo: "O medo é que nos faz escolher" e "descobre-se um amor na iminência de perdê-lo". Com menos de trinta anos de onde vem tanta sabedoria?
Não diria sabedoria. Gosto do tom epistolar, direto, da pessoalidade fluente, de olhar nos olhos da página. Escrever cartas é o equivalente a conversar sem a formalidade dos cabeçalhos. Terceira sede é uma carta sem remetente. O tom é do jazz, solo com altos e baixos, a inconstância peculiar de quem espera uma resposta. Essas afirmações, aforismos, funcionam como pancadas de consciência. Uma verdade que surge como iluminação, impossível de drenar. Diferentemente da filosofia, a poesia pensa por imagens. Liberta as imagens antes que se transformem em dogmas. Liberta as imagens das explicações. Os ouvidos trabalham em dobro.
Quantas cartas de amor o fogo já leu? Todas as cartas acabam no fogo?
O fogo é um crítico rigoroso: dificilmente tem piedade de nossas cinzas e sobras.
"Cobrir os pés da filha, arrumar as cobertas/e beijar sua testa é meu modo de rezar". É necessário rezar para estar com Deus? É necessário crer em Deus hoje em dia?
Não é necessário crer em Deus, e sim respeitar o desconhecido a ponto de não substituirmos Deus pela nossa presença. Um dos males é fazer da literatura uma religião (isso é uma advertência de minha mãe). Preocupados somente com nossa voz, pontificamos, não mais poetizamos.
A Sexta Elegia é a mais lírica. Em que o lirismo amoroso pode ajudar um poema a ser polifônico como o seu é?
O lirismo amoroso pode ajudar caso não seja esvaziado pelo derramamento, confessionalismo, catarse. Luto contra a predisposição ao excesso, a linguagem ensimesmada e o sentimentalismo. A serenidade surge da intensidade. Todo corpo exige humildade para ser reconhecido. Todo amor traz também a liberdade do fracasso. Trato de eliminar palavras que só prestam para provocar um efeito. Unicamente o essencial é transparente.
Por que a verdade não foi feita para estar na boca de um homem?
O homem se envaidece com as verdades. Das duas uma: fica aprisionado a elas ou elas se tornam prisioneiras dele. Atualmente confunde-se opinião com princípios. A pretensão pela imortalidade apressa a morte. Estou guardado para as dúvidas.
A obra convence pelos fragmentos, ninguém a lê inteira?
O livro é modificado pelo leitor na medida em que é percorrido. Ninguém lê uma obra sem misturar a respiração com o sopro da história que está sendo contada. Os fragmentos carregam o sentido do conjunto. Um verso deve ter o peso inteiro da escultura.
Nos dois últimos versos do livro você escreveu: "Envelheci,/tenho muita infância pela frente". O que iguala a velhice à infância?
A velhice e a infância estão intimamente ligadas. A criança caracteriza-se pelo acúmulo da imaginação; o idoso, pelo excesso de lembrar. Ambas estão singularizadas pela naturalidade. Com uma diferença: a criança só diz o que pensa, o idoso só pensa o que pretendia dizer. A primeira tem um tempo ilimitado pela frente; a segunda, o mundo limitado de seu tempo. Na infância, a gente inventa; na velhice, ventamos lembranças.

(2002)

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