Entrevista com:
- Soares Feitosa -
Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão
para o Balacobaco
Do nordeste à internet
Quem é poeta e não conhece o site do Jornal de Poesia não
está na internet. Não sabe o que está perdendo. Lá
estão todos os poetas consagrados ou não, mostrando a pluralidade
da Poesia Brasileira. O responsável pelo site é Soares Feitosa
- o entrevistado do Balacobaco deste domingo. Na entrevista ele fala de como
iniciou na poesia, dos poetas prediletos, de como o Jornal de Poesia começou...
Enfim Soares Feitosa revela quem é, sem o pudor de botar os pingos nos
seus is e levantar algumas polêmicas... Como sempre peço para que
o poeta se defina num currículo. Segue (primeiro} Feitosa por Feitosa,
depois o Balaco come solto!
Feitosamente Feitosa
SOARES FEITOSA, Francisco José, Ipu, CE, 19.01.44, orfão
de pai no mesmo dia em que nasceu, sou filho único. Infância na
cidadezinha de Monsenhor Tabosa, também no Ceará. Toda a infância
e juventude permeadas com os matos, os campos, os sertões, a caatinga,
a Seca e os invernos: fazendola Catuana, às margens do rio Macacos, de
sua mãe viúva, Anísia-parteira. Fui jornalista na juventude,
em Fortaleza; caixeiro-viajante no Piauí; depois funcionário do
Banco do Brasil. Aos 20 anos já era Fiscal do Consumo. Sempre por concurso.
Aos 22 anos, casei com uma serrana, Glaucineide, e com ela tem cinco filhos.
Em 1993, às vésperas do meio século de vida, escreveu seu
primeiro poema. Em 1996 iniciei a publicação artesanal do livro
Réquiem em Sol da Tarde. Ainda em 1996, fundei, na Internet, o Jornal
de Poesia. Em 1997 publicou seu primeiro livro, (Psi, a Penúltima, esgotado).
Assim se manifestou Wilson Martins sobre a minha obra: Os motes gerais dessa
poesia, nas suas próprias palavras, são a infância, o chão,
os matos, as pedras, os céus, as águas, o sertão, os bichos
grandes e miúdos, oficinas e tralhas, cheiros e sons! mofumbos &
alecrins, perfumes - tudo expresso no idioma dos grandes poetas universais,
ecos da poesia primeva, Homero e Saint-John Perse, Walt Whitman e Victor Hugo,
porque Soares Feitosa não é um "ingênuo" do romanceiro
popular, não é o falso sertanejo da cidade nem o verdadeiro sertanejo
iletrado, mas o sertanejo autêntico hipostasiado em poeta culto. É
a "matéria do Nordeste" que forma a substância dos seus
cantos épicos e dos seus transportes líricos, como na extraordinária
"Antífona", uma das mais belas odes jamais escritas em língua
portuguesa. É poema a ser lido por inteiro e em voz alta. (O Globo, 29.04.97)
Quando se descobriu escritor?
Na manhã do dia 19.09.93, aos quase 50 anos, até então
jamais havia escrito qualquer coisa além de pareceres técnicos
(sou tributarista, fiscal do imposto de renda). Nessa manhã, viajava
eu entre minha casa, no Recife, e a estação rodoviária,
coisa de umas 7 da manhã, ia buscar minha mulher que estava chegando
de Fortaleza. No caminho, comecei a pensar sobre um canal que estavam fazendo
no Ceará, em plena seca, uma seca terrível, trazendo água
do açude Orós, a uma distância de 400 km. E a medida que
ia pensando na importância dessa água numa região ancestralmente
sofrida de secas - e o drama de repete outra vez, agora em 1998! - chegava-me
uma sensação estranha, que era a vontade de botar aquilo tudo,
aquelas imagens que nunca me tinham ocorrido, no papel. Emocionei-me profundamente.
Chegando em casa, escrevi de um jato, um poema longo, inédito, Siarah!,
assim mesmo com exclamação, é a grafia antiga do nome
Ceará. Sempre li muito, muito e muito.
Qual o primeiro livro que leu?
O primeiro livro, digamos, foi uma História Sagrada, ilustrada com
figuras de antigamente. Aquilo me impressionava muito. Em certa página,
lembro como se fosse hoje, eu devia ter uns cinco anos, havia uma fogueira
e ao redor dela, Pedro, o mentiroso. Parecia uma fogueira de assar milho.
Em cima, num palanque, levando bordoadas, o Cristo. Mas o livro lido mesmo,
de ponta a ponta, foi o Almanaque do Biotônico Fontoura, com a história
do Jeca Tatu, de Lobato. Aquilo é extraordinário. Lobato exerceu
grande influência em todos nós. Aos 12 anos, os livros de obstetrícia
- minha mãe era parteira - eu os lia todos, às escondidas dela,
como fonte de alta putaria, veja só, Rodrigo, meu manual de inspiração
era um livro de fazer partos. Ainda hoje me dá um tremor quando vejo
uma barriguda pela rua. Depois, mesmo com dedicação integral
aos temas tributários, jamais deixei de ler. Ler, simplesmente ler.
Simplesmente tudo. Qual o meu vício? Ler! Escrever, nunca escrevi,
nem na adolescência. Nenhuma vontade também. Até hoje
não sei porque me deu vontade de escrever.
Com que se inspira para escrever?
Nunca poderia dizer que me-inspirei-e-fui-fazer-o-poema. Diria diferente:
o poema chegou. E chegou pronto. Começo e termino. Inclusive os poemas
longos foram feitos de uma tacada. Depois, na calma, as revisões. Não
escrevo inspirado; poderia dizer "espirrado". Não tenho explicações.
Nunca tenho nada pendente para fazer. Ao natural, posso dizer que não
sou escritor, porque não estou a escrever, nem prestes a escrever.
Melhor dizer que fui escritor, que já escrevi. Se vou escrever? Não
saberia responder. Se chegar, escrevo.
Como é o seu processo criativo?
O processo criativo, no meu caso, não existe. Passo meses e meses
sem escrever absolutamente nada e nem penso nisso. Zero angústia por
não escrever. Também não tenho nenhuma garantia de que
ao me levantar desta cadeira, em dando uma topada no pé da mesa, ou
até sem topada nenhuma, não faça um poema... Se é
estranho? Claro que é. Se estou "a serviço" do Além?
Com todo o respeito, nem acredito nisso.
Qual o melhor caderno cultural entre os jornais brasileiros? Por que?
Wilson Martins, com todo o carrancismo, e talvez por isso mesmo, continua
como referência maior da crítica literária. O Prosa &
Verso é um bom caderno cultural, sem dúvidas. Os jornais A Tarde,
o JB, o Povo, a Folha e o Diário do Nordeste divulgam alguma coisa,
mas poetas se queixam de que a literatura é pouco divulgada no Brasil.
Também pudera, poucos gostam de ler. Não basta saber ler, é
preciso gostar de ler. Falam numa nova ciência, o "letramento",
que trata precisamente dessa diferença: saber ler "versus"
gostar de ler. Poucos gostam. Se os autores são ruins? Não,
pois haveríamos de ler os clássicos - parece que é mesmo
um hábito que se forma na infância e pronto. As casas parecem
que não têm suficientes almanaques do Jeca Tatu nem livros de
obstetrícia, deve ser por isso... Não posso deixar de chamar
a atenção para os novos cadernos culturais da virtualidade,
o Poesia Diária, e, modéstia à parte, o Jornal de Poesia,
bem como o Balacobaco, e uma série de outros que estão surgindo.
Esta é a nova realidade do fim do milênio: a poesia está
em alta! Os jovens estão lendo. O que tem de "menino-véio",
ainda de fraldas, escrevendo poesia, ninguém consegue imaginar. Isto
sim, é o plantio, a sementeira!
Como você vê a internet? Como vê a informática
na literatura?
Na Internet supre-se a busca. Achei! A navegação, o desconhecido.
Mas, o prazer de botar um livro entre as mãos, a mancha gráfica,
o livro ali do lado, de um cochilo a outro numa rede cheirosa a sol e capim-santo,
isto decidamente só o papel e tinta. Porém a busca, o convívio,
o resgate da memória, o intercâmbio, o email-literário
- está merecer uma tese o email-literário, a ressurreição
da literatura epistolar, porém mais rápida, mais dinâmica
- este o papel da Internet, somando e multiplicando, jamais dividindo.
O livro vai acabar? Qual o futuro da literatura?
As pessoas estão lendo muito mais. Recebo um email de um engenheiro
que chegara por acaso no Jornal de Poesia e me escreveu para dizer que nunca
tinha lido - fora dos bancos escolares - uma poesia, e agora estava ali o
cidadão e me contar que comprara um livro de Bandeira. Claro que fico
comovido com isto tudo. Item, receber um email de Portugal, o portuga me dizendo
que lera pela primeira vez O Navio Negreiro, e que estava a procurar a obra
de Castro Alves nas livrarias de Lisboa. Também pura emoção
é receber um email de um menino de 10 anos mandando uns poemas para
publicar. Há crescimento, sim, claro que há.
Balacobaco - O que pensa de Drummond, Cabral, Geração de 45?
Qual o poeta predileto (brasileiro e estrangeiro)?
Não sou do fã-clube da geração de 45 não,
nem de Cabral, nem de Drummond. Poeta, para mim, se chama Gerardo Mello Mourão,
agora com o belíssimo INVENÇÃO DO MAR. Não está
na mídia. Não é um poeta fácil. Mas, o futuro
dirá: Gerardo! Como disse de Augusto dos Anjos e de Pessoa, poetas
póstumo, porém Poetas! Sempre achei esses Campos, Pignataris-e-cloacas,
uma cloaca mesmo. Acho que o dano que essa gente causou à literatura
brasileira foi muito maior do que qualquer benefício. Felizmente, quase
ninguém fala mais nessa fraude que foi esse tal concretismo.
Balacobaco - O que pensa da polêmica poesia x letra de música?
Quanto aos letristas de música, digo que há alguns poucos com
excelente poeticidade, veja este, Humberto Teixeira, autor de Asa Branca e
de Assum Preto. Ali tem poesia. Regra geral, as letras de música tem
um nível poético muito baixo, mas há exceções
gloriosas.
Segundo o Aurélio, poesia é a arte de escrever em verso,
esta definição me parece pobre. Tecnicamente, o que é poesia?
Acho essas definições de poesia algo muito difícil mesmo.
Talvez, para simplificar, prefica ficar com essa do Aurélio. Pronto,
se está em verso, é poesia! Agora, se os tais versos são
capazes de gerar algum enlevo, são outros quinhentos. Portanto, faço
outra simplificação para dizer que o poético é
aquilo que lido e ou recitado, enleva. Um relatório puro e simples
é provável que jamais enlevará coisa alguma. Portanto,
a palavra-enlevo, ou a enlevo-palavra é a chave do poético.
Nenhum recurso a mais: nem o quadro pintado, nem o som tocado: basta a palavra,
se poética, teremos o enlevo.
O poeta e tradutor de Rimbaud, Ivo Barroso, disse que a poesia acabou depois
das Guerras Mundiais. Qual a sua opinião?
Se o Ivo Barroso falou que a poesia acabou, falou uma grande bobagem, maior
não poderia ter sido. Há, sim, um revigoramento da poética
em todo o planeta, jamais se escreveu tanto.
Vamos falar do site Jornal de poesia. Como teve a idéia? Como conseguiu
planeja-lo, executa-lo?
O Jornal de Poesia surgiu no momento em que digitei Castro Alves no Yahoo/Altavis
e veio a informação de que não sabiam quem era. Digitei
Gonçalves Dias e veio a informação de que era uma cidade
maranhense, onde o Banco do Brasil tinha uma agência e me remeteram
para a page do banco. Claro que fiquei muito puto com aquilo, quando a Internet
já possuía a obra completa dos grandes poetas ingleses, franceses,
espanhóis, italianos e alemães. De língua portuguesa,
a pobrezinha, nada! Eu me arrepiei e disse: pois vai ter! E tem! Hoje o Jornal
de Poesia está próximo dos 2.000 poetas, Camões, Castro
Alves, Augusto dos Anjos e Pessoa em obra completa! É, de longe, o
maior sítio de literatura, em qualquer língua na WWW.
Quais as grandes dificuldades de se manter o site?
As dificuldades hoje são de ordem financeira: minha pequena empresa
familiar quebrou completamente, eu mesmo estou atravessando uma situação
dos diabos. Eram três operadores, cheguei a ter cinco, assalariados,
em regime integral, hoje apenas um, avulso, na medida em que aparece algum
Cirineu para colaborar. Nunca tive patrocínio. Estou tentando alguma
coisa para não deixar a peteca cair. Não cairá, com certeza.
É verdade que O Poesia Diária começou no site do Jornal
de Poesia?
Sempre dei o maior apoio ao Calex.
Falando em Tchan. Em que o Tchan da Carla Perez prejudica a cultura baiana?
Sou a favor do tchan e a favor da senhorita Carla também. Não
atrapalha em nada! Olhar a louraça é muito saudável,
em nada prejudica o fazer poético, acho que até ajuda. Já
me disseram que ela canta com outras pessoas no palco, um tal Jacaré,
outras moças, mas confesso, Rodrigo, que eu nunca vi essa pessoas,
não consigo despregar os olhos das roupinhas dela. Você confirma,
Rodrigo (confirmo!!!!!), que no palco tem outras pessoas? Eu nunca vi!
Quais os problemas de divulgação entre o sul maravilha e o
nordeste?
Quanto ao regionalismo, a coisa é fácil de explicar. O Globo,
o JB, a Folha, o Estadão chegam por aqui, chegam em todos os buracos
deste imenso Brasil. Chegam em nome da corte. Os jornais regionais, o Povo,
de Fortaleza, o A Tarde, da Bahia, não saem de suas fronteiras. Logo,
tudo que se escreve no Globo é cultura-brasileira; no Povo, é
poesia-cearense; em A Tarde, é cultura-baiana. Hifenizei para reforçar
o que estou dizendo: cultura-brasileira igual ao Rio-SP; cultura provinciana,
o resto. Nem melhores nem piores. Aliás, se alguém for dar um
balanço cultural, histórico, a balança penderá
para a região miserável, como dizia o inesquecível Paulo
Francis, cuja frustração interior, parece, era não ser
nordestino. Tem uma novidade: a Internet! O Jornal de Poesia é um sítio
da lusofonia, independentemente de estar aqui em Fortaleza, na Bahia, ou em
Macau. A Internet está quebrando o "monopólio", com
certeza.
Balacobaco - E o poema-peido é criação nordestina?
Quanto a esse tal poema-peido, nunca ouvi falar nem cheirar. Recebo a parte
que me toca, Rodrigo, em dinheiro, por favor.
Rimbaud escreveu até os vinte anos, acabou a época dos jovens
gênios?
Acabou não. Quem garante que no meio dessa fome terrível, desta
nova seca do 98, em plena miséria piauiense, agora, neste instante,
lá no povoado chamado Regeneração - que nome! - não
esteja desabrochando um Mozart, um Castro Alves, um Cruz e Souza, um Augusto
dos Anjos? Por que não haveríamos de ter os gênios? Quem
os mandou parar? O Ivo Barroso?
Que conselhos daria a quem está começando?
Quanto aos conselhos, Rodrigo, não saberia deles não.
Qual o papel do escritor na sociedade?
O papel do escritor? Também não sei qual, e, regra geral, a
literatura engajada sempre foi de péssima qualidade. Temos o exemplo
do Pedro Lyra, depois da queda do Muro de Berlim escreveu uma epopéia
elogiadíssima pela crítica; antes era o nhenhenhém do
proletariado. Libertou-se o Pedro Lyra, um grande poeta. Agora.
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